EM VIAGEM
(À minha Mãe)
Esta novela, como em geral todos
os trabalhos do autor, tem muito da vida real, ou melhor, é formada de cenas ou
episódios vividos e longamente observados. Representa mesmo, e com cores as
mais verdadeiras, uma boa parte da sua infância. Foi com saudosos trechos de
reminiscências da longa e bela viagem feita a Havana e ao Rio da Prata, depois
de ter deixado o Colégio Naval, em 1879, que todo este livro se compôs, desde o
conjunto aos mínimos detalhes. — Mas é impossível que não haja nestas páginas
alguma criação da fantasia, dirá o leitor. Perfeitamente. Entretanto, a
psicologia, o sentimento, os encantos, as alegrias, como os sobressaltos e as
amarguras da vida de bordo, acham-se aqui, por assim dizer, fotografados. E
talvez o único mérito desta novela que, além de tudo, foi escrita com
verdadeiro amor por quem, descendendo de marítimos brasileiros e portugueses,
pelo lado paterno e pelo materno, e criado de menino a bordo e no pitoresco
litoral de Santa Catarina, adora os navios e tem uma profunda paixão pelo mar.
Rio de Janeiro – Dezembro de
1900.
I
Nessa manhã, a bordo, todos
irromperam alegres no tombadilho: era a bonança, o bom tempo, o sol. Havia seis
dias que ninguém punha o nariz fora da cabine, por causa da borrasca. Começara
por aguaceiros ao sul, numa madrugada, depois de muitos dias claros de norte.
Mas o vento, que caíra pelo sueste, rondara para leste, e o temporal se desfez
intensamente sobre o mar. O navio metera logo à capa para aguentar: gáveas em
terceiros, velacho baixo e bujarrona, alagado de proa à popa pelos vagalhões.
No alto, o céu torvo e revolto, em pastas dum cinzento molhado, vertia cordas
d’água incessantes. Sobre as escotilhas fechadas e o convés raso invadido
constantemente pelas ondas em fúria, que torvelinhavam e varriam tudo
despedaçando-se em altos rolos de espuma, como contra um cachopo isolado, a
mastreação e os cabos dançavam e assobiavam sinistramente, num sabbat
formidável. E à sinfonia disparatada e louca da torrente infrene, o brigue
rolara, dia e noite, aos boléus, sobre as vagas rugidoras. Tudo cessara, porém,
na véspera à noite, em que o céu festinara cheio de estrelas. E o oceano agora,
sob a imensa curva azul transparente, branco e espumoso ainda do colérico
vergastar dos ventos, estendia-se em redor, profundo, amplo e montanhoso, na
vastidão solene. A luz jorrava do alto cor de gema de ovo, acendendo na planura
líquida placas infinitas e rútilas. Nos longes alvíssimos, fechados, brumosos,
nem a mancha clara de uma vela — apenas o isolamento, o deserto.
À ré, sentados sobre a meia
laranja, à sombra do mastro grande, alguns passageiros, num grupo, faziam enorme
algazarra. Uma brisa de nordeste, muito doce, bojava as velas, deitadas a um
bordo. Panos de sol, como um estofo amarelo, riscado das sombras dos cabos,
estendiam-se no convés, a correr, nos balanços, de bombordo a boreste, por
debaixo das amuras. Havia ainda um grande jogo. De vez em quando, um ou outro
vagalhão mais alto borrifava a tolda, à meia nau, por cima da borda.
O capitão, um homem hercúleo e
grosso, era muito louro, de origem dinamarquesa, carregando uns quarenta anos
robustos. De pé, junto aos passageiros, o boné sobre os olhos, ria com os seus
belos dentes sãos, contando o que eram os temporais de inverno em toda a costa
sul do Brasil.
— Estavam agora mesmo — dizia
apontando com o braço estendido o horizonte ao largo — na altura do cabo de
Santa Marta, a um grau de terra, num dos pontos mais perigosos da costa. Ali
constantemente ocorriam naufrágios, porque o carpinteiro, todos os ventos rijos
do quadrante do sul, e os ciclones, nessa quadra do ano, trabalhavam dia e
noite o vasto litoral desabrigado. Sempre para baixo, desse ponto em diante, a
costa aumentava de perigo até ao Albardão.
Mas à popa, vestida de
azul-marinho, uma miss loura e forte estirava-se sobre uma larga cadeira de
lona. Tinha uma grossa brochura amarela sobre o regaço; e uma das mãos, muito
branca, marcava a continuação da leitura, mergulhada nas páginas, enquanto a
outra, pousada no espaldar de verniz, junto às tranças de ouro, fazia repuxar o
corpete na manga, desenhar-se amplamente a linha escultural da cinta, e, sob a
fazenda demasiado tensa, num contorno de couraça, o esplendor dos seios
túmidos. Parecia indiferente à conversa e seus olhos garços, límpidos,
virginais, cheios de desejos e preocupados, ora fixavam os mastaréus
oscilantes, as costuras simétricas do pano, as tábuas estreitas do convés, ora
o céu de azul e seda e o mar ressonante para além das amuradas.
Às vezes, quando o navio
caturrava mais violentamente na vaga, uma faixa de sol banhava-a, dourava-a
toda, caindo por entre as velas. Batiam-lhe então as pálpebras, os longos
cílios escuros, sob a luz intensíssima. Mas era só um segundo, porque a sombra
volvia logo, e ela reabria, sorrindo, os olhos deslumbrados.
A seus pés, dormitava, estendido,
guardando-a, um esplêndido terra nova, todo negro e de longos felpos
reluzentes. Era o vigia de bordo, que velava, à noite, durante os dias de
descarga nos portos, sendo também um recurso de primeira força na salvação,
quando algum homem ia ao mar, em viagem. Com um ano de idade, já tinha o
tamanho de um bezerro. O capitão trouxera-o pequenino da América do Norte a
última vez que lá estivera, e como o cão nadava prodigiosamente desde muito
novo pusera-lhe o nome de Golfinho.
Os passageiros continuavam a
tagarelar, na doce cordialidade de bordo, ouvindo dos lábios do capitão o claro
desfiar das tormentosas histórias do oceano. Mas a sineta, embaixo à porta da
câmara, bateu as sonoras tilintadas do almoço e todos desceram apressados.
II
O brigue tinha duas câmaras
magníficas — uma em cima, na tolda; a outra embaixo, na coberta. A primeira,
muito vasta, com embutidos de palissandra, incrustações e dourados, era como um
salão de steamer: um piano de meio armário, coberto de um pano verde bordado,
jazia à entrada, junto ao mastro grande, para alegrar os passageiros em viagem;
duas amplas mesas, forradas de um tecido cor de cereja, corriam a um lado e
outro; por cima, glassrak’s de madeira negra envernizada, guarnecidos de metal,
pendiam do teto branco; grandes espelhos de Inglaterra, cercados de douraduras,
abriam-se às anteparas; um largo corte no centro, quase em oval, coincidia com
a meia laranja, deixando jorrar para o interior toda a luz do alto; próximo,
mas a ré, uma descida comunicava as duas câmaras. A segunda era um
compartimento corrido, com camarotes às amuradas e um pequeno salão à popa para
senhoras, todo estofado a veludo cor de vinho e cheio de quadros, representando
trechos risonhos de campos e praias europeias, dentre os quais sobressaía, ao
fundo, uma bela tela de mar alto, assinada por Joseph Bury.
Tais acomodações, luxuosas e
raras nas embarcações à vela, davam uma singularidade ao navio, que havia sido
paquete nas viagens da Oceania, carreira da Austrália, para que fora construído
especialmente por um rico armador de Londres, ex-embarcadiço, cuja fortuna
colossal tornou-se, em poucos anos, das mais consideráveis da Grã-Bretanha, o
que o levou, logo após, a abandonar o comércio e os navios, e entrar na
política, liquidando a casa ao ser eleito deputado, isto aos cinquenta anos de
idade.
O brigue, que se denominara
outrora Rose of England, fora casualmente vendido para o Porto, sendo o seu
novo proprietário um velho português do Douro, atarracado e sanguíneo, perfeito
tipo do master, rude marinheiro, trabalhador e tenaz, que possuía uma enorme
ambição e uma sede incomparável de riqueza. Mal se arranjara nas trabalhosas
viagens da Índia, começou logo a comprar navios, mandando também construí-los
nos estaleiros de Vila do Conde. E como por esse tempo um movimento enorme de
Portugueses para o Brasil inundasse o convés dos navios de vela, por serem
raros os vapores e muito alto o preço das passagens, tratou imediatamente de
encarreirar a sua frota para o Rio de Janeiro. Posto que rico e já idoso, com
toda uma descendência em Viana, terra em que casara e estabelecera o lar, o seu
entranhado amor ao oceano, onde rolara por espaço de quarenta anos de alegria e
saúde, junto ao entusiasmo da excelente compra do barco, levara-o de novo às
ondas, fazendo-o tomar o comando do brigue, a que, com enfatuação plebeia e
maruja, denominara — Sem Par. Mas o pobre lobo do mar, logo à primeira viagem,
uma manhã de verão, num dia de chegada ao Rio, ao ir para terra, caiu ao
portaló, com uma apoplexia.
O navio então fora à praça.
Comprara-o um valente marinheiro catarinense, o capitão Roberto Nielsen, homem
de longas viagens à América do Norte, ao Rio da Prata e ao Pacífico. O brigue
passou-se a denominar Ondina, uma doce e velha reminiscência da mitologia
escandinava, que fizera deliciosa impressão no espírito do Nielsen quando, em
menino, à noite, nos serões de inverno, agasalhado ao colo da mãe, junto à
chama amarela do candeeiro, ouvia ao velho Roberto, seu pai, as lendas poéticas
e nevoentas do Báltico, que este, por vezes, aplicava à terra catarinense e à
sua bela capital. Depois fora também em honra à sua filha mais velha que o
navio tomara esse nome.
No Ondina, em duas ou três
viagens aos Estados Unidos e ao Chile, o Nielsen levantara um pequeno capital
para carregar por sua conta; e, muito feliz nos primeiros carregamentos
dando-lhe grandes resultados, resolveu encetar imediatamente o negócio da
erva-mate, viajando entre Santa Catarina e as fortes praças comerciais de
Buenos Aires e Valparaíso, esta última já muito conhecida das antigas viagens.
Na impossibilidade de uma longa demora em terra, e principalmente no Desterro,
onde quase não tocava ao volver das grandes travessias no mar, instalara a
bordo a família, e, como o navio tinha acomodações de paquete, recebia também
passageiros para aqueles portos. As passagens eram muito em conta — uma terça
parte das dos vapores estrangeiros ou nacionais — o que fazia com que os
catarinenses e outros com negócios naquelas cidades, bem como os comerciantes
de lá com interesses nesse Estado do sul, procurassem sempre o Ondina para as
suas viagens.
E por isso ali singrava o brigue,
cheio de passageiros, na altura do cabo Santa Marta, num dos seus costumados
percursos ao Pacífico com escala pelo Prata. Jamais porém o colhera, nessa
latitude, tamanho temporal. Felizmente, o navio era como um pássaro nas vagas,
e apesar da tormenta desfeita não recebera a menor avaria. Satisfeito com tal
felicidade e com a segurança quase invencível do barco, o Nielsen,
excessivamente jovial e sem cansaços, respirava agora livremente, a rir e a
palrar no meio dos passageiros, o coração em festa na manhã dourada.
Todos tomaram lugar à mesa. Só a
filha do capitão, a moça loura que olhava os mastaréus e o Azul no tombadilho, desceu primeiro à outra
câmara, à cabine, onde deixou a brochura amarela, voltando daí a instantes, a
sorrir levemente com os seus lindos dentes claros. Mas em seus olhos glaucos
havia uma inquietação e melancolia. Ao sentar-se lançou em volta um olhar que
procurava vagamente alguém ou alguma coisa, e que se cobriu de repente de uma
leve umidade de lágrimas. Depois, reclinando-se um pouco no banco, pôs-se a
fixar o convés, lá fora, onde o pano se encurvava pardacento e em bojo. E ficou
como perturbada, a fisionomia um momento hesitante, uma contração nos lábios,
que empalideceram vagamente.
Um dos passageiros, ao lado,
inquiriu-a então:
− Mas o que era aquilo? Ondina
estava tão triste, tão silenciosa.
− Oh! não! ela era sempre assim;
murmurou, escarlate.
Os outros protestaram: “que não,
Ondina não era assim, ninguém melhor do que ela para brincar, gracejar...”.
Mas o capitão, que se demorava
ainda lá em cima, a dar ordens, apareceu, muito preocupado, como sob um peso
íntimo.
