domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Marinaro"

MARINARO

Magnífica essa noite transparente de junho no palacete da Estrela, que flamejava todo aceso com os seus altos torreões rendilhados, como um antigo castelo da média idade, destacando num viso de colina, ao centro dum vasto parque florido e cheio de árvores seculares.

Celebrava-se o aniversário nupcial dos viscondes de Vilar. E no vasto salão, todo em pompas de veludo e brocado, entre jarras lavoradas da China e as preciosidades custosas de uma opulenta coleção de arte, os perfis excelsos, ebúrneos ou de um moreno ambarado de vaporosas criaturas ideais, emergindo delicadamente, num conjunto de esplendor e de graça, da leveza cetinosa das toaletes fidalgas.

A sra. Viscondessa, muito alegre e elegante no seu belo vestido de faille cor de musgo outonal, impressionava como sempre, os convivas, com a sua pele de jambo, o seu rosto largo de assíria e a sua alta estatura de beleza bárbara, que fazia evocar de repente a linha dominadora que tem, nas gravuras bíblicas, a rainha de Sabá.

Todos, em volta, a festejavam com frases e gestos aristocráticos, em pequenos grupos zumbidores, dispostos, aqui e ali, pela sala. Ela sorria jovialmente, numa expansão e alvoroço adoráveis, correspondendo com o seu espírito borbulhante a todas essas homenagens.

E de roda em roda, por entre os grupos festivos que a aclamavam, entornando sorrisos e olhares, numa auréola de perfumes e brilhos e num rumor de sedas caras, a srª. Viscondessa dirigiu-se para um recanto afastado de janelas, por onde entravam frescura e aromas, e trêmulas, invasoras ramagens, enlaçando caprichosamente, com as volutas elásticas, os balaústres artísticos dos balcões de mármore.

Aí esperava-a, há muito, num silêncio e meditação de exilado, um belo rapaz vigoroso, de grandes olhos melancólicos e negros cabelos ondeados, a quem ela acenou docemente com os seus dedos claros onde os anéis faiscavam, murmurando numa voz rouca e vaga, muito límpida e sonora, como de ouro e luar:

— Venha agora, Carlos. Vamos para aquela outra sala, ali onde está o piano... Vai ouvir as nossas músicas de outrora, aquelas romanzas que amava... Lembra-se?... Há que anos foi isso!.. E que paraíso antes da sua primeira viagem! Mas depois... que de tristezas e lágrimas!

Ele, sorrindo com os seus dentes muito alvos, uma radiação de alegria no semblante queimado, externando a máscula profissão aventurosa dos que levam a existência embalada no mar, deixou imediatamente os balaústres de mármore, seguindo submissamente a srª. Viscondessa, ao mesmo tempo que lhe dizia de manso, ereto e alto ao seu lado:

— É verdade, Tilinha, quanta saudade! Que de esplendor já extinto! E como os anos passam rápidos!...

E lentamente atravessaram o salão, entrando na outra sala.

A srª. Viscondessa encaminhou-se para o lado do piano e, antes de sentar-se à banquinha, parou um momento em frente à pequena estante Renascença de ébano incrustado, que ostentava profusamente, por entre cadernos dispersos, grossos álbuns de músicas e libretos de óperas escolhidas, em ricas encadernações douradas. Toda inclinada, com o seu lindo torso robusto estalando o corpete magnífico cor de musgo outonal, que a envolvia majestosamente como uma couraça, ia dizendo ao rapaz, num cicio amoroso, a voz meio comprimida pela postura curvada:

— Então, esperou muito? Não. Por que, pois, há de ser sempre o impaciente de outrora? Que organismo, que não muda nunca! Estava a dizer que eu me demoraria uma eternidade... Não foi assim. Aqui estou, pertenço-lhe toda, sou sua... Pode falar, desatar-se todo em queixumes, como dantes... Vá!... Também há talvez doze anos que nos não vemos, não há?... Que horror! que imensa ausência fatal. E ainda me está bem viva na memória a sua despedida, numa noite de Natal... O que eu não sofri, nos primeiros dois anos! Você viu pelas minhas cartas... Mas como eu era tola! E você a divertir-se muito bem lá pelo sul da Itália. Mas acabou-se, não lhe recrimino, hoje sou outra... E o passado está passado...

