SUPREMO ADEUS
À senhorita Elvira Remédios Monteiro
Desde que pisara o paneiro do
bote, que a devia conduzir ao steamer fumegante que esperava lá embaixo na
barra, Sofia Prevalsky, sentada à popa, ao lado de seu pai, velho conde da alta
nobreza polaca, não cessara um instante de fitar mudamente a linha afastada do
cais, onde o bando das amigas queridas ficara a olhar tristemente, agitando os
lenços claros.
Vivera ali oito anos de bela e
doce tranquilidade, numa risonha vivenda campestre, naquela florida cidade da
América Meridional, no seio da terra catarinense, sob o encanto do céu azul,
neste Brasil bem-amado. E fora tal a afeição que a cercara nesse exílio suave,
que o pai voluntariamente escolhera, que, apenas uma ou outra vez, vagamente,
sentira gemer o coração na nostalgia da pátria. Depois, fora ali igualmente que
a sua meninice enflorara, desabrochando em corolas de beleza que eram a
magnificência de sua mocidade. Franzina e triste que viera, sob o luto
lacrimoso de uma desolada orfandade de mãe, trazendo n’alma infantil a
impressão aterradora das cenas sangrentas dessa revolução temerosa que os
arrojara àquelas plagas — voltava agora forte e moça, no esplendor dos seus
vinte anos dourados.
Por isso, abatida e soluçante,
sob a vela branca enfunada, descendo as águas mansas do rio cercado de altas
ervagens, fixava ainda vivamente, e pela vez derradeira, a curva larga do cais,
cumulada de telhados vermelhos e torres alvas faiscantes, marcando além, com
tristeza, entre renques de eucaliptos verdes, a fugidia cidade.
Mas, em pouco, os telhados e
torres desapareceram para sempre na espessura das árvores. Pelas faces de Sofia
as lágrimas corriam, fluindo seguidamente de seus olhos azulados; e só cessaram
um momento, quando a embarcação, ajudada pelo vento da tarde, caiu no imenso
estuário que ia dar ao oceano, cujas ilhas rendilhadas começaram a destacar,
graciosas na sua cinta de espuma, sobre a planície ondulada.
O panorama da baía, no entanto,
não conseguiu dissipar-lhe os pesares: o novo fluxo de pranto tomou-a,
fazendo-a sofrer mais fortemente, agora, abraçada ao velho pai. E Sofia soluçava
como nunca, porque, nesse instante, seu espírito se voltava totalmente para a
sua paixão, abalando-a e torturando-a como numa desgraça. Amava, mas amava
loucamente, com todo o ardor dos seus vinte anos, a um desses rapazes vigorosos
do sul, de tez queimada e suave, os olhos negros e lânguidos, os cabelos
anelados, cujas linhas esculturais e cuja virilidade soberba fazem a atração e
o encanto dessas louras raparigas do norte, filhas das raças fortes do Báltico.
Ele idolatrava-a também com
fervor, num afeto austero e másculo. E desde o primeiro encontro que tiveram,
numa igreja católica, jamais a deixara, seguindo-a sempre devotadamente, e com
fidelidade amorosa, quando os vagares da sua vida marítima lhe permitiam errar
docemente pela terra natal. Um embaraço surgira, porém, entre ambos: a oposição
do velho emigrado polaco, que, havia dois anos, ao perceber aquela grande
paixão, entrara a retrair-se com a filha, ameaçando a todo o momento regressar
à Polônia — agora que o tzar Alexandre os anistiara.
Apesar disso, o velho não partia
e lá ia gozando alegremente, no sul, as delícias do seu chalé entre árvores,
quando a morte de um irmão, rico industrial na Alemanha, o levara de repente à
viagem. E como estava a chegar a S. Francisco um paquete da linha de Hamburgo,
preparara tudo, e, fretada uma embarcação, depois de longas despedidas, nas
vésperas, embarcara com a filha, nessa manhã radiosa.