Os passageiros perguntaram-lhe
então assustados:
− Alguma novidade, comandante?
Mudança de tempo? nova borrasca?
− Não, era o piloto. Adoecera, o
valente rapaz, que vinha de dar a melhor prova de marinheiro às direitas
naquela viagem. Durante a borrasca secundara-o, a ele capitão, nas manobras com
um sangue-frio e coragem admiráveis. Sozinho, uma noite, na maior intensidade
do vento, a equipagem já exausta, fizera seis horas de leme sem fraquear! A ele
se devia, talvez, o estarem todos ali nesse instante...
E tomou a cabeceira da mesa com
um encolhimento de resignação nos ombros hercúleos, tordada agora a larga face
cheia de sol, de pele lisa e fina, onde o sangue afluía, cor de boa noite, num
jorro incessante de vida.
A moça, que o escutava,
preocupada, teve um tremor: e seu rosto rosado e límpido, no alto do vestido
azul-marinho, banhou-se de uns tons frios de lua em céu varrido por vendavais.
III
Na véspera o piloto recolhera-se
ao camarote pela madrugada, quando o nordeste se declarou trazendo o bom tempo.
Estendera-se no beliche extenuado, quase morto de seis dias e seis noites de
faina infernal, mal comido e mal dormido, como toda a campanha, sobre o mar
desmontado, no torvelinho da borrasca. Dormira um sono profundo, um desses
sonos que vêm após as grandes fadigas, mas acordara como se tivesse a cabeça
atulhada de pedras, volumosa, colossal. Não a podia erguer quase. Tinha os
beiços ressequidos, queimados por um calor interno, uma sede insaciável.
Um dos moços de câmara, ao vê-lo
assim abatido, correra logo a chamar o capitão. E como vinha a bordo um médico,
o Dr. Barroso, naquele dia muito prostrado no camarim com o enjoo, o Nielsen
desceu imediatamente a consultá-lo. O médico não se podia erguer, com tonturas;
mas inquiriu se havia acônito, mostarda, e receitou sinapismos, um suadouro.
− Depois, ver-se-ia... disse penosamente, numa angústia, tomado por
uma ansiedade de vômito.
O capitão subiu, apressado, para
aplicar os remédios, e após o almoço voltou a ver o doente, acompanhado por
alguns passageiros: ia bem, mais calmo, suando muito, sob um grosso cobertor de
Montevidéu.
A esposa do Nielsen, boa e
solícita sempre, com uma imensa piedade pelos sofrimentos alheios, uma senhora
robusta e bela apesar dos seus quarenta anos e dos seis filhos sãos que criara,
com os quadris amplos e fecundos de onde saíam titãs — lá estava já, com a
Ondina, a fazer quarto ao enfermo. Sentada num banco de lona, aconchegava a
roupa ao pescoço do rapaz, que, muito pálido, em suores, rolava a cabeça sobre
o travesseiro, sem poder abrir os olhos. Ao lado, por detrás dela, a filha, que
há pouco quase desmaiara na câmara, de pé, apoiada ao lavatório o fixava afetuosamente
com os seus olhos garços, que reluziam melancólicos. Desde manhã andava com o
coração opresso, porque ao subir para a
tolda, depois do temporal, o piloto não lhe aparecera como costumava. Sabia bem
quanto ele a amava, mas ficara aborrecida temendo lhe houvesse ocorrido alguma
contrariedade.
Esse afeto de ambos procedia da
infância, dos últimos tempos do Colégio Willington, onde tinham andado. Fora no
Desterro. Tinha ela nove anos, ele doze. Viam-se todos os dias, apertavam-se as
mãos, estavam juntos horas, porque ia sempre para as aulas com a irmã dele, a
Ritinha, íntima camarada e confidente, uma menina da sua idade, morena e de
grandes olhos negros, com longos cabelos cacheados. O rapaz era já robusto
nessa época, o Ioiô, como então o chamavam; mas o seu verdadeiro nome era
Carlos Vale. Alto, os olhos castanhos, os dentes alvos, um rosto grande e
redondo, a pele muito clara, impressionava as meninas, dando-lhes uma emoção.
Nesse tempo andava a tirar preparatórios para a marinha — e, um dia, pela
tarde, acompanhado do pai, do velho Guilherme Willington e de alguns camaradas
de estudo, lá embarcou para o Rio. Toda a família chorara desesperadamente, e
ela que estivera em casa dele, nesse dia, sentira então a sua primeira mágoa: à
noite chorara muito e só conseguira dormir muito tarde... Passados dois anos,
deixando a marinha de guerra, Carlos voltara à província, já quase um homem,
bonito e com um buço forte. Na sua grande paixão pelo mar, uma enorme vocação,
só falava em viajar, correr oceanos, terras longínquas — a Europa, a Ásia... O
pai embarcou-o, então, com muitas recomendações, em um navio espanhol que se
destinava às Antilhas, e daí a Barcelona. Partiu por uma manhã rumorosa de
abril, num fresco sueste que carregou a polaca. Voltou daí a seis anos, depois
de percorrer todo o Antigo Continente em numerosas viagens... A sua chegada ao
Desterro foi um acontecimento: não se falou noutra coisa durante dias, como sói
suceder em terras onde as notícias escasseiam. O clube Doze de Agosto deu uma
partida em sua honra, e o velho José Maria do Vale levou uma semana de festa na
sua chácara do Mato Grosso. Permaneceu em terra muito tempo, porque o pai,
homem de influência e chefe político do lugar, andava a arranjar-lhe um comando
de paquete na Companhia Nacional. Mas como isso tardasse, o rapaz, sôfrego de
novo pelo mar, apenas entrou o Ondina, tomou lugar de piloto a bordo. O Nielsen
chegava então do Prata, e o acolheu com efusão, fazendo-lhe todas as vantagens.
A família, que estimava o Carlos e o não via desde anos, teve uma grande
alegria ao saber que ele ia para o brigue; e houve verdadeiro júbilo, a bordo,
no dia em que levou a bagagem. Que de emoções experimentou então a Ondina, e
como se sentiu tão mudada! O seu amor, tão longamente interrompido, reatou-se
logo, e com maior intensidade, tornando-se em verdadeira paixão. Ao rapaz é que
lhe não sucedeu o mesmo, posto a estimasse ainda e correspondesse de certo modo
aos afetos; e isso era devido a uma grande toquade que sentia agora por uns
olhos peninsulares que lá deixara em Espanha, chamado de repente ao seu torrão
natal. No Desterro contava-se o “caso” vagamente, mas ninguém ousava
afirmá-lo...
Conquanto mais calmo, o doente
continuava ainda com uma febre alta. A moça e a mãe davam-lhe os remédios com
exatidão, não se retirando um instante do camarote, situado no convés, num
compartimento em frente à câmara. Daí, por uma larga vigia de vidro, dando para
ré, avistava-se todo o tombadilho.
Era a hora do meio-dia. O
capitão, junto à gaiúta, horizontava o sextante para a observação. Embaixo, na
câmara, o praticante, um rapaz de quinze anos mais ou menos, socado e rijo,
metido num jaquetão de flanela escura, espreitava o cronômetro. A meia tolda e
pelas amuradas, passageiros conversavam, em grupos. O contramestre, ao pé da
borda, assestava o óculo para leste, com os cotovelos erguidos. E marinheiros,
com um ar repousado e sereno, cachimbavam, num falatório, à sombra do traquete.
O mar desdobrava-se em torno, manso e transparente, em vagalhões corridos, apenas
levemente estriados de espuma. A barlavento, próximo, o sol cegava, em
combustão de ouro nas águas. E lá ao longe, os panos duma galera, seguindo para
o norte, à bolina...
IV
Durante três dias, o navio correu
à popa com tempo claro; mas na véspera à noite caíra um pampeiro, com rijas
bátegas d’água, obrigando-o a amarrar-se. Era uma quinta-feira de junho. O dia
amanhecera enevoado, triste, carregado de aguaceiros. O brigue rolava, aos
trancos, no mar muito cavado. Bordejava só em gáveas e velas de proa, sem fazer
caminho, porque as águas corriam ao norte como uma bala.
Naquela manhã, nem um passageiro
na tolda, além do intrépido D. Oswaldo, negociante chileno de Valparaíso,
acostumado à vida de bordo em constantes viagens de comércio e recreio a todos
os pontos mais importantes da América e da Europa — que se arriscara até ao
convés, enfiado em longa capa de borracha e grossas botas d’água. D. Oswaldo
era homem de trinta e cinco anos, baixo, trigueiro, os ombros largos, a barba
cerrada, um político terrível, inimigo pessoal de Balmaceda, então declarado
ditador. O seu tic era a política e as mulheres. Primava pela educação, o
cavalheirismo, a jovialidade. Odiava os reis, tinha uma paixão pela música e
adorava o Brasil, como todo o bom chileno. Solteiro, muito rico, dizia sempre
que, a casar-se, fá-lo-ia com uma “señorita brasileira, por que eran las mas
graciosas de la America”. Viajara todo o mundo, possuía um espírito vivíssimo e
culto, esmaltado por impressões multicores e universais. Tocava admiravelmente
violino, e nas noites claras e suaves, na tolda, dava serenatas esplêndidas.
Cantava. De um gênio afável, indizivelmente alegre, expansivo, ruidoso como um
bom latino, não deixava ninguém parar, a improvisar constantemente jogos,
diversões de todo o gênero. Isto o tornava, como em toda a parte, em geral, o
encanto dos passageiros, que o não largavam, atraídos numa grande simpatia,
exigindo frequentemente recreações e festas, para quebrar a monotonia dolente
de bordo.
Estava-se a 21 do mês. E como
eram vésperas de S. João, D. Oswaldo planeara já uma pequena matinée ou
concerto, que se realizaria em Buenos Ayres, caso o Nielsen quisesse ali
arribar, como os passageiros pediam. Subira, por isso, muito cedo, apesar do
mau tempo, para ver se conseguia o fim desejado. E falando ao capitão, expunha
a necessidade de tocar-se naquele porto, para arejar e desafadigarem-se da
terrível viagem, que fora feita até aquela altura sob ventos contrários.
Depois era até higiênico,
acrescentava, porque “alimpiavam-se” da funerariedade que a moléstia do piloto
lançara “a todos los recantos del buque”. D. Carlos achava-se quase
restabelecido. A festa seria em sua honra, em honra àquele que fora o salvador
de todos na tempestade, na viagem. Estava-se ao sul de Santa Maria, em 36º I5’
e puxava-se agora para terra. O que tinha, pois, uma demora de quatro ou seis
dias “en la gran capital del Plata?...”
O Nielsen, que percorria o
horizonte em volta, de óculo em punho, com o sueste carregado sobre a nuca, a
larga roupa de oleado até os pés, a escorrer sob as cordas d’água açoitando em
rajadas — respondia vagamente, preocupado com o tempo que ameaçava engrossar
cada vez mais:
− Pois sim, veremos, D.
Oswaldo...
O homem do governo, os encontros
gigantescos avolumados disformemente pela japona amarela impermeável, dando-lhe
um tórax de Titã, os pés nus no convés vergastado pela chuva, fazia girar, com
esforços poderosos e rudes, a roda do leme, olhando atento à proa.
De repente, o capitão gritou uma
manobra. Então, avante, marinheiros, toscos e anchos na roupa alcatroada,
galgaram as enxárcias sob o aguaceiro. Lá em cima, num mastro, uma verga, com
os amantilhos soltos, batia o pano já carregado. E fora das amuradas, onde
saltavam rolos colossais de espuma borrifando as velas, vagalhões, em
cordilheiras, rolavam incessantes na vastidão do oceano.
V
A 23, pela madrugada, o pampeiro
amainou. O vento soprava ainda do quadrante do sul, mas sem intensidade, muito
fino, cortante. O mar abonançava pouco a pouco; e as vagas dobravam, já meio
lisas, sem rebentação. Eram sete horas da manhã, uma manhã radiante, de pleno
sol, a bordo. O céu, no alto, estava de um azul fresco e lavado. Fazia intenso
frio, em cima, no convés gelado durante a noite. Não havia um passageiro no
tombadilho. Apenas os marinheiros, em vestes de lã e grossas botas, moviam-se
para todos os lados, na faina da manobra.
Nesse instante, o Nielsen, à ré,
junto ao homem do leme, mandava largar joanetes e sobres, com uma voz volumosa
e rouca, as mãos enterradas nos bolsos do espesso jaquetão de pano piloto, a
gola levantada, um gorro da Patagônia metido até as orelhas. Lá acima, quase no
galope dos mastaréus em perene oscilação, os moços, nos estribos em seio,
curvos sobre as vergas — largavam; enquanto, embaixo, os marinheiros alavam
braços.
