domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Velada"

VELADA
A Leopoldo de Freitas

Em frente ao Rio Grande, o Itaoca bramia surdamente pelas grossas chaminés desprendendo fumaça. O longo casco asseteado, que varava as ondas, engolindo as distâncias a milhas, na sua velocidade de expresso, retesava, à proa, a forte amarra inglesa, oscilando levemente, mergulhada já a faixa rubra do fundo, na planície das águas. Pronto e carregado, estava a largar nesse instante para o Rio de Janeiro. E como um cavalo de raça, todo ele fremia, impaciente da demora arfando, dando golpes de hélice, abrindo a rade em frisos trêmulos de espuma.

Escaleres e lanchas, vindos de terra a toda a força de remos, manobravam e davam à popa, junto ao leme, abalroando-se às vezes na pressa da atracação. Catraieiros aos gritos, num tumulto, xingavam-se mutuamente, em protestos hostis — uns, de pé, brandindo os croques contra o patamar da escada, ou sobraçando malas e bagagens; outros, debruçados da borda os braços estendidos, amparando as embarcações. Passageiros retardados, da última hora, ansiavam, mudos em meio à balbúrdia, pelo portaló do paquete. E escada acima, um fervilhar de corpos e volumes, em demanda do convés.

No alto, à balaustrada, o imediato, a tez queimada e cor de papoula, berrava para os botes, ordenando que atracassem também pelo outro lado. Dizia mesmo palavras ásperas aos boteleiros recalcitrantes, tratando rudemente a todos, na azafama da partida, indignado por deixarem tudo para os últimos momentos. Inflava-se tanto que o comandante julgou dever intervir:

− Mas, para que essa rascada? Temos tempo... O navio não precisa disso; em chegando lá fora come léguas...

E voltando-se para os passageiros, que curiosamente olhavam tudo aquilo, acrescentou:

− Quatro ou cinco dias levam os outros vapores até ao Rio de Janeiro; para o Itaoca tal viagem é questão de quarenta e oito horas...

E, mãos nos bolsos do grosso jaquetão de pano piloto, atacado de alto a baixo e contornando-lhe densamente as formas robustas, subiu para o passadiço correndo sob os toldos brancos.

À ré, num recanto isolado, junto às gaiútas da câmara, sentada em uma cadeira de viagem, uma moça, espécie de miss, envolta em custosa pelica, parecia alheada de tudo. A fisionomia, bela e triste, túmida de lágrimas, mostrava através o véu espesso que a cobria, as equimoses de uma longa amargura. Os cabelos, ondulados e bastos, caíam-lhe pelas costas em madeixas escuras da maciez do cetim. E seus olhos formosíssimos reluziam vagamente, num encanto doloroso, sob o pranto que fluía.

Ao seu lado, uma figura de governanta, esgrouviada e velha, lembrando, na face, o perfil de uma avestruz, procurava consolá-la, dizendo-lhe de instante a instante:

− Não se aflija mais, Dora! Procure distrair-se. Olhe que a senhora assim se está matando...

E permaneciam ambas indiferentes às manobras e ruídos em torno, voltadas para os lados de terra, olhando saudosamente a cidade e o recorte meridional arenoso da Lagoa dos Patos. Aí a planície infindável corria longinquamente até o horizonte, tendo apenas, de espaço a espaço, grossas intumescências ou traços fugidios de arvoredo, nas margens rasas dos rios. Para oeste, longe, nuvens densas de inverno, faziam como o vago desenho de serras, ondulando em recortadas silhuetas. E para leste, entre as duas pontas aguçadas da costa, o rasgão azulado da barra, espumando em gigantescos velos de prata...

Afinal, o paquete zarpou em direção ao pontal do sul, onde se ergue a torre esguia do farol, semelhando à distância o chifre colossal de algum rinoceronte fantástico, cujo focinho monstruoso mergulhasse no mar; e, em pouco, entrou a cabriolar na tumidez bramante das ondas, rolando em vagalhões alterosos e cobrindo de largas rendas de espuma a vastidão curva das praias. Nos bancos de areia a água torvelinhava, enovelava-se em fofos alvacentos de arrebentação, dando um sinal e um aviso de lugar temeroso aos transeuntes da barra. A um lado, os cômoros de S. José do Norte, de uma alvura imaculada, pareciam colinas de gelo. O oceano bramia furiosamente, numa perpétua revolta de costa indomável, recordando os mares bravios do norte da Europa, onde a vaga jamais dorme na sua ronda infernal.