Mas Sofia, alguns dias antes, sem
que o pai sequer de leve suspeitasse, e auxiliada pelas amigas, passara um telegrama
ao noivo, então comandante de um pequeno cruzador, estacionado em Santos. O
rapaz não mandara resposta, e ela, acreditando-se já abandonada, caíra numa
grande tristeza. E ali, sobre o bote, na planura radiante, desfazia-se em
lágrimas, o coração despedaçado, só entregue ao seu amor e àquele desamparo...
Entretanto, quando o escaler ia
atracar ao vapor, no meio da balbúrdia de muitas embarcações, a adorável
rapariga polaca teve um doce grito de júbilo, ao descobrir, de repente, na água
azul cheia de sol, o pequeno cutter
de Afonso, o noivo querido, que demandava o steamer,
velejando a todo o pano.
Momentos após, num enleio, sob o
toldo fresco de popa, no vasto convés asseado do Golden Kaiser se encontraram
os dois amantes — o coração aos saltos, os olhos úmidos de emoção, numa dessas
horas de alada mas contraditória ventura, em que a alegria da boa vinda é ao
mesmo tempo empanada pela amargura do adeus!
Longo tempo então, num recanto
isolado da borda, se fizeram confidencias, desfiando tristemente recordações e
saudades, onde doces cenas passadas reviviam vagamente de envolta à irradiação
inolvidável dos dias felizes em que se tinham dado. E a voz de ambos, fugindo
em murmúrio nas azas do vento do mar, nessa funda expansão íntima — talvez a
última que trocavam — tornava, por vezes, uma inflexão ansiosa, como sob um
peso de lágrimas...
O velho conde, no entanto, magro
e alto, no seu luto perpétuo de viúvo e de conjurado, com as bastas suíças
alvíssimas moldurando-lhe o rosto fidalgo, de nobres linhas augustas, onde se
desenhava firmemente o cunho superior de uma raça — vigilante e severo, não
cessava de os olhar fixamente com os seus vivos olhos septuagenários, que
pareciam dois miosótis inquietos, na sua face de pergaminho rosado.
Mas a hora da partida chegava.
Por todo o vapor, no convés, passageiros afamados cruzavam, por entre grandes
rumas de caixotes e malas, que marinheiros hercúleos e louros, os largos peitos
descobertos pela aberta da camisa azulada, moviam de uni pata outro bordo com
enorme atividade.
Na baía, em redor, coalhava já a
superfície cerúlea a imensa frota graciosa dos escaleres do tráfego, rumando,
numa alvura de velas, em direção à cidade.
Subitamente, nesse instante, um
silvo grosso de basso rasgou o ar, para a proa, a bordo do Golden Kaiser. As
raras embarcações retardadas, que ainda cercavam o costado, largaram logo, às
remadas. E os primeiros movimentos das hélices bateram a água, fazendo trepidar
o colosso e retesando as amarras.
Afonso então apressou-se. Correu
para o velho conde polaco e deu-lhe um forte shake-hands. Depois,
voltando-se para Sofia, que chorava já loucamente, quase desfalecida contra a
balaustrada, o rosto afogado no seu lenço branco lavorado, onde buscava abafar
os soluços — tomou-lhe as mãos, muito pálido, cobriu-as de beijos ardentes, e,
com os olhos marejados de lágrimas, abraçou-a longamente, sem uma palavra.
Em seguida, deixando-a quase
desmaiada entre os braços carinhosos do pai, dirigiu-se para a escada, em
demanda do cutter, que já arfava lá
em baixo, nas ondas, preso aos croques reluzentes, o alto latino caçado.
O transatlântico poderoso entrou
então a virar, barrando de giz a baía buscando as vagas da barra.
E como a marcha era lenta pelo
extenso canal, que altos bancos ladeavam, o jovem oficial de marinha resolveu
acompanhar o paquete, no seu cutter
velejante, até a linha do mar alto. Emparelhou-se com o steamer e começou a voar ao seu lado à aragem fresca do largo,
enquanto a amada querida, debruçada tristemente à borda do Golden Kaiser,
agitava para ele, em adeuses repetidos, o seu lenço de cambraia.
Seguiu assim muito tempo, e só
volveu para terra, quando o enorme casco fumegante se sumiu pela proa, perdido
na noite densa e nos grandes balanços do mar alto mar...
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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