MARINARO
Magnífica essa noite transparente
de junho no palacete da Estrela, que flamejava todo aceso com os seus altos
torreões rendilhados, como um antigo castelo da média idade, destacando num
viso de colina, ao centro dum vasto parque florido e cheio de árvores
seculares.
Celebrava-se o aniversário
nupcial dos viscondes de Vilar. E no vasto salão, todo em pompas de veludo e
brocado, entre jarras lavoradas da China e as preciosidades custosas de uma
opulenta coleção de arte, os perfis excelsos, ebúrneos ou de um moreno ambarado
de vaporosas criaturas ideais, emergindo delicadamente, num conjunto de
esplendor e de graça, da leveza cetinosa das toaletes fidalgas.
A sra. Viscondessa, muito alegre
e elegante no seu belo vestido de faille cor de musgo outonal, impressionava
como sempre, os convivas, com a sua pele de jambo, o seu rosto largo de assíria
e a sua alta estatura de beleza bárbara, que fazia evocar de repente a linha
dominadora que tem, nas gravuras bíblicas, a rainha de Sabá.
Todos, em volta, a festejavam com
frases e gestos aristocráticos, em pequenos grupos zumbidores, dispostos, aqui
e ali, pela sala. Ela sorria jovialmente, numa expansão e alvoroço adoráveis,
correspondendo com o seu espírito borbulhante a todas essas homenagens.
E de roda em roda, por entre os
grupos festivos que a aclamavam, entornando sorrisos e olhares, numa auréola de
perfumes e brilhos e num rumor de sedas caras, a srª. Viscondessa dirigiu-se
para um recanto afastado de janelas, por onde entravam frescura e aromas, e
trêmulas, invasoras ramagens, enlaçando caprichosamente, com as volutas
elásticas, os balaústres artísticos dos balcões de mármore.
Aí esperava-a, há muito, num
silêncio e meditação de exilado, um belo rapaz vigoroso, de grandes olhos
melancólicos e negros cabelos ondeados, a quem ela acenou docemente com os seus
dedos claros onde os anéis faiscavam, murmurando numa voz rouca e vaga, muito
límpida e sonora, como de ouro e luar:
— Venha agora, Carlos. Vamos para
aquela outra sala, ali onde está o piano... Vai ouvir as nossas músicas de
outrora, aquelas romanzas que amava... Lembra-se?... Há que anos foi isso!.. E
que paraíso antes da sua primeira viagem! Mas depois... que de tristezas e
lágrimas!
Ele, sorrindo com os seus dentes
muito alvos, uma radiação de alegria no semblante queimado, externando a
máscula profissão aventurosa dos que levam a existência embalada no mar, deixou
imediatamente os balaústres de mármore, seguindo submissamente a srª.
Viscondessa, ao mesmo tempo que lhe dizia de manso, ereto e alto ao seu lado:
— É verdade, Tilinha, quanta
saudade! Que de esplendor já extinto! E como os anos passam rápidos!...
E lentamente atravessaram o
salão, entrando na outra sala.
A srª. Viscondessa encaminhou-se
para o lado do piano e, antes de sentar-se à banquinha, parou um momento em
frente à pequena estante Renascença de ébano incrustado, que ostentava
profusamente, por entre cadernos dispersos, grossos álbuns de músicas e
libretos de óperas escolhidas, em ricas encadernações douradas. Toda inclinada,
com o seu lindo torso robusto estalando o corpete magnífico cor de musgo
outonal, que a envolvia majestosamente como uma couraça, ia dizendo ao rapaz,
num cicio amoroso, a voz meio comprimida pela postura curvada:
— Então, esperou muito? Não. Por
que, pois, há de ser sempre o impaciente de outrora? Que organismo, que não
muda nunca! Estava a dizer que eu me demoraria uma eternidade... Não foi assim.
