A HÉCTICA
Ela costumava passear todas as
manhãs, à sombra das altas árvores copadas, na larga rua arenosa e agreste
daquele arrabalde.
Eu via-a passar muito pálida, de
uma fragilidade de lírio, vagarosa e ofegante, com esse ar indiferente e
desolado das moléstias crônicas, que sugam pausadamente, sorrateiramente a
vida. Tinha o olhar lânguido, frio e saudoso das pessoas exaustas, perdidas,
que se sentem desmoronar aos poucos.
Trazia sempre um waterproof
azul-marinho, com uma fita de seda preta envolvendo-lhe a cintura delgada, e
cujas pontas esvoaçantes caíam-lhe, por detrás, em laço. Nos seus ombros
curvados, e pelas espáduas deformadas e ósseas, o grosso tecido de lã murchava
desoladoramente, em pregas longas e tristes.
O pai, um velho magro, de
fisionomia agradável e respeitosa, ainda ereto de robustez, os cabelos
algodoados pelos anos, o ar gentleman, dava-lhe com segurança o braço e a
envolvia, muito carinhoso, em animações tão meigas e consoladoras, pronunciadas
a voz forte, que ela chegava a sentir, por momentos, alagar-lhe o coração ondas
de saúde, de envolta com essas palavras!
Achava-se até melhor, mais rija,
naquela grande esperança que acompanha intimamente os tísicos, e vinham-lhe
sorrisos rápidos, que lhe faziam contrair levemente os lábios desmaiados,
deixando a descoberto a claridade alinhada dos dentes sãos; fitava o velho com
alegria, com ternura: era a sua saúde!
Mas logo depois, o nervosismo, o
histerismo faziam-na cair numa nostalgia funda, de todas as horas, num
pressentimento vago e fatal de túmulo próximo; e então desatava a chorar
perdidamente, aparecendo-lhe, com mais violência, uma tosse seca e tilintante,
acompanhada de ruídos soturnos na caverna do peito e borbotões quentes de
sangue vivo...
Uma manhã, deixou de dar o seu
passeio costumado. O Azul estava fresco e cintilante, alastrado de luz, cheio
de aromas e cantos, cortado da alegria da terra. O sol surgia claro e
magnífico, confortador e bom.
Passei todo o dia com a
imaginação cheia da lembrança dela, preocupado, temeroso, na incerteza do que
lhe teria acontecido. À tarde, um tropel de gente, no rumor discreto e pacato
daquele arrabalde provinciano, fez-me chegar repentinamente à janela.
E deparou-se-me a cena lutuosa de
um cortejo fúnebre: um esguio féretro azul balouçava, carregado por seis
homens, das alças finas de veludo. Acompanhava-o um grande séquito de luto. E
um velho alto, descoberto, a figura espectral, a cabeça alvíssima inclinada
sobre o peito, como ao peso de uma desgraça, seguia, com passos incertos, à
cabeceira do caixão. Tinha os olhos arrasados de pranto e soluçava alto como
uma criança. Reconheci-o num ah! de dolorosa surpresa...
Era ela, a triste e desventurosa
criatura que eu via passar todas as manhãs, que partia agora para além, e que
nunca mais, nunca mais voltaria!...
Desterro — 1885
---
---
Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
Nenhum comentário:
Postar um comentário