FALA DE BOADBIL
Mais
desvaira a fortuna!.. Estava escrito,
Escrito
estava, oh Rei! Na casa de Hércules,
Desde o
berço da Ibéria, mão oculta
Fatídico
papiro aferrolhara,
Em que Alá
prescreveu nossas conquistas.
Não foi o
braço humano, não decerto,
Quem do
céu despejou centos de raios,
Que o pó e
cinzas com assombro do orbe
O templo
reduziram! Foi Rodrigo,
O pecador
que surdo à voz celeste,
Insano
profanou com ímpia destra
Esse altar
onde os evos ocultavam
O aresto
que fez ruir seu trono,
Seu
plaustro deseixar-se, e o cetro avito
Quebrar-se
eternamente sobre as margens
Do rico
Guadalete, em face a Xeres.
Stava
escrito!... Não foram vossas armas
Que meu
trono abateram; foi o fado!
Aben-Hassan,
meu pai, Deus o ampare,
Viu a par
da derrota a estrela mesta
Do
infortúnio pousar sobre o meu berço,
Predisse o
céu meu fim; fatal decreto
Da morada
de Alá baixou à terra.
Aqui
mesmo, Senhor, nesta atalaia,
Berço e
sepulcro da grandeza humana,
Uma
horrenda visão teve ele um dia,
Dia
nefasto dos anais da hégira.
"Mergulhava
no mar o limbo ardente
O sol;
suave tarde a primavera
De
andaluzas delícias revestia;
Sobre o
bafo de meiga e fresca brisa
De nardo e
lume um oceano etéreo
Vinha os
lábios ungir de almos encantos
E o astro
do profeta a prumo ao cimo
Desta
imensa guarita das vigias,
Brilhava
puro e calmo, como a face
Da Huri
que nectariza eternamente
Os lábios
do escolhido. De repente
O céu se
enluta, e as cândidas estrelas
Em verdes
flamas se convertem, cruzam,
Trovejando
no espaço ronco horrendo!
Mais
vermelho que o sol da terra surge
Um
rompente leão! Lança-se ao astro,
E o devora
de um trago! A natureza
Parecia
reentrar no caos informe,
E em trevas
sepultar-se!.. Só a imagem
No céu se
via da medonha fera
Sacudindo
da juba ensanguentada
Um granizo
de fogo sobre os tetos
Desta
infausta cidade!... Meu pai, trêmulo,
Sentiu da
morte a mão premer-lhe o seio,
E ardente
desfiar-se de seus olhos
Sobre a nívea
marlota sangue em bagas
Horrorizado
foge, titubeante,
E o pátio
dos leões assim varando,
Ouve um
gemido que lhe vara o peito.
Da bacia
de marmor, que no centro
Espadanas
de sangue trasbordava
Sobre o
dorso marmóreo dessas feras,
Já com
sangue cristão assás banhadas,
Um
espectro fosfórico o assalta!
Como
ardentes carvões chameja a larva
Em muda
exprobação olhar satânico!
Tira do
seio ensanguentada espada,
E nos
lábios cruéis a limpa, e cospe
No rosto
de meu pai mancha indelével...
Convulsivo
sacode a fronte hirsuta,
E com ela
lhe atira espedaçada
A coroa
augusta de Granada às plantas;
E após
sumiu-se o agoureiro espectro!..
Como um
ébrio que vê fundir-lhe o raio
A taça de
ouro, que emborcava aos lábios
Em louca
libação, gelado fica.
Assim
ficou meu pai!... Soa um vagido
Nos régios
aposentos, que o desperta!
Outro soa
maior! foge, e procura
Lenitivo
ao terror no casto seio
De minha
terna mãe; e o que ele encontra?!
Era eu,
vindo à luz naquele instante!
Era eu,
que à desgraça destinado,
Vinha ao
mundo da dor, do desengano!
Era eu,
que dos olhos desprendia
A lágrima
primeira, e nela ao vivo,
De um
círio à luz que o tálamo aclarava,
Viu meu
pai com assombro refletir-se
A imagem
pavorosa das exéquias
Do trono
de Granada!... Estava escrito!
Os braços
granadis ora algemados,
Aos braços
dos cristãos em força igualam,
E as águas
do Genil dão gume ao ferro
Para o
ferro cortar de vossas armas...
Alá foi
quem venceu!... Ante meus olhos
Julianos e
Oppas, refratários
Às juras
do corão, patentes vejo!
Nem a
esposa me resta, que o mau fado
Me fez
repudiar, cobrir de opróbrio,
Negando
seu amor!... Sangue, só sangue,
Avancerrage
sangue em toda a parte
Minha
esperança para sempre afoga!
Nasci em
dia aziago... Eis vossas chaves.
Uma graça,
Senhor! sede piedoso:
Tolerai o
corão: ele é do Mouro
Um roteiro
do céu. Inda outra graça:
Mandei que
um alvanel a porta mure
Por onde
Boadbil desceu do trono."
Disse: e o
despeito brota-lhe nos lábios
Espessa
espuma. Não lhe verga o ânimo
Da
despegada esposa o riso odioso,
Nem as
faces traidoras dos escravos
Que nele
viam perecer a pátria;
Antes,
rolando os inflamados olhos,
Um por um
os confunde, e rei se mostra!