O brigue corria agora com proa de
sudoeste, porque o Nielsen resolvera afinal arribar a Buenos Ayres, a refrescar
da viagem que de Santa Marta para o sul tinha sido uma lástima. O bravo
embarcadiço jamais conhecera um inverno tão feio, naquela costa. Depois que se
encarreirara para o Pacífico — havia seis anos — era verdadeiramente a primeira
vez que apanhava tamanhos temporais, ventos sempre pela proa, moléstia a bordo,
o diabo... Estava, pois, resolvido a vender o carregamento em Buenos Ayres e
tomar depois qualquer frete para o Chile, mesmo para descansar a companha,
totalmente exausta da trabalhosa viagem.
Havia mais de quinze dias que
aqueles rudes homens robustos não dormiam nem comiam sossegadamente, em luta
contínua com a borrasca. É verdade que o barômetro subia indicando bom tempo
dali por diante. Talvez ainda pudesse realizar a viagem perfeitamente, assim
que o vento se chamasse de todo ao norte, e viesse a montar o cabo de Horn em
princípios de julho... Mas não devia expor mais a maruja aos rigores e às
inconstâncias daquele inverno horroroso, que começara de assinalar-se por
vendavais seguidos; mesmo porque, em semelhantes paragens, com o barômetro alto
as tempestades caíam às vezes inopinadamente, subvertendo tudo!
− Não! não podia prosseguir,
concluíra.
Por isso mandou largar pano
aproveitando o vento. Achava-se então muito amarado, mas contava entrar em
Buenos Ayres no outro dia pela manhã.
O navio ia agora a um largo sobre
as ondas alegres, esplendidamente malhadas de sol.
VI
A mesa do almoço, nesse dia de
mar chão, como no princípio da viagem, esteve cercada de passageiros numerosos.
D. Oswaldo divertia a todos, muito feliz, na alegria da arribada. Dirigia-se
constantemente, borbulhante de graça, às irmãs Ana e Sofia Bauer, que estavam à
seu lado — duas moças teuto-brasileiras, que haviam perdido o pai das febres,
em S. Francisco, e que iam, com a mãe, para a companhia de um irmão, negociante
no Chile. Delgadas e níveas, com os seus vestidos afogados de luto, silenciosas
e puritanas, apenas sorrindo levemente, às vezes, lembravam bem duas virgens de
marfim, ou duas Imagens sagradas e medievas, nalguma igreja gótica da Germânia.
Uns alemães de Joinville, que eram levados a negócio ao Pacífico, e que durante
o temporal não se tinham despegado um instante dos beliches — regavam
largamente a refeição a cerveja, desforrando-se com bravura da abstinência a que
os condenara o enjoo. Uma família de S. Francisco, pela primeira vez vinha à
mesa, muito satisfeita, risonha e já mais rija com a proximidade de terra. O
marido, a mulher e as filhas tinham um ar desfalecido, os lábios brancos; mas
os pequenos, dois rapazinhos — um de cinco, outro de sete anos — negruchos,
enfezados, magrinhos, traquinavam pela câmara, desde a saída da barra.
O Dr. Barroso, que ultimamente já
não enjoava habituando-se ao mar, um médico que abandonara a clínica pela
política e o comércio, proprietário e sócio de uma grande companhia industrial
em Itajaí — parolava fluentemente, e com humorismo, a propósito de tudo,
desmanchando-se em gestos, no seu cacoete de baiano, a rir-se muito, com belos
dentes alvos, a boca larga e rubra, em beiços grossos, africanos. Era muito
calvo, a pele marrom claro, os olhos a faiscarem, papudos e concupiscentes, sob
os óculos de ouro. Político apaixonado, ex-deputado provincial em Santa
Catarina, no tempo do Império, vivia em renhidas discussões sobre formas de
governo com D. Oswaldo; e, em certas noites, ao chá, no doce conforto da
câmara, tinha “pegas” medonhas com o chileno, relativamente à vida interna e
administrativa das repúblicas sul americanas. Mas não se excedia jamais, sempre
polido e gentil, sem vozeirão ou notas ásperas, como um perfeito gentleman.
Dizia-se ainda monarquista, elogiando calorosamente o ex-imperador, chamando-o
de magnânimo, ilustre, sábio: “o primeiro monarca do mundo, que as velhas
nações da Europa veneravam!” No fundo, porém, sentia grande simpatia pela
República, e se falava era de certo modo por despeito, porquanto os
republicanos históricos que estavam na direção do Estado, rodeavam-se de muitos
dos aderentes da antiga política local, entre os quais alguns dos seus
correligionários e amigos, e o abandonavam acintosamente, deixando-o no
ostracismo. Isto feria-o de maneira dolorosa, quase íntima, sobretudo agora que
já estava “encarreirado” para as altas posições da política, tendo ocupado —
não havia ainda um ano — o cargo de presidente da província, exercendo-o
interinamente, durante dois meses, como 1º vice-presidente que fora.
O Dr. Barroso era uma verdadeira
vocação para a música, e, em menino, na Bahia, tocava tão bem clarineta que se
tornara extraordinariamente querido nas rodas em família, conquistando fama de
“criança prodígio”. Foi por isso que o pai, um velho alfaiate tocador de
violão, mas bem relacionado na melhor sociedade, e todo dado à política, pensou
a princípio em o mandar ao Rio estudar música, fazendo-o depois seguir para a
Itália, a ver se conseguia fazer dele “um Carlos Gomes baiano”, como dizia.
Contava para tal com o auxílio de altos personagens seus amigos, e
particularmente com um compadre, chefe conservador de prestígio da família S.
Lourenço, que lhe prometera arranjar uma pensão de D. Pedro II. Mas o pai
morreu dentro em pouco, sem realizar a sua ideia, e o rapaz, depois de muitos
incidentes, entrou a estudar medicina. Formou-se aos vinte e seis anos, numa
penúria constante, e, após o falecimento da mãe, deixou a Bahia, atirando-se
para o sul, ao acaso, em busca de futuro. Fixou-se então em Itajaí, uma pequena
cidade sem médicos, na terra catarinense. Abriu consultório e fez-se conhecido,
obtendo, em poucos meses, grandes simpatias e clínica. Casou rico. E, no
segundo ano de domicílio ali, muito estimado e com um nome feito, começou a
politicar. Tempos depois meteu-se no comércio; e ali ia agora de viagem para o
Chile, aonde continuamente o levavam negócios.
Ondina, ainda com uma vaga
melancolia nos olhos verdes e úmidos de saxônia, resto das apreensões em que
andara o seu coração nas duas últimas semanas, no mar alto, com a moléstia do
piloto — gorjeava alegremente junto aos pais, voltando-se de vez em quando, num
esplendor de sorrisos, com uma grande elegância de tórax, para o médico, que
gracejava, galanteava a seu lado, chamando-a de Valquíria, Princesa do Norte,
Visão dos Niebelungos...
A uma das cabeceiras, o jovem
piloto, já com o aspecto mais rijo e bastante jovial, o rosto menos tostado
pelo sol do tombadilho, cheio da radiação de um deus pagão, moço e vigoroso,
contava vivamente, e com amplos gestos decisivos, a um dos filhos do Nielsen, o
Melwille, a história dos Dragões marinhos. O menino finava-se de riso, derreado
nos seus braços, numa infinita expansão, todo carminado por um rico sangue de
seis anos, sangue de fortes raças heroicas, que os ventos salitrosos do mar
purificavam e temperavam, tonificando-o com iodo e fios de luz dourada. Ao
lado, as irmãzinhas mais novas, vestidas de flanela escarlate, rosadas e louras
como babies inglesas, eram servidas paternalmente por um dos alemães mais
idosos, cujos olhos, claros e pequenos, na face oleosa e próspera, vertendo
sangue, tinham uma expressão enternecida, trabalhados pela cerveja. À outra cabeceira,
o capitão, o ar atlético e repousado de leão intemerato, palrava
interessadamente, com outros alemães, sobre as Repúblicas do Prata.
O almoço terminou às onze horas,
no meio da calma relativa do oceano; e como os passageiros, muito bem dispostos
e num grande bom humor, rompessem a pedir música, para se festejar a arribada,
D. Oswaldo correu à cabine, em busca do violino, seguindo-o o Dr. Barroso, num
alvoroço. Daí a instantes voltaram ambos, subindo a escada, apressadamente, às
risadas, porque a rabeca de D. Oswaldo, com o álacre estouvamento dele, batera
embaixo contra uma das colunas, quase despedaçando a caixa.
Todos os aguardavam com
interesse, as moças como os homens, colocados em volta do piano, nos bancos de
veludo das mesas ou nos sofás das amuradas.
Ondina sentou-se então à
banquinha, abriu a tampa do teclado e, erguendo a pequenina estante de
sarrafinhos cruzados e pregados a taxas douradas, pôs-se a acomodar a música
que tirara de sobre o armário, acamando-a com os seus dedos claros onde um rubi
faiscava.
A esse tempo o Dr. Barroso e o
outro, de pé a um lado, afinavam os instrumentos, em sons leves de clarineta e
em curtos pizzicatos.
E daí a momentos começava o
concerto, com a linda valsa de Metra — A Vaga.
VII
Nessa tarde extremamente límpida
e dourada, navios de toda a ordem cruzavam, entrando e saindo o estuário do
Prata. Eram steamers colossais, ingleses, alemães, italianos e franceses, indo
para todos os rumos com grossos penachos de fumaça perdendo-se pela popa fora:
pequenos paquetes da linha costeira do Brasil: iates, brigues, lúgares e
galeras, de todas as nações do orbe, coalhando os mares de ouro da América
Austral, com as largas velas alvas.
Nas amuradas, à ré, os
passageiros de bordo, debruçados, viam passar a frota cosmopolita,
representando grande número de países, sobre o oceano sem raias. E esse
espetáculo admirável de marinha universal foi um entretenimento para todos, que
olhavam satisfeitamente a multidão imensa daqueles cascos cheios de vida, a
percorrerem familiarmente o mundo, num mando soberano nos mares, como outrora,
em visita às suas terras, faziam os senhores feudais.
Ao cerrar-se a noite, quando
chegavam as primeiras estrelas, muito acesas e rútilas no céu invernal, manchas
claras moviam-se ainda vagamente, aqui e ali, sobre as ondas escuras, como um
bando fantástico de albatrozes brancos vogando incerto nas águas. O vento
estava pelo nordeste. Em todo o convés resfriava-se.
Os passageiros principiaram a
descer pouco a pouco, com as carnes vergastadas dentro dos sobretudos de
inverno; e só D. Oswaldo, muito agasalhado num grosso casacão de peles de
Alaska, ficara a passear na tolda, pelo lado de bombordo, para “mirar” os altos
faróis, que já se avistavam na costa, ao sul, piscando as grandes pálpebras
luminosas, jorrando clarões astrais e pondo faixas de ouro nas vagas.
Ondina também, como toda a moça
de origem norte-europeia, não se abalava com o frio, sentada sobre a meia
laranja envolta numa peliça da Rússia, forrada com arminhos da raposa polar,
manto luxuoso e caríssimo, presente régio do pai, junto dela, o moço piloto,
que entrara de quarto, narrava-lhe interessantes histórias de viagens, à
claridade verde do farol de boreste, preso à enxárcia na borda. Pela tolda uma
vaga melancolia errava, penetrando os corações.
À proa, alguns marinheiros, com a
vida carregada de nostalgia, cantavam ao som dolente de uma guitarra, que se
fundia tristemente ao gemer do vento na cordoalha. Era uma velha canção que
dizia, num ritmo monótono e cansado, a tormentosa vida do homem do mar; e tudo
findava nela, trabalhos e dores, amarguras e saudades, tendo como recompensa
suprema os braços adoráveis da mulher:
E os marujos em seus lares,
Abraçando as mães e esposas,
Não se lembram mais dos ventos
Nem das ondas tormentosas.
O norte aguentava-se fresco e o
brigue, com a sua marcha de oito milhas e meia, despejava caminho, penetrando o
imenso estuário.
O rapaz e a moça, muito
achegados, em confidências intimas, ouviam distintamente as vozes saudosas e
apaixonadas dos marinheiros passarem no ar sentimentalmente, em notas grossas e
ásperas, desprendendo-se de gargantas másculas. E ambos entreolhavam-se,
enlevados.