Aqui estou, pertenço-lhe toda, sou sua... Pode falar, desatar-se todo em
queixumes, como dantes... Vá!... Também há talvez doze anos que nos não vemos,
não há?... Que horror! que imensa ausência fatal. E ainda me está bem viva na
memória a sua despedida, numa noite de Natal... O que eu não sofri, nos
primeiros dois anos! Você viu pelas minhas cartas... Mas como eu era tola! E
você a divertir-se muito bem lá pelo sul da Itália. Mas acabou-se, não lhe
recrimino, hoje sou outra... E o passado está passado...
Ergueu-se, com um dos álbuns de
músicas que tinham gravadas a ouro na capa as suas iniciais, e dando alguns
passos sentou-se à banquinha, folheando rapidamente o livro com os seus dedos
brancos, onde os anéis faiscavam. De repente estacou numa página azulada,
representando, em fino esquisso romano, uma “marinha” luarenta e saudosa no
golfo de Nápoles. Voltou a folha, que estava coroada no alto por esta palavra
nostálgica — MARINARO: aquietou-a com um movimento da mão espalmada, e
prorrompeu a solfejar baixo pianotando uns compassos. Depois virou-se para o
rapaz, que se inclinara de leve sobre o grande móvel de cauda, e ciciou com os
olhos cheios de uma luz de ternura, num suspiro de saudade:
— Preste bem atenção, Carlos...
Veja se se recorda... Esta romanza,
que eu vou cantar, era a sua predileta... Lá no sul, pelo menos, você não
queria outra... Era a “inspirada", como você dizia, que evocava tão bem as
melancolias de bordo, a solidão do oceano e a espiritualidade ideal das
viagens...
E atacou o teclado, com um
movimento adorável dos braços roliços, curvos em arco, que corriam e se
curvavam continuamente sobre a vasta barra flexível de marfim alvo. Com os
belos olhos escuros, de longos cílios bastos, começou a passar os hieróglifos
das pautas ao mesmo tempo que seus dedos artísticos turbilhonavam sobre as
teclas, e, balançando a cabeça graciosa num vaivém ritmado, lançou a sua voz de
soprano, vaga e celestial, que entrou a ondular na sala:
Guarda... le nuvole dh’alte biancheggiano
Lassú nel ciel...
Son l’alme amabile que si rincontrano
Nel Glauco vel...
Ele então, num enlevo, sentindo o
canto penetrar-lhe o coração, acordando-lhe antigas saudades de um alegre tempo
passado, que lhe aparecia agora numa radiação inatingível de passagem eteral,
fixava-a docemente, e, ao terminar da estrofe primeira, murmurou numa
acentuação sussurrada:
— Que lindo, Tilinha! Que lindo
este Marinaro! Se me não hei de
lembrar!...
Ela ergueu para ele, sorrindo, os
seus grandes olhos negros, umedecidos num longo fluído lânguido que arrebatava
a alma, e, com a bela garganta escultural, de um contorno unido e forte, túmida
outra vez de gorjeios, soltou de novo a voz maviosa, movendo, ao compasso lento
da música, a encantadora cabeça de columbina ideal. E a segunda estrofe
marulhosa da romanza adejou no ar,
pondo um vivo frêmito tremulante de arrebatamento e de amor na mornidão do
ambiente suave:
Laggiú piú libere l’onde si baciano,
Ninfe dei mar!
La notte é esplendida, le stelle brilano:
Vivere é amar!...
E prosseguia, com grande
execução, desfiando artisticamente as estâncias melancólicas daquela balada de
mar.