Ergueu-se, com um dos álbuns de músicas que tinham gravadas a ouro na capa as suas iniciais, e dando alguns passos sentou-se à banquinha, folheando rapidamente o livro com os seus dedos brancos, onde os anéis faiscavam. De repente estacou numa página azulada, representando, em fino esquisso romano, uma “marinha” luarenta e saudosa no golfo de Nápoles. Voltou a folha, que estava coroada no alto por esta palavra nostálgica — MARINARO: aquietou-a com um movimento da mão espalmada, e prorrompeu a solfejar baixo pianotando uns compassos. Depois virou-se para o rapaz, que se inclinara de leve sobre o grande móvel de cauda, e ciciou com os olhos cheios de uma luz de ternura, num suspiro de saudade:

— Preste bem atenção, Carlos... Veja se se recorda... Esta romanza, que eu vou cantar, era a sua predileta... Lá no sul, pelo menos, você não queria outra... Era a “inspirada", como você dizia, que evocava tão bem as melancolias de bordo, a solidão do oceano e a espiritualidade ideal das viagens...

E atacou o teclado, com um movimento adorável dos braços roliços, curvos em arco, que corriam e se curvavam continuamente sobre a vasta barra flexível de marfim alvo. Com os belos olhos escuros, de longos cílios bastos, começou a passar os hieróglifos das pautas ao mesmo tempo que seus dedos artísticos turbilhonavam sobre as teclas, e, balançando a cabeça graciosa num vaivém ritmado, lançou a sua voz de soprano, vaga e celestial, que entrou a ondular na sala:

Guarda... le nuvole dh’alte biancheggiano
Lassú nel ciel...
Son l’alme amabile que si rincontrano
Nel Glauco vel...

Ele então, num enlevo, sentindo o canto penetrar-lhe o coração, acordando-lhe antigas saudades de um alegre tempo passado, que lhe aparecia agora numa radiação inatingível de passagem eteral, fixava-a docemente, e, ao terminar da estrofe primeira, murmurou numa acentuação sussurrada:

— Que lindo, Tilinha! Que lindo este Marinaro!  Se me não hei de lembrar!...

Ela ergueu para ele, sorrindo, os seus grandes olhos negros, umedecidos num longo fluído lânguido que arrebatava a alma, e, com a bela garganta escultural, de um contorno unido e forte, túmida outra vez de gorjeios, soltou de novo a voz maviosa, movendo, ao compasso lento da música, a encantadora cabeça de columbina ideal. E a segunda estrofe marulhosa da romanza adejou no ar, pondo um vivo frêmito tremulante de arrebatamento e de amor na mornidão do ambiente suave:

Laggiú piú libere l’onde si baciano,
Ninfe dei mar!
La notte é esplendida, le stelle brilano:
Vivere é amar!...

E prosseguia, com grande execução, desfiando artisticamente as estâncias melancólicas daquela balada de mar.

Arrebatado, o apaixonado sonhador do oceano, juntamente com a música inefável, sentia desfilarem-lhe n’alma, cantando, como um tropel de visões que vão levadas para o Nada, lembranças vívidas e fúlgidas daquela época brilhante, agora morta para sempre, em que ele amava a Tilinha — ora exultando a seu lado, nos vagares de terra, sob dias dourados; ora gemendo de amor, nas viagens longínquas, pelas noites consteladas ou torvas, à borda oscilante das naves. Não tirava os olhos de sobre o busto dela, contornado esculturalmente pelo corpete magnífico cor de musgo outonal, detendo-os, nesse instante, na formosíssima cabeça elevada, que se movia, com o canto, num boleio ritmado. Os seus cabelos espessos, de um lindo negro de amora dantes, e que lhe pendiam às vezes esparsos descuidadamente sobre as largas espáduas, estavam agora precocemente tingindo-se, aqui e ali, de leves malhas nevadas. E o seu rosto florente, onde os grandes olhos fulgiam com uma negrura de conta negra molhada, subia de gracilidade e encanto, assim prendendo e deslumbrando, na fascinação irresistível de uma evocação do passado, à maneira de uma dessas marquesas antigas, que viesse deslizando do fundo do grande século, numa espiral de minuete, com ondulações ronronantes de seda e os cabelos polvilhados...