A oeste, um clarão frio, esmaiado
como uma faixa de luz elétrica, vinha lentamente surgindo da linha negra do
horizonte: e, de repente, a lua, subindo da muralha à fusaín de nuvens,
acumuladas sobre o litoral, mostrou parte do disco além, branco e fulgurante
como um zimbório de gelo. Súbitas claridades lácteas envolveram tudo, banhando
o convés, as velas brancas, os mastros. Riscava, agora, extensamente a
superfície escura das ondas, uma galáxia de cristal, vindo quebrar-se, em
luminosos plissés de níquel, de encontro ao bojo do costado. Embarcações
fugiam, ao longe, saudosamente, com os panos muito caiados ao luar. Pesava um
vasto silêncio melancólico de mar e céu, apenas cortado pelo ranger monótono
das vergas e o siflar contínuo e vago do vento.
VIII
Ao deixar o quarto, nessa noite,
o Carlos Vale estava muito pensativo. Durante as longas horas passadas com a
Ondina, num enlaçamento traspassado de voluptuosidade e desejos, revelara-lhe
uma paixão que verdadeiramente não experimentava, e, numa arrebatação, chegara
mesmo a lhe prometer casamento. A moça ficara logo num contentamento, numa palpitação,
com uma onda de sangue na face; e, pela primeira vez, ali mesmo na tolda, junto
ao homem do leme, num enlevo e numa ingenuidade, cobriu-lhe o rosto de beijos.
Ele lhos retribuiu docemente, com uma flama viva nos olhos. Ao descerem ao
tombadilho, oscularam-se ainda uma vez. Depois, à porta da câmara, ao
despedir-se, ela agarrou-lhe as mãos com ternura, dizendo-lhe segredeiramente,
a voz nervosa, hesitante:
− Então, você me peça, Carlos...
Você me peça amanhã, sim?...
E desapareceu, com um leve rumor,
na escassa iluminação da câmara, totalmente deserta àquela hora avançada da
noite.
O rapaz voltou ao cata-vento, a
esperar o Nielsen que o tinha de render: parara um instante na borda,
refletindo mudamente no compromisso em que caíra, num desses acessos de
embevecimento e volúpia tão comuns no marítimo. E perplexo, as ideias meio
baralhadas sob a responsabilidade tomada, deixava os seus olhos vagarem indiferentemente
pela natureza em torno.
O disco amplo do mar mostrava-se
agora, grandioso e feérico, onde cordões faiscantes se abriam na rebentação
espumosa. O vento, que ia escasseando para a madrugada, punha nos cabos e nos
mastros, um som doce de casuarina. No alto, o luar de inverno, muito límpido,
de cal.
Carlos então, apoiado à amurada,
entrou a contemplar tristemente a luz argêntea da lua e a larga superfície do
monstro, barreade de malines de prata: Uma saudade cismadora e vaga, como a
claridade que o envolvia, penetrava o seu espírito e o seu coração de um sopro
frio, que, à maneira da brisa sacudindo as folhas secas, despertava-lhe as
recordações.
E a ideia muito viva daquela que
verdadeiramente amava, e que lá estava em Espanha à espera dele, torturava-o,
ferindo-o em pleno peito. A imaginação reproduzia-lhe nitidamente todo o seu
viver dos últimos tempos em Barcelona, nos amplos vagares da Escola Náutica, e
as deliciosas semanas passadas no pueblo de Caldetas, em casa do velho
Maristany, junto à Dolores, flor de beleza e de graça, dourada pelo sol da
Catalunha. Era uma límpida, adorável criatura essa menina, desabrochando nos
seus quinze anos primaveris: morena, de um moreno doce e peninsular, fascinava
pelos olhos negros a arderem, com toda a claridade solar da Ibéria, sob os
longos cílios de veludo; os lábios deliciosamente talhados, frescos e úmidos
como a polpa dos morangos; cabelos pretos, reluzentes, derramando-se pelo dorso
e fluindo em bastos crespos sobre a fronte pura de virgem; o colo túrgido,
alto, forte, admirável, de onde saíam os seios, arredondando-se sob o corpete
como dois frutos capitosos. Tinha um perfil original e artístico e descendia,
pela mãe, velha formosura de remontada origem aragonesa, de priscas estirpes
fidalgas. Medrada à beira d’água, numa linda enseada, um ninho litoral, feliz e
cheio de verdura, onde o Mediterrâneo adormece, azul e plácido, junto à areia
branca das praias, experimentava uma nervosa, singular afeição pelo mar. Amava
os navios, arrebatava-a a fascinação das viagens; e a sua cabecinha inquieta de
castelã medieval, fantasiava uma constante habitação a bordo, no oceano, em
meio de todas as sensações, numa vida singular e desigual. Em criança
percorrera com os pais vários países da Europa e da Ásia, estivera na Havana e
nas Filipinas. Mas fora isso aos dez anos, e nada a bem dizer gozara. Depois o
velho D. Juan Maristany, antigo capitão e armador de navios, procurara o
interior, a Nova Castela, onde se fixara para a educar e ao irmão, que estudava
em Madrid. E cinco anos depois, de novo se instalara na sua bela propriedade de
Caldetas, onde Dolores entrara a sentir com veemência o indômito amor do mar.
Ali um único desejo intumescia o peito fantasioso da catalã, e era poder unir
um dia o seu destino ao de um marítimo. Fora assim que se apaixonara por
Carlos, na doçura e na intimidade de uma longa convivência, recusando a mão de
um nobre guipuscoano, original rapaz, célebre pelos seus oito duelos
complicadíssimos, sua elegância de sportsman, e suas façanhas de caçador de
ursos nos Altos Pirineus. Carlos correspondera desde logo, e com igual impulso,
à paixão de Dolores, não se tirando jamais de ao pé dela, em casa, nos teatros
e nos clubes. Era como se fossem noivos. Os pais, apesar de filha única,
exclusivo objeto de todo o seu afeto, de toda a sua ternura e adoração, em tudo
consentiam, por estimarem profundamente o rapaz, a quem tratavam como filho.
Depois desejavam mesmo que se viessem a casar.
Um dia, no último ano dos estudos
de Carlos, D. Juan Maristany e a esposa, deixaram-nos ir sós a Mallorca, a uma
festa em casa de um parente chegado. A viagem era quase de um dia, e partiram
por uma madrugada de ouro, trêfegos e venturosos, no encanto de junho em toda a
Espanha oriental, à maneira de dois noivos felizes que vão gozar longe o seu
noivado. Voltaram na outra semana, numa tarde cinzeira em que sobreviera um
temporal ao largo. Tiveram logo de abandonar a tolda, que o mar inundava quando
os vagalhões batiam de través, para se irem refugiar no camarote, onde ela, num
temor, e nervosa como uma criança, estivera a noite inteira agarrada a ele, a
chorar... Só desembarcaram no outro dia, pela manhã, porquanto o vapor custara
muito a romper o mar, atrasando a viagem. Saltaram alegres, recordando a
travessia excelente da ida, com o Mediterrâneo em bonança; os horrores da
volta, sobre as grandes vagas; a semana irrequieta e esplêndida das festas em
Palma; a pequena excursão a certos pontos da ilha, como Martacor, Santa Maná e
Inca, a aldeia dos montes; e o piquenique a Cabrera, em meio às rochas
escalvadas, depois da pitoresca visita às rumas dos templos fenícios de Astarte
e de Baal-Moloch...
Daí por diante, Dolores
mostrara-se ainda mais louca por ele. E ao concluir o curso de náutica, já
esquecido da terra natal, com unia lembrança quase extinta da Ondina e da
capital catarinense, para onde deixara de escrever logo após os primeiros seis
meses de ausência — nem pensava mais em sair da Espanha, quando foi
surpreendido, como por uma pancada súbita, por um telegrama do pai,
participando-lhe a morte da mãe e chamando-o à pressa ao Brasil. Ante o
despacho lutuoso, ficou a princípio atordoado, a duvidar da verdade; mas,
virando e revirando o papel entre as mãos, e relendo-o com calma, convenceu-se
afinal e prorrompeu um pranto.
Dolores, junto dele,
arrebatou-lhe o telegrama, e, muito aflita, foi cair desfalecida sobre um
pequeno divã. Manistany e a esposa acudiram imediatamente, a saber o que fora.
Carlos narrou-lhes tudo, e recolheu-se ao seu quarto, a pensar na partida, tão
cruel nesse instante para o seu coração. Dias depois, abandonava Caldetas,
tomando passagem num paquete costeiro para Barcelona. Foi numa quinta-feira de
dezembro — e no outro dia, pela tarde, já se achava instalado na primeira
classe dum steamer da linha de Marselha, o L’Amérique du Sud. Durante os
primeiros dias, viveu a bordo isolado de toda a alegre e ruidosa camaradagem,
segregado de tudo, num recanto deserto da tolda, a olhar, cheio de dolorosas
saudades, a amplidão do oceano e o lado luminoso do céu pôr onde se afundara a
Espanha. A Dolores fora o seu primeiro amor de homem! Estimara, amara mesmo a
Ondina, mas como se ama uma irmã, quase com um desses amores fraternais, sem
violência e suaves, da puerícia, e que um dia desaparecem sem se saber como,
com o crescimento e os anos. Mas a outra, não! amara-a profundamente,
virilmente, como um leão...
E com o espírito abatido,
esmagado ao peso das recordações, Carlos sentia-se tomado duma grande angústia,
como na tarde em que deixara a Espanha. Agora, sob a opressora promessa que
vinha de fazer a Ondina, é que a Dolores, já como que perdida para a sua
afeição, lhe aparecia num ideal esplendor de beleza, aureolada pela nostalgia e
a distância. De resto, o que mais o torturava era a certeza do “estado em que a
deixara” ao partir. E seu peito abria-se, sob esse pensamento cruel, como
atravessado por um gume álgido. Lembrava-se de ter recebido a bordo, ainda em
Barcelona, uma carta dela, tão cheia de fé ingênua e da esperança de que ele
voltasse, que ficara desalentado... Esmiuçava tudo com um dolorimento agridoce,
sofrendo e gozando, enterrado naquelas faltas que o laceravam como espinhos
agudos. Recordava-se de tudo muito bem: dos terrores dela ao sentir-se quase
mãe, das frases confusas e loucas com que lhe comunicara esse fato, chorando,
conhecendo-se desonrada, cheia de sofrimento e vergonha. Era horrível, Santo
Deus!...
Mas o capitão surgiu de repente
no tombadilho, falando-lhe com a voz ainda rouca do sono:
— Então, alguma novidade? Quantas
milhas andamos?...
O Carlos Vale aproximou-se e,
depois de informá-lo minuciosamente sobre as últimas quatro horas de marcha,
meteu-se no camarim. Aí, quase sem se despir, atirou-se ao beliche, exausto e
num grande desânimo.
IX
Daí a dois dias, num alvorecer
nublado, entrava-se em Buenos Ayres. Os passageiros, alegres, correram acima ao
convés ainda alagado da baldeação. O dia pardacento, gelava. Sobre as águas,
cascos altos flutuavam, em manchas negras informes, envoltos na bruma invernal,
a cordoalha esbatida, aparecendo em trechos vagos no ar empastado, como uma
imensa teia de aranha rasgada. A cidade estava toda velada: aqui e ali, muito
longe, se desenhava uma torre, a fachada dum palácio...
À proa do brigue, havia um grande
movimento, na faina da amarração. O Nielsen dava ordens num vozeirão,
preocupado com os navios em roda, enquanto o piloto mandava safar o ferro, as
amarras. De repente, houve um rolar sonoro de elos e um forte mergulho n’água.
Fundeava-se.
Os marinheiros acudiram em
seguida à meia nau, a largar o bote pequeno, que estava dentro da lancha, sobre
as escotilhas. Cabos de laborar rojavam agora pelo convés, num safa-safa
terrível; e o esguio escaler, guindado às talhas dos turcos, então torcidos
para dentro, foi, em rápida reviravolta, lançado fora, no mar. E logo, um moço
desceu a botar o tapete, calar as forquetas e desengatar os cadernais.
A visita, porém, demorava.
Pelas nove horas o sol jorrou,
louro e quente, rompendo o manto brumal: e subitamente, a New York do Sul, a
grande capital do Prata, o coração da Argentina, desvendava-se a todos, clara e
plana, de mármore. No vasto ancoradouro, como em todos os diques, navios de
vela, steamers, pequenas goletas e rebocadores, em aglomeração extraordinária,
destacavam, no céu nítido e azul, as grossas chaminés e altas cruzes dos
mastros.
Os passageiros, em alegre
algazarra, olhavam a terra e os barcos, debruçados da borda. Mais à ré, a
Ondina conversava risonhamente com o Carlos, sentados ambos à gaiúta. E D.