Os passageiros, amedrontados com os balanços do vapor, nas vagas curtas do canal, num temor de morte ou na repugnância do enjoo, recolheram-se logo às cabines. E foi só quando os vagalhões amainaram, em pleno mar largo, por ocasião do chá à noite, que de novo se reuniram, numa algazarra alegre e na camaradagem íntima das viagens, deixando as profundezas das celas de bordo.

Os olhos baixos e tristes, as lágrimas mal contidas da moça passageira, o véu espesso ocultando o rosto, a estranheza da face excêntrica da governanta, tinham lançado a bordo uma curiosidade intensa. Na desocupação da viagem, todos estavam curiosos por saber a história da triste criatura e a origem do seu pranto, que jamais estancava, teimando em fluir involuntariamente daqueles olhos de miss. Indagavam insistentemente, num zumbido segredeiro correndo de lábio a lábio o salão do paquete; e, por fim, se soube todo o caso misterioso por um velho estancieiro de Bagé, que vinha num camarote, muito prostrado pelo enjoo.

De Bajé era também a moça, e na cenografia pitoresca dos arredores dessa cidade de campanha, se tinha passado um nobre romance a dois. Um filho de fazendeiro, instruído e opulento, com um porte fidalgo e o dandismo característico dos rio-grandenses, e que se educara na Europa, fora o galã dessa história de amor. Quando voltara definitivamente à sua terra, mais fidalgo e mais dândi que dantes, fascinara irresistivelmente a adorável timidez de uma das filhas de um tio estancieiro, uma prima formosíssima, chamada Dora, e que tinha sido educada nas irmãs de S. José, em Porto Alegre. A jovem, após seis anos de colégio, tornou a Bagé, justamente por aquele tempo da chegada do primo. Toda ela era uma beleza seráfica, com a diafaneidade de uma Virgem de missal. Jamais namorara, e era um lírio. A sua prece, no rosto lindo, dava-lhe a atitude ideal da figura de um quadro célebre, A oração, que a reprodução oleográfica, abastardando a genialidade do grande artista que o fizera, espalhou por todo o mundo. O seu perfil de santa medieval, tocado de uma auréola mística, dava-lhe a placidez, a humildade e a resignação das Horas Marianas e da Imitação de Cristo. Mas a natureza, colocando-a frente a frente ao belo guasca elegante, traspassou-a vivamente com a espada das paixões, flamejando-lhe o ser na faísca dos afetos supremos. Amou violentamente, arrebatadamente, a celeste criatura, na intensidade de um único amor triunfante...

Entretanto, o robusto rapaz, fidalgo e dândi, que suscitara as flamas daquele sentimento, caiu de repente aniquilado por um tifo dos campos, durante os calores candentes do verão, nas imprudências de cavalgatas e caçadas ao sol brutal, escaldante. O rude golpe prostrou Dora para sempre...

A mesma violência que mostrara ao amor, votava agora à viuvez ou a orfandade de seu coração. E, dentro em pouco, a Heloísa que existia nela feneceu, e em seu lugar reapareceu a freira de outrora, de espessos véus e fronte mística de anjo, a velada do Senhor, a noiva viúva, aquela que as irmãs de S. José tinham feito nascer para a Crença e para o Sonho...

E agora, após uma prostração de meses, lá ia ela, num apartamento ordenado pelos médicos, em demanda do Rio de Janeiro, para a companhia de uma tia, na esperança de toda a família de que a imensa capital, rumorosa e álacre, conseguisse dissipar aqueles véus espessos, afogando em esquecimento a funerária lembrança assoladora da existência de Dora, e aguardando ela volvesse liberta para sempre de dores passadas, abrindo outra vez, à alegria e à vida, a sua alma de vinte anos...

Talvez que semelhante cousa viesse a suceder mais tarde.

Mas, toda a viagem, a viúva e noiva triste, conservou inclinada languidamente, sob a tule espessa do véu, a face empalidecida, imaculada e virginal de monja.


Rio— 1895


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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