VELADA
A Leopoldo de Freitas
Em frente ao Rio Grande, o Itaoca
bramia surdamente pelas grossas chaminés desprendendo fumaça. O longo casco
asseteado, que varava as ondas, engolindo as distâncias a milhas, na sua
velocidade de expresso, retesava, à proa, a forte amarra inglesa, oscilando
levemente, mergulhada já a faixa rubra do fundo, na planície das águas. Pronto
e carregado, estava a largar nesse instante para o Rio de Janeiro. E como um
cavalo de raça, todo ele fremia, impaciente da demora arfando, dando golpes de
hélice, abrindo a rade em frisos trêmulos de espuma.
Escaleres e lanchas, vindos de
terra a toda a força de remos, manobravam e davam à popa, junto ao leme, abalroando-se
às vezes na pressa da atracação. Catraieiros aos gritos, num tumulto,
xingavam-se mutuamente, em protestos hostis — uns, de pé, brandindo os croques
contra o patamar da escada, ou sobraçando malas e bagagens; outros, debruçados
da borda os braços estendidos, amparando as embarcações. Passageiros
retardados, da última hora, ansiavam, mudos em meio à balbúrdia, pelo portaló
do paquete. E escada acima, um fervilhar de corpos e volumes, em demanda do
convés.
No alto, à balaustrada, o
imediato, a tez queimada e cor de papoula, berrava para os botes, ordenando que
atracassem também pelo outro lado. Dizia mesmo palavras ásperas aos boteleiros
recalcitrantes, tratando rudemente a todos, na azafama da partida, indignado
por deixarem tudo para os últimos momentos. Inflava-se tanto que o comandante
julgou dever intervir:
− Mas, para que essa rascada?
Temos tempo... O navio não precisa disso; em chegando lá fora come léguas...
E voltando-se para os
passageiros, que curiosamente olhavam tudo aquilo, acrescentou:
− Quatro ou cinco dias levam os
outros vapores até ao Rio de Janeiro; para o Itaoca tal viagem é questão de
quarenta e oito horas...
E, mãos nos bolsos do grosso
jaquetão de pano piloto, atacado de alto a baixo e contornando-lhe densamente
as formas robustas, subiu para o passadiço correndo sob os toldos brancos.
À ré, num recanto isolado, junto
às gaiútas da câmara, sentada em uma cadeira de viagem, uma moça, espécie de
miss, envolta em custosa pelica, parecia alheada de tudo. A fisionomia, bela e
triste, túmida de lágrimas, mostrava através o véu espesso que a cobria, as
equimoses de uma longa amargura. Os cabelos, ondulados e bastos, caíam-lhe
pelas costas em madeixas escuras da maciez do cetim. E seus olhos formosíssimos
reluziam vagamente, num encanto doloroso, sob o pranto que fluía.
Ao seu lado, uma figura de
governanta, esgrouviada e velha, lembrando, na face, o perfil de uma avestruz,
procurava consolá-la, dizendo-lhe de instante a instante:
− Não se aflija mais, Dora!
Procure distrair-se. Olhe que a senhora assim se está matando...
E permaneciam ambas indiferentes
às manobras e ruídos em torno, voltadas para os lados de terra, olhando
saudosamente a cidade e o recorte meridional arenoso da Lagoa dos Patos. Aí a
planície infindável corria longinquamente até o horizonte, tendo apenas, de
espaço a espaço, grossas intumescências ou traços fugidios de arvoredo, nas
margens rasas dos rios. Para oeste, longe, nuvens densas de inverno, faziam
como o vago desenho de serras, ondulando em recortadas silhuetas. E para leste,
entre as duas pontas aguçadas da costa, o rasgão azulado da barra, espumando em
gigantescos velos de prata...
Afinal, o paquete zarpou em
direção ao pontal do sul, onde se ergue a torre esguia do farol, semelhando à
distância o chifre colossal de algum rinoceronte fantástico, cujo focinho
monstruoso mergulhasse no mar; e, em pouco, entrou a cabriolar na tumidez
bramante das ondas, rolando em vagalhões alterosos e cobrindo de largas rendas
de espuma a vastidão curva das praias. Nos bancos de areia a água torvelinhava,
enovelava-se em fofos alvacentos de arrebentação, dando um sinal e um aviso de
lugar temeroso aos transeuntes da barra. A um lado, os cômoros de S. José do
Norte, de uma alvura imaculada, pareciam colinas de gelo. O oceano bramia
furiosamente, numa perpétua revolta de costa indomável, recordando os mares
bravios do norte da Europa, onde a vaga jamais dorme na sua ronda infernal.