FERNANDO E ISABEL
Convulsivo
tremor a face augusta
Da formosa
Isabel percorre, e estampa
Em seu
terno semblante a piedade.
Fernando,
ao lado dela, oculta o júbilo
Que em seu
peito referve; e os olhos fitos
Na
alcantilada torre, aguarda ansioso
Ver
erguido o sinal, a cruz argêntea
Na mão de
Talavera, e glorioso
Engolfar-se
nos brados da vitória.
"Santo
lago!" do alto da atalaia
Três vezes
brada o bispo; e Santo Iago!
Vezes três
pela veiga inda reboa
Em
prolongado som, que dobra em força.
Como a
onda que os flancos arremessa
Em lisa
praia, e recuando engrossa
Em
marouço, que estoura reboando.
"Castela
e Aragão!" grita o rei d’armas,
Floreando
três vezes o estandarte
Do
Apóstolo guerreiro, cujo nome
A fé
robora, e acende o amor da glória.
Responde a
artilharia, rufam caixas,
E no campo
flutuam férreas massas,
Dardos de
fogo rutilando em nuvens.
Fernando
beija a terra; ao som das harpas
Grave Te
Deum se entoa, a que respondem
Toda a
corte, guerreiros, e cantores.
FUGA DE BOADBIL
Ei-lo, o fero Boadbil, sobre alto monte,
Fugindo
desses hinos que concutem
Em seus
tristes ouvidos sons funéreos,
E o sólio
avito num saudário envolvem
De fumo e
sangue. Em vão turbando intenta
Prender-se
à doce imagem fugitiva
Da finada
grandeza: é tudo baldo!
Nunca em
seus olhos a amorosa Alhambra
Mais bela
se estampou, nem sobre a terra
Granada
alardeou tantos primores!
Sereno
estava o céu, como o respiro
De puro
infante, adormecido aos mimos
Da
carinhosa mãe. E ele não via,
Nesses
desejos da desgraça extrema,
Rolando os
olhos no horizonte pátrio,
Erguer-se
um fumo lampejando estrondos,
Sublevarem-se
os seus, tinirem armas,
Romper-se
a cruz ibéria, e novamente
O
crescente raiar nos rotos muros,
Como um
astro propício... Ah! nem via
Abrir-se a
terra e submergir Granada,
Ferver em
seu sepulcro um negro lago
Exalando
mortíferos vapores.
Pela
última vez sua alma adeja
Em seus
olhos, e diz enternecida
Saudoso
adeus à pátria escravizada,
Saudoso
adeus ao trono, ao mando, e à glória;
Um suspiro
o acompanha, longo, intenso,
Suspiro
que concentra um reino, um mundo:
E após o
suspirar viu-se em seus olhos
Do
infortúnio rolar a fria lágrima...
Para ele
volvendo a vista ardente,
Então a
mãe que muda o acompanhava,
Com
despeitoso orgulho assim lhe fala:
"Como
fraca mulher, Príncipe, choras
O teu
reino perdido?... Sim, pranteia-o,
Já que
homem tu não foste em defendê-lo.
Inda há
pouco teu vulto enchia a Espanha
De
assombro e majestade! Ora abatido,
Nega-te a
própria terra um canto, um pouso
Em que
possas dormir!... E tu sabias
Que o
manto de um plebeu não cobre a espadoa
Que um
império sustenta; e tu me ouviste
Desde o
berço dizer-te esta verdade:
Que não é
rei quem rei morrer não sabe!"
Qual se
adunco cilício o repassasse,
Ou se um
raio estrugisse em seus ouvidos,
A voz
apaixonada da Sultana
Fere sua
alma, e lhe desnuda o mundo.
Um ermo
tenebroso, áridas sirtes
Entre
vagas que o céu fulmina irado,
A terra
lhe parece. Amor do berço,
Delícias
do consórcio, e a majestade
Em
voragens profundas desparecem;
A morte é
seu porvir, sua esperança!
Da pátria
a terra e o céu infaustos cercam
Seu ser
real proscrito. Encara os mares,
E nas
rubras caligens africanas
Renasce-lhe
a existência. Solta as rédeas
Ao fogoso
corcel, e afasta os olhos
Do
aflitivo painel que o dilacera.
ALHAMBRA
Penetram
nas formosas galerias
Da
encantadora Alhambra os vencedores;
O fero
trote dos frisões recresce
Nas
sonoras abóbadas. Fernando
Não pode
clausurar num vão silêncio
A insólita
impressão:
"Ah!
vale o sangue
De meus
nobres guerreiros esta régia
Tão bela e
grandiosa, que escurece
Quantas
conheço na afamada Espanha!
Por ela
inda mais sangue eu verteria."
NUM ÁLBUM
Ah! não penses que
o peito do vate
É cratera de
eterno vulcão,
Que essas horas da
vida são flores
Que não pendem,
não morrem no chão.
Ah! não penses que
o lume em seus olhos
É planeta de
eterno brilhar,
Que em uns olhos
não pode uma lágrima
Vir o brilho
celeste empanar.
Ah! não penses que
a eterna harmonia
Que a uns lábios
formosa baixou,
Será sempre suave,
divina,
Como aquela que em
Deus se criou.
Semideus, entre a
terra e os céus,
Duplo fado lhe
deve tocar:
Um sorriso no
amor, na esperança,
Desenganos por
onde passar.
---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário