TZAR
Ao Dr. Gama Rosa
Ele era o inacessível, supremo. A
sua vontade trazia trêmulos e angustiados noventa milhões de súditos. Os
pensamentos destes homens morriam inexpressos, temerosos da onipotência fatal
do gigante autocrata. Uma palavra, uma suspeita faziam voar em trens expressos
para a Sibéria os delinquentes, num degredo tumular.
Nas grandes revistas de cem mil
homens os estandartes da Nação, coroados pela águia de ouro, com o insígnias
fracas, abatiam-se à sua presença real, num Te-Deum de aclamação. Quando
passava nas ruas, augusto e refulgente, envolvido no estrépito, nos brilhos
metálicos do seu séquito ostentoso e guerreiro, deixava, por sobre as multidões
aglomeradas, o deslumbramento e o assombro que assinalam a passagem dum trovão.
Havia em torno deste homem como
que uma atmosfera de força brutal, junto à sobrenaturalidade dum monstro
fantástico, cuja proximidade dava morte. Mesmo no seio do seu palácio, os seus
validos, a sua família, tornavam-se gélidos trêmulos à aproximação soberana,
porque havia nele a ferocidade rija das máquinas, das engrenagens e a crueldade
sutil e alucinante do cholera-morbus. Achava-se ali, no meio daquela imensa
Nação, como um formidável animal pré-histórico. O monstro tinha a intuição do
seu valor e da sua força: e nunca os seus lábios sorriam para ninguém, porque
não considerava semelhante ninguém!
Nas solenidades babilônicas da
grande corte do Neva, cercado do grupo dourado dos generais do Império, numa
sala feérica de decorações e constelada pela beleza exuberante e olímpica das
altas damas palacianas, colocadas ali às centenas, como os nobres dignitários
da Nação, em presença dos embaixadores de todas as potências do mundo, o grande
monarca, postado no meio das suntuosidades daquela quermesse oficial, no
cachoeirar estridente das orquestrações guerreiras, alheado de tudo,
prodigioso, sobre-humano — fugia para longe dessas glórias que detestava, e, de
olhar amortecido, sem uma palavra, sem um gesto, transportava-se para além,
para o ménage querido, onde estava a sua Amada, a deliciosa criatura pela qual
se sentia menino, gostando de chorar no seu seio.
Imaginava-a deitada sobre a
alvura flácida das peles de ursos brancos do polo, num pequeno divã, o corpo
docemente premido no seu roupão de veludo negro bordado de filigranas, o
pescoço e os pulsos envoltos na mornidão suavíssima dos arminhos da raposa
azul, feliz, à espera dele com sorrisos adoráveis e umas carícias que lhe faziam
tão bem!...
Sentia um enternecimento em
pensar nela e aspirava por chegar ao ninho tépido e perfumado onde era tratado
como um bebê, repreendido cristalinamente pelas suas faltas e castigado por
aquela mão rósea e cetinosa, que sabia, muito justa, distribuir a pena e a
recompensa. Queria inefavelmente mergulhar o seu rosto nos flocos de ouro
daqueles cabelos eslavos, para fugir ao perigo da sua onipotência, num remanso
carinhoso e sagrado. Dominava-o um desejo irresistível de humanizar-se, de
perder-se nas suavidades do sentimento. E tanto gozava daquela criatura divina,
que experimentava já a invasão deliciosa das ardentes meiguices de amor. Votava
lhe tal adoração que se enternecia e sofria saudades nas horas que não passava
a seu lado. E mudamente, em seu cérebro, durante a grande recepção, revolvia-se
convulsamente esta exclamação torturante: “Ah! como as suas funções de monarca
o privavam cruelmente daqueles sagrados encantos!...”
Então, ainda mais alheado de
tudo, o seu espírito fugia, internando-se pelo lar, numa ânsia de afeições.
O mundo que o cercava, esse mundo
ali prostrado a seus pés em contínuas oblações, desaparecia então por momentos,
como sob o nevoeiro dum sonho, e ele via-se já, o grande Imperador, entre os
gorjeios doces do ninho, cercado das crianças louras, os filhos do seu amor,
sentindo-lhes as mãozinhas carnudas baterem-lhe o rosto, revolucionando-lhe a
barba, sem brutalidade, sem cólera. Amava todas essas ternuras, enlevado e
comovido, aconchegando ao peito e beijando os celestes querubins. Depois ia
cair inebriado nos braços da sua Niwaia, que o enlaçava na sua eterna paixão...
Em pouco a solenidade terminaria
e ele retomaria a sua feição humana, subindo, com o coração palpitante, a
escadaria dourada do seu castelo de amor...
Mas, de repente, fez-se um palor
no rosto do Tzar: seus olhos amorteceram, extinguiram-se, e ele viu ao longe,
no horizonte imenso das estepes nevadas, uma multidão de homens vestidos de
luto, que se aproximada com a rapidez de uma Visão, e sentiu que uma bomba
enorme de dinamite, abatendo-se a seus pés, explodia, afogando-o em ondas de
lava.
Desterro — 1884
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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