PAINEL MEDIEVAL
De pé, junto às pedras das
ameias, num recanto isolado do velho castelo gaulês, erguido sobre a ponta
penhascosa de uma enseada da Armórica cheia tradições e legendas, uma dessas
princesas venetas, vaporosas e albentes, que eram o encanto dos Bardos e dos
Cavaleiros, fixava longamente, com os olhos úmidos de saudade, as águas mansas
de Quiberon, desdobrando-se para além, cobertas de frisos de ouro sob a
iluminação do poente.
A pequenina cabeça alourada, de
um contorno rafaelesco, estava inclinada sobre a planura azulada do golpo como
ao peso dos seus sonhos ou da sua cabeleira, premida artisticamente sob a alta
touca frouxelada de rendas, de onde jorravam para a testa, por cima das
sobrancelhas escuras, leves madeixas cor de feno. E seu rosto formosíssimo, de
um rosado penugento, apoiava-se a uma das mãos firmada numa aberta das ameias,
enquanto a outra, suspensa no ar, agitava um lenço claro, que ondulava ao
vento.
A dois passos, para trás,
aprumado e elegante nas suas vestes estreitas, a listras escarlates e pretas, o
espadim de prata pendendo ao talim de seda, o belo Pajem favorito, segurando às
mãos, numa atitude de respeito, a longa cauda opulenta do seu vestido de veludo
azul, guarnecido de barras de arminhos e bordaduras de ouro reluzentes. Olhava
também o mar, mas o seu olhar amoroso, de um brilho meigo, sorria como numa
vaga alegria, em que a sua alma exultava intimamente incendida num clarão de
esperança que lhe inflava o forte peito, sempre abatido e opresso, no seu amor
obscuro, pelo alto desdém da Princesa.
E agora, que o Duque partia na
cruzada aventureira para as batalhas da Religião em terras remotas do Oriente,
surgia-lhe a vaga esperança de que ela viesse, um dia, movida de compaixão ou
afeto, suavizar, com um sorriso de graça, as amarguras da sua existência. E
sentia-se que o seu grande desejo, nesse supremo momento, era que a frota
aventureira, ali singrando lentamente, desaparecesse, de uma vez e para sempre,
arrastada pelas ondas, no seio da bruma argêntea...
Mas a loura castelã, na dor desse
apartamento, indiferente e chorosa, nem sequer observava de leve o júbilo do
jovem Pajem, imersa como estava na contemplação dolorosa das velas queridas que
fugiam para além.
A galé do Duque panejava ainda
entre pontas, em meio às águas dormentes. A alta popa vogadora, toda coberta de
incrustações e ornatos onde corriam grossos verdugos de prata sobre largos
quadrados de marfim e pérola, destacando no coral do poente, fazia como o
relevo risonho dessas ilhas encantadas que apareciam e desapareciam, outrora,
tentadoramente, pelos ocasos ou madrugadas do norte, na limpidez sonhadora das
lendas. E as outras naves menores, com as suas asas de lona diminuídas à distância, deslizavam para o sul, como um
bando de alcíones albentes.
A formosa princesa, nesse momento
de mágoas, esquecia-se, a olhar as fugidias velas boiantes, evocando
tristemente a sua vida de outrora, desde o dia glorioso em que o amado Paladino
germânio chegara ao seu castelo bretão. Fora ao tempo dessas batalhas memoráveis
da Escócia, em que Wallace, à frente dos seus altivos highlands, batia-se
leoninamente contra as hostes de Eduardo I. Os ruídos da derrota final desses
celtas insubmissos mas desventurosos tinham chegado à Bretanha com os primeiros
nevoeiros de inverno. Dezembro, com os seus furores e os seus ventos glaciais,
fustigava toda a costa, sublevada numa tempestade tremenda. Uma noite, em que o
noroeste parecia querer arrancar os carvalhos nas florestas e despedaçar as
cabanas nas landes e montanhas brumosas, a sentinela do Farol das Rochas dera
para o castelo o sinal de um naufrágio sobre os altos cabeços. E logo a
guarnição despertara ao estrídulo clangor das buzinas, rompendo dentre as
ameias. A Princesa acordara também, na sua câmara vermelha, iluminada nebulosamente
pelo clarão da veilleuse; e, envolta no seu manto de peles, correra através das
salas silenciosas até ao Torreão do Ocidente, para ver o que ocorria sob a
borrasca inclemente. Das janelas ogivais pôde divisar vagamente, como na
alucinação de um pesadelo, a cena agitada de uma nave ao longe, despedaçando-se
por sobre os penedos. Acometeu-a uma emoção e seus olhos marcaram-se de
lágrimas, quando as rajadas tumultuosas do vento lhe trouxeram aos ouvidos
gritos roucos e aflitivos de náufragos morrendo. Sentia-se inquieta e queria
descer aos pavimentos térreos para dar ordens aos marinheiros. Mas sossegara
logo, porque descobrira à claridade dos fuzis, que abriam por vezes através da
noite densa, a sua brava gente marítima já às voltas com o barco, nas rochas ou
sobre os vagalhões desfeitos. Não parara, porém, toda a noite, e ao outro dia,
erguendo-se muito cedo, dirigia-se para o Salão dos Troféus, quando o Pajem
surgira, narrando-lhe tudo minuciosamente. “A nau se desfizera totalmente,
perecendo a tripulação, e só se salvando um homem que parecia o almirante, um
príncipe talvez, pelas suas vestes e o seu nobre aspecto guerreiro. Fora
recolhido sem sentidos, com a fronte ferida e as vestes despedaçadas; e assim
se achava ainda fora das muralhas, no alpendre das galés e das redes...”