Os passageiros, amedrontados com
os balanços do vapor, nas vagas curtas do canal, num temor de morte ou na
repugnância do enjoo, recolheram-se logo às cabines. E foi só quando os
vagalhões amainaram, em pleno mar largo, por ocasião do chá à noite, que de
novo se reuniram, numa algazarra alegre e na camaradagem íntima das viagens,
deixando as profundezas das celas de bordo.
Os olhos baixos e tristes, as
lágrimas mal contidas da moça passageira, o véu espesso ocultando o rosto, a
estranheza da face excêntrica da governanta, tinham lançado a bordo uma
curiosidade intensa. Na desocupação da viagem, todos estavam curiosos por saber
a história da triste criatura e a origem do seu pranto, que jamais estancava,
teimando em fluir involuntariamente daqueles olhos de miss. Indagavam
insistentemente, num zumbido segredeiro correndo de lábio a lábio o salão do
paquete; e, por fim, se soube todo o caso misterioso por um velho estancieiro
de Bagé, que vinha num camarote, muito prostrado pelo enjoo.
De Bajé era também a moça, e na
cenografia pitoresca dos arredores dessa cidade de campanha, se tinha passado
um nobre romance a dois. Um filho de fazendeiro, instruído e opulento, com um
porte fidalgo e o dandismo característico dos rio-grandenses, e que se educara
na Europa, fora o galã dessa história de amor. Quando voltara definitivamente à
sua terra, mais fidalgo e mais dândi que dantes, fascinara irresistivelmente a
adorável timidez de uma das filhas de um tio estancieiro, uma prima
formosíssima, chamada Dora, e que tinha sido educada nas irmãs de S. José, em
Porto Alegre. A jovem, após seis anos de colégio, tornou a Bagé, justamente por
aquele tempo da chegada do primo. Toda ela era uma beleza seráfica, com a
diafaneidade de uma Virgem de missal. Jamais namorara, e era um lírio. A sua
prece, no rosto lindo, dava-lhe a atitude ideal da figura de um quadro célebre,
A oração, que a reprodução oleográfica, abastardando a genialidade do grande
artista que o fizera, espalhou por todo o mundo. O seu perfil de santa
medieval, tocado de uma auréola mística, dava-lhe a placidez, a humildade e a
resignação das Horas Marianas e da Imitação de Cristo. Mas a natureza,
colocando-a frente a frente ao belo guasca elegante, traspassou-a vivamente com
a espada das paixões, flamejando-lhe o ser na faísca dos afetos supremos. Amou
violentamente, arrebatadamente, a celeste criatura, na intensidade de um único
amor triunfante...
Entretanto, o robusto rapaz,
fidalgo e dândi, que suscitara as flamas daquele sentimento, caiu de repente
aniquilado por um tifo dos campos, durante os calores candentes do verão, nas
imprudências de cavalgatas e caçadas ao sol brutal, escaldante. O rude golpe
prostrou Dora para sempre...
A mesma violência que mostrara ao
amor, votava agora à viuvez ou a orfandade de seu coração. E, dentro em pouco,
a Heloísa que existia nela feneceu, e em seu lugar reapareceu a freira de
outrora, de espessos véus e fronte mística de anjo, a velada do Senhor, a noiva
viúva, aquela que as irmãs de S. José tinham feito nascer para a Crença e para
o Sonho...
E agora, após uma prostração de
meses, lá ia ela, num apartamento ordenado pelos médicos, em demanda do Rio de
Janeiro, para a companhia de uma tia, na esperança de toda a família de que a
imensa capital, rumorosa e álacre, conseguisse dissipar aqueles véus espessos,
afogando em esquecimento a funerária lembrança assoladora da existência de
Dora, e aguardando ela volvesse liberta para sempre de dores passadas, abrindo
outra vez, à alegria e à vida, a sua alma de vinte anos...
Talvez que semelhante cousa
viesse a suceder mais tarde.
Mas, toda a viagem, a viúva e noiva
triste, conservou inclinada languidamente, sob a tule espessa do véu, a face
empalidecida, imaculada e virginal de monja.
Rio— 1895
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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