GALÉ DA DOR
Ao Dr. Fábio Luz
O Maurício, um belo rapaz, fino,
inteligente, elegante, estava agora perdido para sempre. Aparecera-lhe
inopinadamente a “moléstia maldita”, a cuja lembrança tanta vez a sua alma
gemera e gelara, porque sentia rolar no seu sangue aquele vírus horrível, que
desde os seus antepassados — havia um século decepava cruelmente os melhores
varões da família.
Muito rubro, com todos os germens
daquele “mal” hereditário, tinha um grande cuidado consigo; mas nesse dia de
sol escaldante, em que uma viva combustão estival pairava nas camadas aéreas,
entrara da rua fatigado e metera-se num banho frio.
Tigrou-se-lhe a pele de roxo,
engrossaram-se-lhe os tecidos. O rosto, maculado, ingurgitou-se, tomando um
aspecto duro, túrgido. As orelhas encorparam-se prodigiosamente, e o nariz,
violáceo, intumesceu de maneira brutal, dilatando as narinas. As conchas das
pálpebras espessaram-se, reviraram-se, numa tumidez enorme, conservando os
olhos uma umidade mucosa, pelados de sobrancelhas. A boca tumefacta
contorcera-se em tromba, de onde manava uma saliva chorosa, torpe, pútrida. A
pele gretara-se, dessorando pus.
Tornara-se medonho, repelente;
sentia vergonha de si próprio; não aparecia a ninguém. Só furtivamente, de um
modo tímido, nos dias alegres, a cabeça envolta num plaid, deixando ver apenas
os olhos sem cílios e debruados de vermelho, chegava à janela de um torreão da
casa que deitava para o mar.
Era às vezes pela tarde. Seguia,
então, horas e horas, as velas cruzando a larga superfície verde. Contemplava o
casco dormente dos navios ancorados, o alto perfil das mastreações, as
montanhas do continente, desenhando-se saudosamente sobre a tela esmaiada do
firmamento, os belos ocasos de estio, acesos num alastramento de flamboyants em
flor...
E enclausurado nessa vida de
túmulo, contemplando a natureza como quem já não pertence ao mundo, abalado por
uma plangência sem nome, abandonava a janela, nervoso, trêmulo, soluçando. A
nostalgia enterrava-lhe no coração os seus bisturis.
E nesses instantes amargos, a
imagem rútila da Amada, evocada intensamente pela imaginação, aparecia-lhe
nimbada de luz, por uma aberta de nuvens, no céu sereno de seu espírito, como
uma Nossa Senhora que acudisse piedosamente à súplica fervorosa de um místico,
por entre os murmúrios de uma oração.
Amava, com todas as veemências
febris da paixão com todo o ardor tropical da sua alma, de vinte anos, a uma
virgem ideal, branca como uma estátua de mármore, pura como as estrelas, olhos
azuis e castos como os miosótis, luminosos e lindos como as nossas manhãs. Era
uma menina angelical, que fora a companheira querida de sua irmã, nos bons
tempos do colégio, que costumava conversar com ele, outrora, nos dias felizes.
E a não via, já lá iam dois anos. Que dor, que imensa saudade, saber que ela
ali estava, defronte, naquele mesmo bairro pitoresco de litoral florido, e nem
ao menos a poder contemplar um instante, temendo ser visto!...
Vinham-lhe, então, desesperações
formidáveis, blasfêmias, gritos de desgraçado contra Deus, irritações de ateu,
e, após tudo isso, um certo temor religioso, um remorso aflitivo, uma ideia
muito viva da Providência, que fazia o seu pobre coração torturado cair de
repente em contrita adoração, murmurando: “Eu creio em ti, ó Deus!...”
E quedava-se demoradamente numa
imobilidade de magnetizado, enterrado numa cadeira de braços, perdido num
cismar profundo, o rosto tombado sobre a mão, num arrepanhamento de feições que
lhe torcia a boca, tornando-o horrível, com o olhar fisgado no chão, sem
movimento, inerte. Permanecia assim até alta noite, até a madrugada, em
insônias esmagadoras. E todos os dias a mesma vida, vazia, deserta, negra,
tumular, até que caísse por fim na augusta pacificação do Nirvana...
Mas à maneira que a moléstia
avançava, implacável, sentia crescer, deitar mais fundas raízes no seu peito,
aquele amor indomável, desalentante e descorrespondido agora, que nunca o
vencera e torturara tanto.
Um sábado, quando as sugestões do
desespero e da dúvida, como um bando de lavras estranhas, surgiam-lhe no
cérebro, a devorar-lhe os filões do discernimento — ruídos espalhafatosos de
carros que se aproximavam, sublevando a costumada quietude do bairro e fazendo
estremecer os prédios, trouxeram lhe de repente ao espírito uma lembrança
terrível dela, da radiante criatura que o fazia viver ainda e por quem e para
quem era perdido, perdido...
Então, arrastado por um
pressentimento extraordinário, atirou-se audazmente à janela ante os olhares
espantados de todos, e, aí, aparvalhado, trêmulo, estrangulado quase por um
aperto de dor na garganta, viu-a passar, num cupê, ao lado de um belo rapaz —
magnífica, a grinalda de flores de laranjeira cingindo-lhe a cabeça de virgem,
o longo véu de tule caindo-lhe pelas costas, sobre as nuas espáduas brunidas,
num tecido tênue de bruma.
Como um animal apunhalado de
repente, em pleno coração, o Maurício teve um grito sinistro. Depois retirou-se
mudo, tonto, tresvairado, indo cair de bruços sobre a cama, numa dor onipotente
e sobre-humana, num traspassamento de mágoas
supremas e infinitas!...
Desterro — 1886
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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