Oswaldo, ao portaló, falava entusiasticamente com o Dr. Barroso sobre o Brasil
e seus imensos Estados, aos quais augurava um futuro admirável em toda a
América Meridional, comparando a capital brasileira à capital do Prata, e
colocando a primeira em grau maior de adiantamento e superioridade. O baiano,
sorrindo com os seus dentes alvos, arregaçando-lhe a face larga e obesa,
roseada pelo frio, satisfeito com aquela arribada que lhe permitia ir passar
deliciosos dias em terra — retorquia-lhe jovialmente, muito fraternal, com a sua
voz ciciosa e cheia de ss.
Os alemães de Joinville, altos e
espadaúdos nos grossos bismarcks de pano claro, a gola erguida, tomavam
seguidamente conhaque, à amurada, de pé. As irmãs Bauer, finas como duas
galgas, alvas e louras na alpaca negra das vestes, formavam com a mãe, mais à
popa, um grupo triste e discreto. Sentada em linha num banco, junto à meia
laranja, a família de S. Francisco, amarela e fraca, tremia enrolada nos xales
desbotados de lã: o pai, ao lado, o rosto chupado, o cavanhaque maltratado da
viagem, tinha um olhar de desalento, puxando contínuos escarros: as crianças,
magrinhas, e vivas, esvoaçavam por toda a tolda, a trinar como andorinhas. A
mulher do Nielsen, aos balaústres, muito rosada e com as mãos erguidas à altura
dos olhos, binoculizava a cidade: o filho, forte e intrépido, como um Hércules
infante, brincava com o terra-nova, procurando firmar as grossas patas peludas
do cão no alto corrimão da borda, gritando-lhe:
— Eh! Golfinho! Hip!...
Marinheiros, à proa, estendiam
roupa em cima do castelo e nos patarrases do beque.
A visita chegou, quando todos iam
já a descer para o almoço.
Então o chileno, o Dr. Barroso e
os alemães, não querendo esperar mais, mandaram atracar o bote de bordo que
estava a largar, pois desesperavam por um largo repasto em terra para se
desforrarem opiparamente dos vinte e oito dias de “salame” no mar. Mas antes de
pôr o pé no escaler, D. Oswaldo foi até a câmara lembrar ao capitão que estavam
a 24 de junho, dia de S. João, e que, conforme se combinara lá fora, arranjaria
à noite um pequeno concerto. Prometeu voltar pela tarde, com alguns amigos e
famílias conhecidas, e correu a todos com gentileza, risonho e serviçal,
oferecendo-se para “lo que quisessem de tierra.” O Dr. Barroso acompanhava-o
nos oferecimentos, como um bom camarada. Os alemães, hirtos e secos,
indiferentes às amabilidades latinas, egoístas e duros como homens de negócios,
que eram, já haviam embarcado sem se despedirem. Os dois desceram então
apressados, voltando-se ainda para a porta da câmara, as mãos erguidas em
adeuses, por entre repetidos “até logo”!
X
Desde a tarde que o Nielsen e a
mulher andavam num regozijo, porque o Carlos, ao jantar, pedira a mão da filha.
O rapaz, suplantando o coração, num momento difícil fora “obrigado” àquele
passo, pois a moça narrara à mãe tudo o que entre ambos ocorrera na véspera à
noite, na tolda. Depois, pela manhã, na rápida palestra íntima que os dois
costumavam ter na câmara, ela declarou-lhe isso mesmo numa ingenuidade de
virgem, e, tomada de um enternecimento, a voz súplice, rogara-lhe que a
“pedisse” aos pais nesse dia:
— Você me peça, Carlos, eu já não
posso mais! Desejo ser tua, viver contigo para sempre...
Tinha sido uma “entaladela”, da
qual se não pudera livrar, pois “já dera a sua palavra”, comprometendo-se
inopinadamente, num momento de intimidade e ternura em que não soubera ser
“forte”.
— Fora talvez uma cilada —
pensava dirigindo a limpeza do navio — aquela noite em que os haviam deixado
longas horas a sós! Mas o que fazer depois do que sucedera? Não podia voltar
atrás, o passo estava dado! Agora era aguentar, resignar-se, sofrer...
E sentia um grande aborrecimento
contra si mesmo, contra o Nielsen, a família e o próprio navio, repugnando-lhe
de certo modo a festa que se ia realizar. Toda a tarde andou arredio da câmara,
esgueirando-se da noiva, a pretexto de ocupações, da direção do serviço. Mas o
seu pensamento vagava longe, muito longe, na Espanha...
À noitinha, D. Oswaldo e o Dr.
Barroso voltaram numa lancha a vapor, acompanhados de alguns amigos, de
distintas matronas, e dum rancho alegre de moças. Havia a bordo uma profusa
iluminação, vendo-se ao longe pelos discos luminosos das vigias no casco. Um
farolete ardia a meio mastro grande, cobrindo de larga claridade os portalós e
todo o tombadilho.
Ao avistarem a lancha, já muito
perto, o capitão e o piloto acudiram à escada, onde todos se gruparam em
seguida, prorrompendo em exclamações de boa acolhida aos que chegavam.
Ergueu-se após um forte ruído de atracação. Diálogos cruzavam-se da lancha para
o brigue. A escada tremia, em grandes esbarradas e baques. Croques tateavam o
costado, nos altos, com grandes bicadas de ferro. À proa da lancha, marinheiros
gritavam, altercavam, perturbados pela escuridão que lhes roubava a perícia.
O Carlos desceu logo ao patamar
de baixo, a dar a mão às damas que saltavam, enquanto o Nielsen as conduzia
pela escada até ao portaló, onde se aglomeravam a família e todos os
passageiros. Aí agora era um reboliço, uma algazarra de pessoas em festa, por
entre abraços e beijos, e apertos de mão inumeráveis. E logo os convidados se
dirigiram para a câmara, resplandecendo magnificamente pelos seus espelhos,
pelos seus metais muito limpos.
Entre as famílias argentinas
vinha um insigne rabequista brasileiro, Alberto de Lemos, em concertos pelo
Prata naquela ocasião, sob um rumor de triunfos que começara na Europa. O
ilustre artista fora apanhado casualmente em terra por D. Oswaldo, com quem se
relacionara intimamente em Paris, havia quatro anos, e viera até a bordo porque
o Chileno não o largara mais, após os primeiros abraços trocados. Empolgara-o
com a sua doce, excelente camaradagem, os seus modos boêmios e artísticos, e,
depois de um abundante jantar à Champagne, num restaurante célebre, convidou-o
para a festa. Imediatamente despachou um próprio ao hotel a buscar o violino do
maestro, e, sem atender a escusas, conduziu-o para o cais, obrigando-o a
embarcar.
Toda a câmara do brigue estava
lindamente ornamentada: o navio não parecia ter chegado de viagem. Por toda a
parte um reluzir de luzes que punha pontos diamantinos pelos cristais dos glass
rak’s. Tapetes alastravam, em grandes panos, o chão de oleado a ramagens. As
anteparas faziam ressaltar os frisos e arabescos dourados à claridade profusa;
e os espelhos de Inglaterra, refletindo e espaçando tudo, lembravam o
esplendor, o asseio e o luxo de um salão de a classe, num steamer das
Messageries.
Os convidados acomodados nos
sofás de veludo, examinavam detidamente toda aquela câmara suntuosa de navio de
vela, e indagavam a origem de semelhante luxo num barco de carga, porque em
tudo aquilo havia decerto uma história curiosa. O piloto gentilmente explicava
que o brigue tinha sido paquete na carreira da Austrália e pertencera outrora a
um lord. Esse homem, uma das maiores fortunas de Inglaterra, e antigo oficial
de marinha, uma ocasião, tivera de ir com a família a Sydney visitar uma filha,
e escolhera aquela embarcação para a viagem, porque era a melhor dentre a
imensa frota que possuía, sendo ainda raros, então, os navios a vapor. Mandara
para isso ampliar-lhe toda a câmara, dando-lhe uma acomodação e ornamentação de
steamer. Ali a bordo, há anos, ao entrar o brigue o Tâmisa, de volta da
Oceania, dera se uma soirée marítima que ficara memorável. O Times trouxera da
festa descrição minuciosa...
Mas todos abandonaram bem
depressa a história do navio para dar atenção a D. Oswaldo, que, com extrema
distinção e jovialidade, os braços no ar, agitando-se e fazendo grimaces,
contava delicadas e interessantíssimas anedotas, no meio das moças argentinas
que soltavam sonoras risadas. Ondina era quem mais falava e ria no grupo
adorável, a pedir ao Chileno a repetição da Subida ao S. Gotardo. Era a
história engraçadíssima dum inglês excêntrico, que se despenhara dum cabeço de
gelo, no cume da montanha, após mil peripécias grotescas. D. Oswaldo narrava-a
admiravelmente, dando uma hilaridade absoluta. O maestro, o comandante, as
moças argentinas e os demais passageiros, sentados em volta, junto às mesas,
não continham as gargalhadas, todos curvos, os rostos rosados, os ombros a
tremerem nas sacudidelas do riso.
Mas D. Oswaldo cessara para dar
lugar ao maestro.
E, momentos depois, pelas dez
horas, o concerto começava com a nostálgica composição — As Palmeiras. Era uma
fantasia sentimental de Alberto de Lemos, que fez despertar, nos de bordo, uma
saudade do Brasil. Os Argentinos, rapazes e moças, gostaram muito, aplaudindo
ruidosamente, com o grande desejo que tinham de conhecer o país do maestro. Ao
mesmo tempo, à proa, no castelo, os marinheiros cantavam sob os toldos, ao som
gemente da harmônica, enquanto por cima, no alto azul do Espaço, a noite
resplandecia, salpicada de estrelas.
Em seguida à bela composição de
Alberto de Lemos, D. Oswaldo e o Dr. Barroso executaram brilhantemente a
Primavera de Mendelsohn, e, logo após, a Phantaisie Hongroise, de Liszt. Todos
bateram prolongadas palmas.
Fez-se uma pausa. A conversação,
os ditos, as graças, as risadas voltaram, mais vibrantes. Licores e doces
circulavam.
Mas, a pedido do Chileno, duas
moças argentinas, fortes, belas, graciosas, de pestanudos olhos negros, com uma
doçura e um timbre ideal de voz, cantaram, em dueto, uma habanera langurosa,
dum ritmo balançado e dolente, que fizera época em Buenos Ayres havia meses.
Intitulava-se Fuego del corazon e fora escrita pela filha dum general,
verdadeira beleza porteña, célebre pelo fulgor dos olhos pretos e os modos
doidivanos, que a levaram a abalar, um dia, da casa paterna com um alferes de
cavalaria... A música dizia bem, numa melodia arrastada e lânguida, a ansiedade
e os desejos dum coração cheio de amor.
Houve uma grande salva de palmas.
As moças, coradas, sorrindo, agradeciam, olhando em redor, com um aéreo mover
de cabeça: ― “Gracias!... Gracias!...”.
Ondina cantou então um magnífico
trecho do Guarani; e Alberto de Lemos, a pedido de todos, começou a tocar Le
Papillon.
O arco correu sobre as cordas — e
um som límpido desprendeu-se, alegre e vívido como um trinar de pássaros num
alvorecer estival; e, por entre ondas de melodia que se evolavam do instrumento
a cantar, tangido pelos dedos artísticos
numa execução extraordinária, todos evocavam, no espírito, a larga visão
luminosa de uma manhã tropical no campo, em que borboletas esvoaçam, um sol de
ouro fuzila...
— Lindo! muito lindo! exclamavam
arrebatados.
D. Oswaldo e o Dr. Barroso
correram logo a abraçar o maestro.
Seguiram-se então as danças, que
duraram até a madrugada, hora em que os convidados entraram a retirar levados
nas embarcações de bordo. D. Oswaldo, gentilmente, escoltou-os até o cais.
E assim, graças às qualidades e
ao gênio comunicativo e alegre do cavalheiro chileno, que tão bem representava
ali a sua pátria — a célebre noite tradicional se passou festivamente e na mais
pura cordialidade, a bordo do brigue catarinense, fraternizando, numa mesma
expansão afetiva, o coração chileno com o coração dos brasileiros e dos filhos
do Prata.
XI
Na manhã seguinte, as principais
folhas argentinas trouxeram, redigidas clandestinamente por D. Oswaldo, longas
notícias sobre a festa, com referências lisonjeiras ao Brasil e ao povo de sua
capital.
O brigue, conquanto já bastante
conhecido ali de outras entradas, tornou a ser muito visitado por curiosos de
toda a espécie e por oficiais de marinha de alguns vasos de guerra estrangeiros
surtos no porto. O Nielsen, muito solicito e gentleman, recebia alegremente os
visitantes, acompanhando-os por todo o navio, mostrando-lhes tudo
circunstanciadamente e oferecendo-lhes depois cerveja na câmara.