Arrebatado, o apaixonado sonhador
do oceano, juntamente com a música inefável, sentia desfilarem-lhe n’alma,
cantando, como um tropel de visões que vão levadas para o Nada, lembranças
vívidas e fúlgidas daquela época brilhante, agora morta para sempre, em que ele
amava a Tilinha — ora exultando a seu lado, nos vagares de terra, sob dias
dourados; ora gemendo de amor, nas viagens longínquas, pelas noites consteladas
ou torvas, à borda oscilante das naves. Não tirava os olhos de sobre o busto
dela, contornado esculturalmente pelo corpete magnífico cor de musgo outonal,
detendo-os, nesse instante, na formosíssima cabeça elevada, que se movia, com o
canto, num boleio ritmado. Os seus cabelos espessos, de um lindo negro de amora
dantes, e que lhe pendiam às vezes esparsos descuidadamente sobre as largas
espáduas, estavam agora precocemente tingindo-se, aqui e ali, de leves malhas
nevadas. E o seu rosto florente, onde os grandes olhos fulgiam com uma negrura
de conta negra molhada, subia de gracilidade e encanto, assim prendendo e
deslumbrando, na fascinação irresistível de uma evocação do passado, à maneira
de uma dessas marquesas antigas, que viesse deslizando do fundo do grande
século, numa espiral de minuete, com ondulações ronronantes de seda e os
cabelos polvilhados...
Embalado pelas notas, ia revendo,
em fugidias notações de saudade, as paragens luminosas de uma estância volvida:
tudo lhe vogava no espírito lentamente, em laivos preciosos e saudosos, mas
esvaídos de coloração e aroma, como velhas pétalas emurchadas. E o que lhe
pontilhava de luz dolorosa e irônica os filões emocionais, era o eletrismo de
certas células, avivando-lhe, em mágoa íntima, aquela falta irremediável do seu
desprendimento por ela, que o levara, num delírio por outra, a destronar de repente
do coração a sua imagem sagrada, fazendo-o derribar, num instante, como numa
rajada, a sua torre de afeições — quando byronianamente vagava, numa viagem
romanesca, pelas costas da Dalmácia. Pungia-lhe aquela situação, vazia e
deserta como uma estepe gelada, onde mal se mantinha ainda uma derradeira
floração de afetos, que lhe brotava do peito, numa ânsia de ilusões e sonhos,
em esforços desesperados para a Felicidade e para a Glória, no seio estéril de
uma quadra já morta — campo santo dos seus vinte anos, povoado de desejos e
beijos que não cantaram jamais, afogados na infinita vastidão oceânica e na
melancolia brumal das viagens...
Mas a romanza findava por um apelo implorativo e gemente, em que a voz
rouca e triste de um nauta apaixonado, tremulando em smorzandos suaves,
ondulava e fugia por sobre o mar espumoso, velado de um filó de luar, para
longe, para longe, onde um perfil de Visão se afundava entre a escumilha
nevoenta de uma alvura de praia:
Sorgi ed ascoltami el prego fervido
Del marinar...
Viene sul mare, viene, accompagnami:
Vivere é amar!...
Palmas e bravos ruidosos romperam
no salão, em prolongados aplausos.
Ele correu então para ela que
findou num stacato admirável, toda risonha e alegre, envolvendo-o no clarão
veludoso e bendito dos seus olhos nanquinados — e, tomando-lhe as mãos com
ardor, cobriu-as de beijos rápidos, segredando-lhe melancolicamente, numa voz
trêmula e rouca, que chorava:
— Ah! Tilinha, que dolorosas
saudades de outrora à tua voz despertaram em minha alma! Quanto me sinto agora
desventuroso! E como tudo está mudado!...
Ela ergueu-se e deu uns passos
para fora do piano, enternecida e numa idealidade, porque ainda o amava; e, com
as mãos nas mãos dele, numa arrebatação, balbuciou meigamente:
— Mas eu te amo ainda, Carlos! Eu
te amo, querido Marinaro!...
E suspendeu-se, porque uma
multidão de convivas alastrou de repente a sala, repetindo-se os aplausos:
— Bravos! bravos! Sra.
Viscondessa. Que romanza
admirável!...
***
Horas depois, quando a festa acabou
e ele descia a escadaria de mármore sob o esplendor delicioso do céu estrelado,
ia pensando desoladamente na sua vida atual, tão vazia e monótona como a
vastidão infinita do oceano onde andava. E numa palpitação e numa nostalgia que
lhe oprimiam a alma, sentia ainda cantar-lhe no cérebro, como um estribilho de
dolorosa verdade, este belo verso final da romanza:
“Vivere é amar!...”
Rio — 1894.
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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