Ela ouvira a narração num
desassossego e numa palidez, e dera ordem para que acomodassem o náufrago no
Torreão do Oriente. À noite, fora ela própria velar o enfermo, que repousava
sobre um vasto leito de acaju, todo esmaltado de chaparias de prata e finas
ramagens em relevo. A luz de uma lâmpada fosca, feita de vidro verde, suspensa
do alto teto de carvalho entalhado por delgadas correntes de bronze saindo de
um fofo de seda e oscilando brandamente, se destacava, sobre o veludo amarelo
dos grossos travesseiros, o seu rosto belo e forte, aureolado por leve barba
loura e longas madeixas à nazarena. Tinha o encanto marcial de um herói e a
enformatura máscula de um deus. Por isso ela se lhe rendera logo, tomada de uma
forte paixão de gaulesa. Mas, só alguns dias depois, já convalescente, é que
ele pode bem observá-la, encantar-se também pela sua feitura soberba. E, numa
mesma fascinação e magia, ficaram-se amando loucamente.
Ele disse-lhe então o seu nome, a
sua vida, o seu reino. Era Ludovico, da Germânia. Possuía terras, castelos e
inúmeras legiões guerreiras. Reinava sozinho, e respeitado pelas outras nações,
sobre um povo poderoso e valente, para quem ele era a suprema felicidade e o
supremo bem. Mas um emissário da Escócia chegara um dia. E logo abandonara as
suas terras, o seu trono, e atravessara o mar com o melhor dos seus
guerreiros... Batera-se pelos escoceses, tivera vitórias, fora cantado nos
hinos caledônios pelos bardos cavaleiros. De uma feita, porém, num encontro terrível
em que houvera traição, perdera-se a batalha, ao mesmo tempo que outros revezes
sucediam em todo o campo, coroando as armas inglesas. A Escócia submetera-se;
Wallace, ferido, fora feito prisioneiro.
E como ele, Ludovico, escapasse ao desastre com um grupo de guerreiros,
resolvera partir, tornar às suas terras do Reno. Após alguns dias de viagem,
uma tempestade caiu de repente: a frota então dispersara, sob a ira dos ventos;
e a sua galé, desmantelada e perdida, rolara para o sul, sem governo. Depois
fora o naufrágio sobre aqueles cabeços.
Ela, ainda mais apaixonada e
impressionada por aquela história aventurosa e heroica, decidira imediatamente
esposá-lo, encantada e num deslumbramento. E foi por uma noite luarenta da
Armórica, cheia de cânticos druídicos e da espiritualidade das lendas, que os
esponsais se celebraram, no castelo em festa, cujas janelas flamantes
iluminavam fantasticamente as planícies e as águas, despertando a sonolência
das landes e agitando as velhas almas sagradas que rondam à noite, os
menhirs... Por fim, vieram os dias gloriosos da tumultuosa jornada ao Sequana:
o inimigo submetido, em meio aos vivas guerreiros, riquezas adquiridas, troféus
conquistados, e alargadas as terras do castelo em novos e poderosos domínios. E
agora? O apartamento tristíssimo, a saudade dolorosa e atroz. E ainda aquela
jornada sobre o mar infinito... Voltaria? Quando?... Ah! sorte enigmática,
insondável e misterioso destino!..
E junto às pedras das ameias,
recortadas em silhueta de coroa, a Princesa cismava, e de seus olhos
transparentes e azuis as lágrimas corriam, enquanto ao lado, ocultamente, o
Pagem exultava e a galé velejante do Duque desaparecia além, sob o poente
dourado, numa esteira sinuosa de espuma...
Rio —
1894
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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