Mas, decorridas semanas, no
tombadilho deserto havia como uma saudade: a ausência da animação que ali
reinara, em horas felizes, durante a viagem e nos primeiros dias da chegada.
A família do Nielsen
desembarcara, para gozar um pouco de outras comodidades e libertar-se das
estreitezas de bordo, ávida já de passeios em terra, com uma nostalgia das
casas, dos animais e das paisagens. Hospedara-a em seu lar um amigo de infância
do Nielsen, o Ireneu, antigo embarcadiço, que adquirira a princípio “alguma
cousa”, como prático dos transportes e couraçados que iam para o Paraguai, pela
guerra, vindo depois a enriquecer com a grande fazenda de criação que
estabelecera nas proximidades da grande capital argentina.
A mãe Bauer e as filhas tinham
saltado com uma família alemã conhecida que as fora buscar a bordo; os outros,
pouco a pouco também, desertaram. Só a gente de S. Francisco, desprovida de
recursos e sem conhecimentos na cidade, permanecia no brigue, aguardando, numa
espera pacífica, a continuação da viagem. Estava agora animada, e todos
mostravam uma fisionomia restaurada, risonha e saudável, fora da perturbação do
mar alto. O velho, o carão chupado, já conversava e ria, falando da herança do
filho, que morrera em Santiago, onde deixara propriedades, valores e uma casa
comercial, de que se ia empossar dentro em breve. Os negociantes alemães,
desesperados com a demora, tomaram o primeiro vapor que passou para o Pacífico.
D. Oswaldo, esse triunfava,
rejubilava-se, porque viajava por gosto, apreciando, com um requinte fin de
siècle, as viagens lentas e impontuais que fazem rolar, longos dias, no mar. A
sua fantasia de espanhol, amante de perigos e cheia de singularidades,
desagradava muitas vezes a precisão matemática da derrota dos steamers, que, à
saída de um porto, dão logo o dia e hora da chegada àquele para onde se
dirigem, quebrando assim o encanto de viajar-se na incerteza de quando a terra
se há de mostrar, de repente, à proa. A viagem a vapor servia-lhe só para
urgências comerciais, realização de negócios. Adorava o navio à vela, no seu
grande tic fantasista de amor à vida do mar.
O Dr. Barroso, como houvesse
resolvido levar pelo sul todo o resto do ano naquela excursão de recreio e
comércio não se lhe dava igualmente com a demora, mesmo porque lhe era de
utilidade passar ali um mês, para tentar algumas operações na Bolsa. Buenos
Ayres andava babilônica e feérica por aquele inverno.
O jogo da Praça dava milhões. A
República festinava às mãos de Juarez Celman, numa ruidosa alegria de
quermesse, e expandia-se vigorosamente, exibindo-se a capital platense com um
elétrico esplendor de Paris, atraindo a atenção, a cobiça da Europa e do mundo.
Rios de opulência e de ouro cruzavam, por toda a parte, o solo, ostentando os
tesouros inesgotáveis da Argentina.
O Carlos Vale, desolado a bordo,
na ausência dos alegres passageiros, quando a família de S. Francisco se
recolhia ao camarote corrida pelo vento gélido das tardes, ficava sozinho à
popa, tomado de uma grande nostalgia. À balaustrada de boreste, com o olhar
pensativo, mirava ele agora descuidosamente o pano de um lúgar espanhol, que
saía muito carregado. Assestando o binóculo ao costado, pode colher-lhe o nome,
gravado a letras brancas na borda — Amistad.
— O Amistad! fez então
intimamente, numa recordação, a sorrir emocionado.
Conhecia o navio. Era de Masnau,
da propriedade e do comando do excelente velhote à capitão Pagés, com quem se
dera em Cuba na sua primeira viagem. E vivamente surgiam-lhe no espírito,
inolvidáveis, as lindas noites de luar a bordo, em Havana, quando na tolda do
Amistad se reuniam os capitães de todos os navios catalães, ali a carregar. D.
Francisco Pagés cantava então uma série de picantes, engraçadíssimos couplets à
guitarra... Que saudade, santo Deus!...
Retirou-se da borda ainda mais
triste, e entrou no camarim. Aí, estirado sobre o beliche, imerso em suaves
recordações da sua vida passada, revendo pela imaginação pedaços da Espanha
adorada, avistava ainda pela vigia, ao longe, as velas brancas do lúgar
cortando a vaga azulada...
XII
Dias depois, vendido o
carregamento, o brigue começou a descarga. Vieram então essas longas semanas de
trabalho a bordo, em que os braços se movem de manhã à noite, como os guinchos
de carga. Abertas as escotilhas, o carregamento nascia do porão e escoava-se
para os grandes saveiros atracados ao costado.
O Carlos Vale, agora, passava os
dias ocupado a notar os volumes no seu carnê de piloto, na forma universal,
rude e primitiva da talha — quatro riscos verticais, cortados obliquamente por
um transversal, abrangendo os traços de um extremo a outro, e semelhante a um X
mutilado. O Nielsen vinha diariamente ao navio, mas não se demorava, quase
absorvido pelos negócios. O rapaz, na grande faina, só tinha ido duas vezes à
terra. A sua vida era o trabalho e, nas horas vagas, palrar um pouco na tolda
com uma das filhas da família de S. Francisco, a mais nova, uma menina de um
rosto meigo, moreno, os olhos negros, inefáveis. Com ela entretinha-se ele
longas horas, às vezes; ao passo que outras, quando não se lhe deparava esse
encanto, levava num aborrecimento, a cismar, até que um poente admirável vinha
ferir-lhe a abstração, barrando as águas de nácar. Ao anoitecer, quando o frio,
muito afiado, se tornava insuportável no tombadilho, fechava-se no camarote. E
longo tempo, amolecido e nostálgico na quentura do beliche, o seu pensamento
trabalhava, trabalhava... Eram sempre lembranças da Espanha, em cujo fundo
nebuloso passava e perpassava infinitamente a imagem de Dolores, num abandono e
num isolamento como uma Senhora da Soledade que ele vira, uma vez, numa igreja
em Madrid. Quanto não sofreria a Dolores, coitada!...
Erguia-se então, remexia as malas
nervosamente, e abrindo o rico cofre de sândalo chapeado de ouro, que a moça
lhe dera um dia, pelos seus anos, tirava uma linda fotografia que ela lhe
enviara de Cartagena. E, demoradamente, virava e revirava, sob os olhos, o
grande cartão de orlas douradas. Via-a aí toda de negro, como uma dama antiga e
trágica, formosa e de uma linha ideal, o torso docemente inclinado sobre uma
fila de balaústres, num alto, olhando saudosamente o mar, que se abria a um
canto, longe, em frisos brancos ondeados. O cenário da fotografia mostrava uma
miranda restaurada dos tempos púnicos, de onde, decerto, damas guerreiras e
apaixonadas viram palpitosamente, outrora, chegar as galés poderosas de Aníbal,
trazendo as tropas que iam marchar sobre Roma... A querida ausente parecia-lhe
mais magra, agora, nas tintas violáceas do retrato: os olhos, grandes e belos,
tinham uma luz de pranto; o rosto, níveo e juvenil, muito espiritualizado,
cobria-o uma alvura de marfim, do marfim velho e medievo das imagens. Media
então, mais nitidamente, esquadrinhando tudo, pesando tudo, “o passo errado que
dera”, quando já não sentia pela Ondina senão uma vaga impulsão carnal. Sim!
porque o seu verdadeiro amor, o amor que o dominava, era pela outra, que o estava
ali apunhalando de dolorosa saudade, a outra, que lá deixara na Espanha
adorada!...
— Ah! que mal andara e quão louco
que fora! Mas não podia agora desenvencilhar-se da “palavra dada!” Tinha de
sofrer, sem remédio, todas as consequências de um “passo em falso”, cruzando os
braços, deixando-se ir!...
Abriu o camarote, sob o peso
destas recordações amargas. O bafejo álgido do vento de inverno bateu-lhe o
rosto em fogo, fazendo-o experimentar um bem-estar, como a sensação de braços
amigos que se lhe estendessem, com robusta sinceridade, para o amparar num
despenhamento. E longas horas, pela porta entreaberta, os seus olhos se
pregaram longe, num vasto pedaço da noite, que reluzia no alto todo coberto de
um rosário de astros...
XIII
Em terra, a Ondina aborrecia-se
com saudades de bordo; e nessa manhã, na casa de campo do Irineu, para onde
fora a família passar alguns dias a excursões na campina ilimitada, debatia-se
num tédio, encolhida e triste como uma rola doente. Os pampas, crestados pelo
inverno, davam-lhe uma desolação, tornando-lhe desbotados e monótonos, pelo
isolamento, os dias que passava longe do noivo. Ainda a principio, na impressão
agradável de um espetáculo novo, percorrera trefegamente todas aquelas
paragens, e sentira um alegre interesse pelos quadros amplos dessas paisagens
rasas, banhadas de um vago encanto. Gozara muito, dias inteiros em carro para
todas as direções; mas viera logo a saciedade, a monotonia dos países a
planuras. Apenas decorreram semanas, todo o seu maior desejo era voltar, voltar
de uma vez para bordo. Depois, o procedimento do noivo, que ainda a não fora
visitar, enchia-a de profunda tristeza, e, embora o pai lhe afirmasse que o
rapaz “não podia quase ir à terra, pela responsabilidade da carga”, não queria
acreditar. A mãe consolava-a igualmente, posto que no íntimo, como toda a boa
mãe, experimentasse já certas apreensões e cuidados. E assim, abstrata e
contemplativa, perdia pouco a pouco a sua luminosa vivacidade. Nesses instantes
de aborrecimento o seu espírito fechava-se num grande silêncio e dolência.
Emagrecia dia a dia, e seus olhos, límpidos e transparentes até ali, começavam
a manchar-se levemente de um violáceo de olheiras. Àquela hora, envolta na sua
peliça, cismava languidamente, estendida sobre uma larga cadeira de balanço na
sala, quando uma voz conhecida e amiga veio arrancá-la a esse desalento,
estalando alegremente à janela:
— Permiso!
A esposa do Irineu,
imediatamente, com muita gentileza, vocalizou da varanda:
— Adelante! Adelante, caballero!
E, num perfume e num rumor
aristocrático de sedas, o rosto risonho, correu logo para a sala. Aí a Ondina
recebia já a D. Oswaldo e o Dr. Barroso, que vinham surpreender a família com a
sua visita. Madame Irineu, com o seu todo esbelto e nobre, muito florente nos
seus trinta e nove anos passados quase em contínua opulência, acolheu-os
afavelmente, como a velhos amigos da casa, desabrochando em sorrisos e palavras
cordiais.
A mulher do Nielsen surgiu após,
dirigindo-se aos dois homens com um amistoso e álacre “sejam bem aparecidos!”.
E o pequeno Melwille, que entrou daí a instantes, vindo de fazer uma galopada
com um peão pelo campo, o rosto escarlate do exercício e do frio, atirou-se
ruidosamente para os braços do Chileno, de quem era muito amigo.
Travou-se então animada palestra
entre todos, tendo por assunto principal Buenos Ayres, o seu adiantamento, a
sua sociedade e a sua riqueza que parecia desafiarem agora todas as cobiças.
Interrompeu por instantes o alegre palratório a presença do Irineu e do Nielsen,
que chegavam de um sítio próximo por onde tinham andado a vilegiar desde o
romper do dia. E o alvoroço subiu de ponto, quando os quatro homens entraram a
abraçar-se, saudando-se fraternalmente:
— Oh D. Oswaldo!
— Oh Dr. Barroso!
— Comandante!
— Sr. Irineu!
Um criado apareceu quase
imediatamente, com uma grande salva de prata cheia de garrafas e cálices,
servindo conhaque e rum. E logo, em toda a vasta sala campestre, com as
vidraças já descidas ao vento frio que se erguera lá fora, e aquecida
confortavelmente pela chaminé a crepitar a um canto, aquela boa assembleia
entrou em grande confabulação íntima. Já o sol se encaminhava para a tarde,
esmaiando a sua luz no belo azul esgazeado e límpido do céu.
Daí a horas, apesar do minuano
algidíssimo, depois de um jantar opulento, servido cedo, conforme o hábito nas
fazendas pastoris, argentinas, partiram todos, bem agasalhados e enluvados,
para uma volta no pampa. O carro que os levava, um enorme carro descoberto,
patriarcal, rolava, sob o estalar vivo do chicote, tirado pelo arranco de
quatro cavalos possantes, que fumaçavam no ar frígido, fogosos e com um grande
relevo de músculos. Homens e senhoras, muito aconchegados nas suas peliças e
plaids, riam-se a bom rir às engraçadas histórias de D. Oswaldo, que, de pé em
meio deles, falava e gesticulava de um modo infinito...
