O GRÊMIO
Naquele tempo, em Ararucá, era coisa simples a fundação de um grêmio literário ou de uma sociedade recreativa, dançante, esportiva ou de qualquer outro intuito.
Estava a gente à esquina, nalguma tarde de
discussão, versando a arte, a moral, a literatura, a religião, o
extremo-oriente e outros assuntos mais ou menos embicantes nos interesses
ararucaenses quando a prosa, de repente, numa síncope brotada das nossas
opiniões alfim unanimisadas, morria de todo.
Ficávamos, então, ali, ruminando em silêncio
os últimos silogismos, quando algum de nós, de digestão mental mais rápida,
irrompia:
— Por que não fundamos um grêmio literário
aqui nesta terra?
Os outros, despeitados, inopinadamente
concordavam:
— É verdade; por que não fundamos?
— Sim; uma sociedade literária com gabinete
de leitura e um salão para conferências. Em Ararucá há elementos: eu, vocês, o
Juca da farmácia, o Bernardino do 1º ofício... e quem mais?
— O Maneco.
— Que Maneco?
— O Maneco Borba, da loja do Abrão.
— O quê?... um caixeiro!...
— Sim; ele é caixeiro; mas lê muito. E lê em
francês, até!...
— tem, vá lá, o Maneco; mas só ele.
— Pois não.
— Há ainda o Belmiro...
— O das charadas?!...
— Não, Tonico, além das charadas ele faz
versos bons. Ainda outro dia mostrou-me um soneto: A Mágoa da Pedra, que...
— Bem, bem o Belmiro também. Mas chega! Já é
gente de sobra. Se começamos a enfiar todo o mundo...
Ficava então resolvida a fundação. Era
lembrada e logo solicitada para a sessão inicial, a sala do Clube Republicano e
o jornal de Ararucá, a “Trombeta”, estampava, na sua primeira sortida, a
notícia auspiciosa:
“Diversos
rapazes da nossa melhor sociedade cogitam a fundação de uma associação
literária e recreativa, com o louvável fim de promover o desenvolvimento literário
e artístico do nosso meio, bem como de estreitar as relações sociais da nossa
terra, oferecendo saraus musicais e conferências, a que não há de faltar o
apoio do magnânimo povo ararucaense, etc., etc., etc.”
De fato, na primeira reunião, a sala do Clube
enchia- se de gente. O Castro, redator da “Trombeta”, era aclamado presidente
provisório e convidava para secretário o Bernardino do 1º ofício. Após o que,
expunha os fins da reunião. E depois que os oradores obrigatórios de Ararucá
tinham de todo vasculhado o assunto, declarava-se fundada a associação,
passando-se a eleger a diretoria de verdade.
Por fim escolhia-se uma comissão para
elaborar os Estatutos.
Que delícia o ser-se desta comissão
O seu primeiro gesto, uma vez escolhida, era
agradecer a escolha. O segundo era marcar o dia para a reunião elaborativa. Por
último, pedia um prazo para a apresentação do trabalho, o que era imediatamente
e generosamente cedido, conforme manda a praxe.
Depois disso, a assembléia dispersava-se.
No dia marcado, na salinha que servia de
redação à “Trombeta”, reunia-se pela primeira vez o conclave para assentar as
leis que regeriam a nova corporação. Cada membro da Comissão levava nos bolsos
quantos estatutos de filarmônicas e clubes tinha acaso na gaveta; e, sentados em
torno da mesinha, às tesouradas e à goma- arábica, iam alinhavando capítulos,
artigos, alíneas e parágrafos únicos até que o grêmio todo ficasse ali previsto
e combinadas tôdas as penas para os possíveis delitos de diretores e consócios.
E tinham especial encanto aqueles capítulos
das competências, nos trechos em que rezavam: “Ao Presidente compete: a)...
b)... c)... h)... v)... e todo o alfabeto das competências de cada um dos
paredros sociais, presidente, vice, secretário, vice, tesoureiro, vice, procurador,
até os simples sócios rasos, sem destaque social.
Estes, contudo, se não tinham atribuições
distintas, forravam-se na larga parte que tratava Dos deveres dos sócios, e em
que eram enumeradas as severíssimas penalidades que pairavam sobre quem,
paredes adentro da sede social, pusesse o pé num galho seco qualquer do
regimento.
Pronto o rosário, o 1º ofício passava-o a
limpo e no domingo seguinte, nova reunião no Republicano para apresentação das
tábuas gravadas no sinal da “Trombeta”.
Ali, o presidente lia a obra, que a
assembléia aprovava, sem emendas nem obstrução, mandando que a ata da sessão
louvasse condignamente os moisés da Comissão.
Começavam então as sessões brancas, marcadas
pela letra dos Estatutos.
Todas as segundas-feiras, na platéia do “Beija-flor-
Cinema”, emprestada dos empresários condescendentes, reunia-se a elite
ararucaense para assistir às festas do Grêmio. No palco, à frente de todas as
jarras apresentáveis de Ararucá e de uma mesa forrada de colcha rica,
formava-se a Diretoria, presidindo à cerimônia. Ao lado, atrás duma mesinha e
dum copo d’água, o conferente, após a apresentação e as palmas receptivas, lia
a sua perlenga, com muito proveito para a cultura daqueles cérebros cheios de
boa vontade.
