domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "A Héctica"

A HÉCTICA

 Ela costumava passear todas as manhãs, à sombra das altas árvores copadas, na larga rua arenosa e agreste daquele arrabalde.

Eu via-a passar muito pálida, de uma fragilidade de lírio, vagarosa e ofegante, com esse ar indiferente e desolado das moléstias crônicas, que sugam pausadamente, sorrateiramente a vida. Tinha o olhar lânguido, frio e saudoso das pessoas exaustas, perdidas, que se sentem desmoronar aos poucos.

Trazia sempre um waterproof azul-marinho, com uma fita de seda preta envolvendo-lhe a cintura delgada, e cujas pontas esvoaçantes caíam-lhe, por detrás, em laço. Nos seus ombros curvados, e pelas espáduas deformadas e ósseas, o grosso tecido de lã murchava desoladoramente, em pregas longas e tristes.

O pai, um velho magro, de fisionomia agradável e respeitosa, ainda ereto de robustez, os cabelos algodoados pelos anos, o ar gentleman, dava-lhe com segurança o braço e a envolvia, muito carinhoso, em animações tão meigas e consoladoras, pronunciadas a voz forte, que ela chegava a sentir, por momentos, alagar-lhe o coração ondas de saúde, de envolta com essas palavras!

Achava-se até melhor, mais rija, naquela grande esperança que acompanha intimamente os tísicos, e vinham-lhe sorrisos rápidos, que lhe faziam contrair levemente os lábios desmaiados, deixando a descoberto a claridade alinhada dos dentes sãos; fitava o velho com alegria, com ternura: era a sua saúde!

Mas logo depois, o nervosismo, o histerismo faziam-na cair numa nostalgia funda, de todas as horas, num pressentimento vago e fatal de túmulo próximo; e então desatava a chorar perdidamente, aparecendo-lhe, com mais violência, uma tosse seca e tilintante, acompanhada de ruídos soturnos na caverna do peito e borbotões quentes de sangue vivo...

Uma manhã, deixou de dar o seu passeio costumado. O Azul estava fresco e cintilante, alastrado de luz, cheio de aromas e cantos, cortado da alegria da terra. O sol surgia claro e magnífico, confortador e bom.

Passei todo o dia com a imaginação cheia da lembrança dela, preocupado, temeroso, na incerteza do que lhe teria acontecido. À tarde, um tropel de gente, no rumor discreto e pacato daquele arrabalde provinciano, fez-me chegar repentinamente à janela.

E deparou-se-me a cena lutuosa de um cortejo fúnebre: um esguio féretro azul balouçava, carregado por seis homens, das alças finas de veludo. Acompanhava-o um grande séquito de luto. E um velho alto, descoberto, a figura espectral, a cabeça alvíssima inclinada sobre o peito, como ao peso de uma desgraça, seguia, com passos incertos, à cabeceira do caixão. Tinha os olhos arrasados de pranto e soluçava alto como uma criança. Reconheci-o num ah! de dolorosa surpresa...

Era ela, a triste e desventurosa criatura que eu via passar todas as manhãs, que partia agora para além, e que nunca mais, nunca mais voltaria!...


Desterro — 1885

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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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