A gigantesca planura em redor,
aqui e ali inundada de reses, parecia ampliar-se ainda mais aos olhos na
vertiginosa corrida, semelhando um estranho oceano, de superfície estagnada e
vagalhões espaçados e raros — as coxilhas. Entardecia lentamente. O sol ia
abrindo para oeste toda uma imensa mancha sanguínea, sobre que se recortava
esfuminhadamente, numa infinda barra azulada, de um contorno irregular, uma
cordilheira longínqua, coroada feericamente por cumiadas de neves fulgurando
como vidro. O sopro vivo do minuano continuo começava a crestar toda a relva,
malhando a vasta planície com placas de ouro esbatido. Para o sul, lá embaixo,
muito longe, na linha da Patagônia, as pastagens infindáveis, mordidas pelos
ventos austrais, corriam em ondulações meio fulvas, à maneira dum campo de
milho. Para os lados da costa e de leste, dir-se-ia cobrir o Atlântico como
frigidíssima escumilha alvacenta dum frost-smok polar. O gado mugia melancolicamente,
caminhando para os capões afastados, em manadas infinitas. E a primeira cinza
negra da noite se alastrava pelo espaço, onde vinham já apontando as estrelas,
que tremeluziam cor de ouro, em malhas hieroglíficas.
XIV
O navio, acabada a descarga, foi
fretado por uma casa inglesa para ir ao Peru receber um carregamento para a
Inglaterra. O frete era vantajoso, e a família de Nielsen, já reinstalada a
bordo, teve um imenso júbilo, porque aparecia-lhe agora o ensejo de visitar a
Europa, o que constituía desde muito a preocupação de todos. Depois o capitão
catarinense, apenas a prosperidade começou, planeara percorrer um dia, com a
família, esses velhos países por onde andara em menino, especialmente a
Dinamarca, que era para ele como uma segunda pátria, pois lá nascera seu pai.
Mas, homem de ambições e negócios, aguardara sempre uma oportunidade, que se
lhe apresentava agora, e nas melhores condições. Por isso apressou-se em fechar
o fretamento, tratando dos aprestos da viagem.
Devia arrancar do porto por
aquela semana; aguardava, porém, antes de o fazer, a resposta de um telegrama
do Pacífico, trazendo-lhe informações sobre a carga. O brigue já havia metido
lastro, e tudo a bordo estava preparado para a partida. No convés, sob os
toldos, sentiam-se agora o silêncio e os longos vagares que fazem bocejar a
maruja ociosa, sôfrega sempre de sair para o mar.
Nessa manhã, uma manhã dos fins
de junho, cheia de sol e sem brumas, o Carlos Vale, sentado à ré com a Ondina,
a contemplar o ancoradouro em volta, avistou de repente, apontando por detrás
dum steamer, à popa, levada por um rebocador, uma grande barca que entrava, e
que reconheceu logo. Era a Martin Godolar. De onde viria? Talvez de Espanha...
E, fixando a mastreação da barca, dando volta pelo lado de terra, por entre a
multidão de navios que estavam junto às docas, lembrou-se do Miguel Garau,
primo de Dolores e piloto de bordo, seu velho camarada dos bons tempos em
Barcelona. Teve então uma grande alegria, ao pensamento íntimo de que o amigo lhe
traria decerto notícias da Lola.
Mas Ondina, nesse instante,
chamou-lhe a atenção para o Golfinho, que saltava à proa, com grandes latidos
roucos, contra a enxárcia do traquete, onde o Melwille trepara, a brincar com
um pedaço de pau amarrado a um cordão. De cima dos enfrechates, o menino
gritava para o cão, concitando-o a pegar num pedaço de tábua, que içava e
arriava com destreza, a lograr o animal que embalde saltava contra a enxárcia.
O Carlos, mal olhara um instante
o brinquedo, voltara a seguir a barca, movendo-se pelo grosso virador do
reboque para um grupo de cascos ao longe: e os seus olhos tinham uma vaga
iluminação de saudade, sob um tropel de recordações tumultuando-lhe na alma! A
moça, a seu lado, falava-lhe agora da viagem e desse país do Pacífico que não
conhecia, e para onde o brigue devia em pouco singrar. Dizia-se apreensiva com
essa travessia, ainda em pleno inverno, por aquelas costas austrais, pois temia
que de novo apanhassem maus tempos, muitos ventos contrários...
O rapaz, distraído agora com os
seus fundos cismares, apenas lhe respondia, olhando o ponto distante onde a
barca amarrar.
— Que não; nem tudo eram rosas,
nem tudo tormentas.
E assim ficaram ainda longas
horas, sentados sob o toldo, na manhã muito clara.
XV
Desde a véspera que o Carlos Vale
assentara procurar, em terra, o Miguel Garau. E ao ler os jornais da manhã,
nesse dia, teve um grande prazer, por saber que a barca viera efetivamente de
Espanha. Ia pois receber noticias de Dolores e dos bons pais Maristany!
E foi com certo alvoroço que, ao
anoitecer, pela segunda vez nessa viagem, pisou o molhe principal da cidade,
àquela hora sem movimento, quase deserto ao vento frio do mar. Aqui e ali, em
alguns pontos, botes atracavam e desatracavam vindos dos navios em volta.
Deteve-se um pouco, examinando as pequenas embarcações em manobras, a ver se
descobria entre elas a da Martin Godolar, quando deu de repente com o Miguel
Garau, que marchava ao seu encontro, de braços abertos, falando-lhe em catalão.
Os dois estreitaram-se
afetuosamente, com os olhos úmidos de emoção, como irmãos que se encontram após
uma ausência de anos. Na verdade, existia entre eles uma afeição fraternal,
nascida de uma longa convivência e da similitude de caracteres e qualidades
morais. Depois, durante o curso da Escola Náutica, como nas correrias de
rapazes, em Barcelona, tinham sido inseparáveis e haviam vivido juntos até ao
momento em que o Garau embarcara para Cuba, numa polaca, na sua primeira viagem
de piloto. Desde essa data não se viam, mas o Carlos soubera recentemente, por
alguns capitães espanhóis, achar-se o amigo a bordo daquela barca, de que era
proprietário um tio rico de Badalona.
De braço dado, em vivíssima
conversação, sob cujo tumulto de palavras iam surgindo os quadros e cenas da
vida de ambos na Espanha, foram subindo o largo, devagar, para melhor gozarem
os lances saudosos que as recordações despertavam. E assim internaram-se
lentamente pelas ruas rumorosas da grande cidade, que já resplandecia em
profusa iluminação, cá e lá cortada de clarões de luz elétrica saindo das
vastas fachadas de casas comerciais.
Longo tempo vagaram nessa
conversação animada, até que, ao atravessarem um largo, depararam com o círculo
de gás flamejante dum pórtico de teatro. Entraram, falando ainda da Espanha,
por entre um borborinho de enchente. Era uma noite de première.
Pararam ao meio do jardim, cheio
de pequenas mesas de ferro, onde se acumulavam garrafas e copos. Em torno de
cada mesa havia um grupo de pessoas ruidosas, todas em geral muito jovens. Eram
rapazes de grandes bigodes, o cabelo quase à escovinha, enfiados em belos
sobretudos claros, o ar de figurino, modos orgíacos, despejados, com grossas
bengalas de castão de ouro e grandes anéis de brilhante. Alinhavam-se com eles,
intercaladamente, bustos alvos de cocotes manteúdas, vestidas de seda negra, o
colo e a cara muito caiados e tocados de carmim, o pescoço envolto em longas
boas de marta...
Procuraram então uma mesa vazia,
voltejando entre os grupos sentados e a gente de pé, esbarrando em toaletes
espaventosas, do alto das quais se voltavam momentaneamente, inclinando-se para
eles, rostos femininos, fatigados e túmidos, com olhos negros requebrando-se em
fingido langor, ao fundo de órbitas nanquinadas. Sentaram-se, por fim, num
recanto isolado, e entraram a cervejar por entre as ramagens enfezadas de
alguns arbustos e as folhas magras, lanceoladas de uns crótons, atormentados
pelo contínuo e cálido roçagar dos corpos e pelos golpes bruscos dos
ajuntamentos e das rixas inopinadas. Luzes flamejavam como estreitas através
desses feixes de verdura. E adiante, a poucos passos, no edifício aberto do
teatro, de onde saíam vozes enrouquecidas, cantando aos sons fracos de uma
orquestra de instrumentos de corda, desenrolavam-se, ao longo do travejamento
fino e rendilhado, filas inumeráveis de cabeças, todas negras na luz das
gambiarras que jorrava do fundo. Quando a orquestra e os cantos cessavam, havia
um largo chiar de pés, uma grande confusão de pessoas, que se levantavam e se
espalhavam pelo jardim...
Os dois, porém, continuavam
aferrados na conversa, interrompendo-se apenas, uma ou outra vez, para olharem
os ricos vestidos singrando elegantemente, num frufru de seda ou de saias
engomadas. Agora ocupavam-se de Dolores; e o Miguel Garau contava que ela
talvez já sé achasse em Montevidéu, conforme o que lhe dizia a carta recebida
na véspera da Espanha, e na qual se lhe participava a partida do tio Maristany, de Barcelona, havia um mês.
Não estranhara a comunicação, porque desde muito sabia da viagem do velho ao
Rio da Prata, pois vira o convite que lhe dirigira havia um armo o irmão, o tio
Benito, para que ele viesse assistir com a família ao casamento da afilhada, a
Cármen, a realizar-se naquele julho. Juntamente com a carta fora um cartãozinho
da noiva para Dolores, onde lhe pedia “por Dios” que não faltasse. Os pais
Maristany tinham acolhido com prazer o convite, e tencionavam embarcar em
melados de junho.
— Decerto eles já lá estavam,
acrescentava. E tanto que pretendia obter uma licença para os ir visitar àquele
porto. O tio Maristany pedira-lhe muito que o fosse ver, se acaso por esse
tempo a barca se achasse já em Buenos Ayres. Assim, tencionava seguir para o
Uruguai com a maior brevidade, e até, se fosse possível, no outro dia à noite...
E entre outras coisas, o Miguel
declarou ainda a Carlos que o maior empenho do tio, empreendendo, já tão idoso
e cansado, semelhante viagem, era o casamento dele Carlos com Dolores, pois a
rapariga vivia a toda hora num pranto,
quase louca... Por isso, após o casamento da sobrinha, pretendia seguir
para Santa Catarina, a procurá-lo...
— Depois do que haviam
conversado, ajuntou por último o Garau, Carlos o devia acompanhar a
Montevidéu...
O catarinense, que se “abrira”
todo ao amigo, ocultando porém os “horrores” da sua situação com a Ondina,
aceitou-lhe o alvitre, dizendo:
— Pois sim! Então partiremos
juntos. Hoje mesmo, vou falar ao Nielsen...
E sentia como uma imensa doçura
refrescar-lhe a alma, à ideia, que lhe surgia agora, de um desenlace rápido
para o “seu compromisso” com a Ondina. Pensava, com alívio, naquela
oportunidade, e deliciava-se mentalmente, pois ia “acabar com tudo”, pertencer
definitivamente a “outra”... Embarcaria para Montevidéu, pretextando o convite
de um amigo a quem não podia faltar, para uma festa naquela cidade. Diria ser
só por dois dias. Carregaria a sua mala de mão com algumas camisas, um costume,
e safar-se-ia...
Quase ao terminar o espetáculo,
ergueram-se, e saíram, já definitivamente ajustados para a viagem, que se
realizaria no outro dia à tarde.
XVI
Uma semana depois da partida de
Carlos para Montevidéu, chegou o esperado aviso do Pacífico que fechava o
negócio com a casa fretadora do navio. Estava tudo pronto para a viagem e
aguardava-se unicamente o regresso do piloto para se levar âncora. O Nielsen,
preocupado com a excelente monção que havia agora para o sul, telegrafou-lhe
logo que viesse; mas o dia todo se passou, e nada de resposta. Por fim,
anoitecera. No céu azul ferrete, de uma extraordinária transparência, entraram
então a reluzir as estrelas.
Aborrecido, e num rancor de
marítimo por mais aquele atraso, o Nielsen, pela segunda vez naquele dia,
expediu o bote à terra com um novo telegrama ao rapaz, e um outro a uma casa
comercial de suas relações, pedindo notícias dele. Esperava, entretanto, que o
Carlos chegasse até a manhã seguinte, o mais tardar. E enquanto o bote não
voltava, passeava na coberta, a grandes passadas de popa à proa; às vezes
parava um instante, à amurada, ou junto ao leme, olhando, para dissipar a
inquietação, os cascos e as mastreações dos navios, perdendo-se sombriamente na
noite...