Um a um, todos os intelectuais de Ararucá iam
assim conferindo os mais variados e sugestivos temas em palestras que a
“Trombeta” estampava, em seguida, para uso da parte do auditório menos
favorecida d’acústica.
E os programas comportavam sempre, além da
conferência essencial, vários números acessórios de rabeca e recitativos
poéticos. A rabeca estava a cargo da D. Marianinha, filha prendada do promotor
público, e os recitativos ao de quem quer que tivesse versalhada inédita na
gaveta e a desejasse transmitir à posteridade.
Era uma delícia, nos primeiros tempos. Era “o
renascimento da cultura municipal”, conforme afirmava a “Trombeta” nos
narizes-de-cera com que encabeçava os relatos das artísticas seratas.
Mas aconteceu o que sempre acontece a todos
os grêmios em todos os Ararucás do mundo — morreu. E, o que é pior, não morreu
de morte natural.
Foi o caso que o Juca da farmácia teimava,
nos últimos tempos, em proteger os seus parentes e amigos, reservando-lhes
lugares especiais no “Beija-flor”, enquanto que os Estatutos estatuíam muito
liberalmente que cada um se apoderasse dos lugares às conferências, à medida
que fosse chegando ao salão, o que era uma sábia maneira de reservar os piores
para castigo dos retardatários.
Mas o Juca usava o truque de marcar as
primeiras filas de cadeiras com os lenços dos seus protegidos, o que, em
Ararucá, significava apropriação temporária mas insofismável do móvel. Aliás
lhe não cabia o mérito da invenção, pois assim se usava na igreja, em dias de
missa de mor procura. Um lenço do coronel Antunes atado ao espaldar de uma
cadeira, preservava essa cadeira do contacto de quaisquer outras nádegas que
não as do Coronel Antunes. E mesmo que as nádegas assim privilegiadas não
comparecessem, lá ficava o lenço a representá-las tàcitamente. Era assim em
Ararucá e o Juca apenas alargava um velho uso, estendendo-o ao Grêmio.
Era porém contra os Estatutos. E por isso foi
convocada uma reunião extraordinária dos sócios, a fim de se fazer prestigiado
o seu Código.
Foi essa assembléia o golpe funesto de que
veio a morrer o Grêmio.
Comparecidos à sede, encontraram-se os sócios
divididos em dois blocos. Um era pela inviolabilidade da lei; outro, pelo
respeito ao costume da terra.
A sessão acalorou-se logo de começo. O
presidente, lencista, disse que, em princípio, era pela inviolabilidade, mas,
como os Estatutos se achavam ao arrepio de uma tradição secular em Ararucá,
opinava por que se revogassem esses estatutos rebarbativos e se elaborassem
outros mais de acordo com a alma dos ararucaenses.
Os inviolabilistas protestaram. Aquilo seria
um precedente perigoso. Assim, sempre se cometeriam todos os abusos
imagináveis, pois que para cada um que surgisse, haveria uma nova modificação
dos Estatutos...
O presidente replicou que se poderia encartar
nos novos uma disposição que os tornasse para sempre invioláveis.
Os outros marraram que não, que não admitiam
reforma. Ou ficava tudo como d’antes e o Juca renunciava ao lenço ou deixavam a
sociedade.
Foi quando um lencista, perdendo de todo a
com- postura, arremessou sobre os adversários este argumento traiçoeiro:
— Vocês são contra o lenço porque moram perto
e, quando chegam, apoderam-se dos melhores lugares ao passo que os outros...
Veio o mundo abaixo:
— Tratantes!.
— Tratante é a vó!...
— Os Estatutos...
— Canalha!...
—... vocês que já tiveram conferência o que
querem é matar o Grêmio antes que nós..
—... não sejam asnos!...
Venha p’ra rua!...
— Pensa que eu tenho medo de careta!...
— Calma, senhores!...
— Aqui não brigo, que tenho educação
—... poeta de água doce!...
—... para a rua, seo cachorro!...
Voou uma cadeira. Outra mais. Mais outra.
Enfim, uma de mor impulso partiu a lâmpada do aposento, deixando os contendores
à meia luz que vinha dos postes da rua. Os ânimos não sossegaram, porém, e
houve bordoadas de cego, sopapos, safanões, berreiro... o diabo.
O diabo e a polícia. Alguém da vizinhança
apitara e o cabo, mais três praças, invadiram o recinto, insulando:
— Ordem, seos moços, que o delegado “hivem”
As trevas foram propícias para a evacuação
imediata da liça. Fartos de murros anônimos e com o instinto antipolicial
aguçado, lencistas e inviolabilistas safaram-se sorrateiramente.
O patrão do Juca vendeu por muitos dias farta
dose de arnica e largos metros de tafetá; e em Ararucá por bom tempo se não
falou em grêmios literários recreativos.
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