Embalado pelas notas, ia revendo, em fugidias notações de saudade, as paragens luminosas de uma estância volvida: tudo lhe vogava no espírito lentamente, em laivos preciosos e saudosos, mas esvaídos de coloração e aroma, como velhas pétalas emurchadas. E o que lhe pontilhava de luz dolorosa e irônica os filões emocionais, era o eletrismo de certas células, avivando-lhe, em mágoa íntima, aquela falta irremediável do seu desprendimento por ela, que o levara, num delírio por outra, a destronar de repente do coração a sua imagem sagrada, fazendo-o derribar, num instante, como numa rajada, a sua torre de afeições — quando byronianamente vagava, numa viagem romanesca, pelas costas da Dalmácia. Pungia-lhe aquela situação, vazia e deserta como uma estepe gelada, onde mal se mantinha ainda uma derradeira floração de afetos, que lhe brotava do peito, numa ânsia de ilusões e sonhos, em esforços desesperados para a Felicidade e para a Glória, no seio estéril de uma quadra já morta — campo santo dos seus vinte anos, povoado de desejos e beijos que não cantaram jamais, afogados na infinita vastidão oceânica e na melancolia brumal das viagens...

Mas a romanza findava por um apelo implorativo e gemente, em que a voz rouca e triste de um nauta apaixonado, tremulando em smorzandos suaves, ondulava e fugia por sobre o mar espumoso, velado de um filó de luar, para longe, para longe, onde um perfil de Visão se afundava entre a escumilha nevoenta de uma alvura de praia:
  
Sorgi ed ascoltami el prego fervido
Del marinar...
Viene sul mare, viene, accompagnami:
Vivere é amar!...

Palmas e bravos ruidosos romperam no salão, em prolongados aplausos.

Ele correu então para ela que findou num stacato admirável, toda risonha e alegre, envolvendo-o no clarão veludoso e bendito dos seus olhos nanquinados — e, tomando-lhe as mãos com ardor, cobriu-as de beijos rápidos, segredando-lhe melancolicamente, numa voz trêmula e rouca, que chorava:

— Ah! Tilinha, que dolorosas saudades de outrora à tua voz despertaram em minha alma! Quanto me sinto agora desventuroso! E como tudo está mudado!...

Ela ergueu-se e deu uns passos para fora do piano, enternecida e numa idealidade, porque ainda o amava; e, com as mãos nas mãos dele, numa arrebatação, balbuciou meigamente:

— Mas eu te amo ainda, Carlos! Eu te amo, querido Marinaro!...

E suspendeu-se, porque uma multidão de convivas alastrou de repente a sala, repetindo-se os aplausos:

— Bravos! bravos! Sra. Viscondessa. Que romanza admirável!...

***

Horas depois, quando a festa acabou e ele descia a escadaria de mármore sob o esplendor delicioso do céu estrelado, ia pensando desoladamente na sua vida atual, tão vazia e monótona como a vastidão infinita do oceano onde andava. E numa palpitação e numa nostalgia que lhe oprimiam a alma, sentia ainda cantar-lhe no cérebro, como um estribilho de dolorosa verdade, este belo verso final da romanza:

“Vivere é amar!...”



Rio — 1894.


---

Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

Nenhum comentário:

Postar um comentário