Embaixo, na câmara já acesa, onde
havia um conchego agradável, a mãe Bauer e as filhas conversavam discretamente
a um canto. A uma das mesas do centro, as graciosas meninas do Nielsen, e o
valente Melwille, folheavam, muito entretidos com as gravuras, alguns volumes
do Graphic. Mais afastada, e encolhida nos longos sofás das anteparas, a
família de S. Francisco olhava, pasmada e triste, para a alegria ruidosa das
crianças em grupo. Os dois pequenos negruchos, que todo o dia traquinavam na
tolda, já haviam adormecido, estirados pelas almofadas próximas, na fadiga das
correrias da tarde.
A Ondina não aparecera durante o
dia, trancada no camarote, desalentada e a chorar por causa da ausência do
noivo. Desde a partida dele que o seu coração jamais serenara, cheio de uma
apreensão, de um temor. O seu espírito, sempre borbulhante e alegre,
sobrecarregava-se agora de profundas tristezas. Pressagiava coisas sinistras,
como a ideia de um desaparecimento, de uma morte... Parecia-lhe mesmo que ele
não voltaria mais!... E a este pensamento terrível, tinha ímpetos de gritar,
estrangular-se, morrer...
A mulher do Nielsen, como a filha
não viesse à mesa, ao jantar, apreensiva também com a demora do rapaz que a
todos causava estranheza — correra imediatamente a ter com ela no camarote. E
aí, como a visse muito chorosa, entrou a dizer-lhe com meiguice:
— Mas para que esse choro,
menina? O Carlos há de voltar. Teu pai já telegrafou... Decerto, chegará
amanhã...
Mas em vez de serenar, a Ondina
desatava mais vivamente em pranto; e gritava, numa crise histérica,
pronunciando palavras incoerentes, de louca. A mãe tomava-lhe então a cabeça
entre as mãos, apoiava-a contra o seio, cobrindo-a de beijos como a uma
criança. O rosto da filha, porém, afigurava-se-lhe varado de suprema angústia;
e a pobre senhora, por sua vez aflita, rompia a chorar em silêncio...
Lá em cima, no convés, o Nielsen
continuava a passear inquieto, quando o bote atracou ao costado. “Não havia
ainda notícia alguma do piloto”, disse-lhe um marinheiro, que se aproximara
respeitosamente. O pobre homem então, fazendo um gesto rude com os braços, teve
um “com mil raios!” desesperado; e recomeçou a andar ferozmente, como um leão
furioso, enchendo o tombadilho de passadas brutais.
XVII
Ao outro dia, à tarde, ainda o
piloto não tinha chegado. O comandante, que saltara muito cedo em busca de
notícias, dirigiu-se à casa do consignatário, às lojas de cabo, e às principais
agências de paquetes, a indagar dele. Mas nada pode conseguir. Já desanimado e
cansado de andar, chegou por fim ao escritório da Linha de Vapores
Montevidéu-Buenos Aires, onde lhe disseram que, efetivamente, o “caballero"
que procurava tinha comprado passagem para o Uruguai, a bordo do Saturno, havia
uma semana, como se verificava do livro de talões. E o empregado, um rapaz
alto, de farto bigode negro, com finas portas de estilete feitas a hongroise,
só por dentro da grade, muito solícito naquela ocasião, revirou alguns dos
livros que rojavam sobre a escrivaninha, e, sacando de um deles, que folheou
rapidamente, estendeu-o aberto ao Nielsen, mostrando-lhe numa das folhas o
nome, em bastardo, do rapaz:
—
Que lo mirasse...
O Nielsen verificou, com um
olhar, a verdade, nas letras rondes muito grandes, destacando-se fortemente
entre os miudinhos dizeres impressos; e saiu, agradecendo. Ao fim da tarde,
voltou de novo ao consignatário, onde encontrou a resposta telegráfica de Montevidéu,
que dizia ter o moço embarcado para o Brasil no dia anterior, segundo as
informações colhidas. O digno homem teve então um desengano, empalidecendo por
instantes o seu rosto tão intensamente rosado pelo sol do mar. Curvou
desventurosamente a cabeça vencida, de um louro que alvejava já pela nuca, e,
dobrando lentamente o telegrama, com um certo tremor nas mãos rijas e calosas
de marujo:
— Sim, senhor! Nunca esperei esta
coisa!...
E, balançando os ombros
colossais, encaminhou-se para a porta, tomando em seguida a direção do cais.
Chegou a bordo já noite fechada, avistando logo ao portaló a esposa, que o
aguardava numa ansiedade. Mal pisara a larga tolda, dia jogou-se-lhe aos
braços, inquirindo-o numa voz muito aflita, que chorava:
— Então, Nielsen, o Carlos?!
Ele não respondeu logo, e
lançando um olhar ao convés para certificar-se de que nenhum passageiro ou
tripulante se achava presente, a foi levando vagarosamente para ré, onde
branquejavam, pintadas de novo, a meia laranja com os vidros já descidos, e a
roda do leme, toda encapada em lona. Aí contou-lhe tudo, sem reservas,
finalizando com a notícia de que o Carlos embarcara para o Brasil.
— Ficara esmagado, como se lhe
houvera caído de repente um mastaréu na cabeça, acrescentava. E não sabia como
explicar aquele caso, não sabia!... Aquilo era o inferno... Maldita viagem!...
Ao ouvir semelhantes palavras, a
esposa rompeu a soluçar, amparada ao peito forte do Nielsen. Mas este, depois
de um curto silêncio, concluiu com secura máscula:
— Agora, paciência... Nada mais
se pode fazer... Amanhã tornarei um oficial e continuarei viagem... Não posso,
além de tudo, estar perdendo negócios...
Ouvia-se ali o palratório rouco
dos marinheiros à proa. Embaixo, na câmara iluminada, cujas luzes lançavam uma
claridade vaga e nostálgica no tombadilho através os vidros da gaiúta,
papagueavam alegremente as crianças, no agradável aconchego interior.
E por muito tempo, o Nielsen e a
esposa, afetuosamente unidos, como outrora, nos primeiros anos de casados, ali
ficaram tristemente a sós, sob o esplendor do céu nítido, onde os mastaréus,
oscilando, pareciam apontar as estrelas, a reluzirem no alto em grandes fiadas
de ouro.
Havia dois dias que o navio
rolava no mar largo pelas costas da Patagônia. Toda a majestosa planura das
águas austrais resplandecia, sob o sol louro do inverno, desdobrando-se em
grandes vagalhões verde gaios, que ondulavam de través. Soprava uma brisa de
nordeste, brisa meiga do oceano, sussurrando queixosamente nas enxárcias e
encurvando as velas brancas. Por cima, a arqueada vastidão transparente do
Espaço dir-se-ia de porcelana azul.
Pela primeira vez, nessa manhã,
depois da saída de Buenos Ayres, Ondina viera até o salão da câmara. Parecia
bem outra agora, ferida pelo grande abalo que sofrera e pelas angústias
inominadas que ainda lhe batiam o coração. Emagrecida de repente, e muito
abatida, com um ar recolhido, isolada a um canto, junto à amurada, olhava,
pelas vigias abertas, as ondas esmeraldinas, quebrando-se umas sobre outras todas
coroadas de espuma. O seu rosto, coberto de larga palidez, triste e
espiritualizado pelo sofrimento, apresentava o aspecto desolado das rosas que
desfalecem à tarde, pelas áleas, ao sopro de um vento frio. Tinha os lábios
brancos e como mortos; e os olhos, límpidos e celestes dantes, de um belo verde
transparente, estavam agora cavados, embaciados, toldados, à maneira de um lago
cristalino, por uma névoa hibernal. E, sob a vasta e ebúrnea testa virginal,
lembrando pétalas, o seu espírito parecia revolver lentamente algum sinistro
pensamento recôndito, de cuja segurança se possuía mais e mais a moça, na
indiferença e no desprendimento de um estoicismo ingênuo...
Desde a véspera, quando, cheia de
resignação, cessara de maldizer-se e chorar, parecendo conformar-se com o
tremendo sofrimento que lhe impusera o destino, que tivera o pensamento da
morte. Aspirava ao Nirvana, porque só ele poderia dar ao seu desespero a
pacificação eterna. E quem sabe que deliciosa serenidade não havia nesse sono
derradeiro!...
Nunca mais falara a ninguém,
sozinha e perdida na sua dor, ouvindo apenas as consolações de sua mãe, que se
sentia profundamente apreensiva diante daquela atitude, aparentemente
resignada, mas assustadora, da filha. E a boa senhora não a deixava um instante,
acompanhando-a com olhos solícitos e amantíssimos, temerosa de que não tornasse
de repente alguma deliberação trágica.
Embalde, as irmãs Bauer, muito
meigas e carinhosas, D. Oswaldo e o Dr. Barroso procuravam arrancá-la à
dolência mórbida que a obcecava funerariamente, inventando brinquedos, jogos,
toda a sorte de distrações delicadas. A moça, porém, permanecia indiferente a
tudo isso.
Ao anoitecer, logo que a câmara
se iluminou, Ondina desceu para o camarote, e aí recaiu de novo numa crise
nervosa, com soluços e lágrimas; depois adormeceu longamente. A mãe ao pé,
noutro beliche, fatigada já de tantas noites às voltas com ela, adormecera
também, pesadamente...
Mas o navio entrou a jogar com
grandes balanços, e gritos de manobras estalavam lá em cima, no tombadilho, de
envolta com as grossas pragas da tripulação, em luta ao instante com as
primeiras rajadas de um pampeiro. Desde as dez horas que o horizonte cobria-se
de espessa fuligem, para o sul, sobrevindo em seguida massas colossais de
nuvens, avassalando o céu todo, afogando em fumo denso as estrelas, chicoteando
o escuro com a luz rubra dos fuzis — iluminação fantástica da solidão das águas
em revolta ao bombardeio dos trovões. O silêncio e calma que precederam a
tormenta, fizeram franzir os lábios, e carregar o sobrolho, aos marinheiros
experimentados. De fato, daí a momentos um sopro largo de fúria resolveu tudo,
erguendo montanhas espumantes que estouravam e se precipitavam sobre o navio,
alagando-o. A mastreação e os cabos rangiam e sibilavam num siflar doido, como
milhões de flautins soprados por duendes infrenes num valpurgis do oceano...
A moça acordou então
estremunhada, numa grande ânsia; e, ouvindo lá fora estrugir o ciclone, teve um
sorriso glacial e estranho, como se uma resolução decisiva e íntima a
iluminasse de repente. Lançou em volta um olhar alucinado, ergueu-se no beliche
e vendo a mãe a dormir, enrolou-se na peliça negra que despira ao deitar-se e
deixou, trêmula e cautelosamente, o camarote, galgando a passo precipitado a escada.
A câmara, àquela hora, jazia numa
meia claridade, mantida debilmente por um archote aceso de estearina, que
agonizava já em lampejos mortiços, no castiçal de metal branco, suspenso a um
dos glass-rak’s, num recanto afastado. Pela porta entreaberta penetrava, de
momento a momento, o clarão forte dos relâmpagos e o ruído volumoso de algum
trovão, estourando e rolando ao longe. O pampeiro parecia agora menos intenso.
No entanto, o navio sacudia-se ainda capramente nas vagas, aos solavancos
brutais, fazendo ranger rijamente o velho cavername patent. Cessara de todo a
faina, o berreiro da manobra.
Ondina atravessou a câmara
deserta, sempre de olhar desvairado, o passo incerto, amparando-se às amuradas
por causa dos grandes balanços. À porta, porém, estacou; e no receio de
esbarrar de repente com algum tripulante, investigou um momento a compacta
escuridão do convés, onde os mastros se esbatiam e mal se viam as velas
brancas. Mas para logo segura de que ninguém se lhe oporia ao intento fatal,
com o coração e o espírito em tumulto, batidos por um sopro de loucura e
vertigem, correu ao portaló e se jogou às vagas...
Ouviu-se então um grande choque,
seguido de um grito humano que ecoou desoladamente na noite, através da
tormenta. Nesse instante, o vigia de proa, que de cima do castelo dera com o
vulto na borda, acudia ao portaló a correr. Era já tarde, no entanto. Mas como
vira o sinistro, galgou lesto o tombadilho, precipitando-se na direção de ré, a
gritar numa voz grossa e rude:
Um homem ao mar!...
E os dois marinheiros de governo,
amarrados ao leme por causa da furiosa invasão das montanhas de mar
quebrando-se fragorosamente contra o espelho da popa, repetiram o grito
terrível que o vento bramante levou para sempre:
— Um homem ao mar!...
Rio — Julho de 92
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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