A SONATA DO LUAR
Anoitecia, quando, pela varanda
do lado dando para o jardim, nos encaminhamos para o grande terraço balaustrado
da frente, deixando a vasta e confortável sala de jantar, onde agora duas
robustas criadas alemãs, muito louras, a pele fresca e rosada, os braços saindo
nus e roliços das mangas dos seus corpetes alvos, se agitavam apressadamente,
arranjando e pondo em ordem a bela mesa cheia de flores onde, havia momentos,
festejáramos com jubilosa cordialidade, tocando as taças de Joannisberg, o
aniversário de uma dessas pessoas queridas que são a graça e a bênção de um lar.
Longe, no horizonte, sobre a
negra muralha recortada da serra da Boa
Vista, a lua subia, abrindo deliciosamente no espaço o seu imenso sendal
luminoso. Através o crivo escuro das trepadeiras, cujas folhas tremiam à aragem
ciciando-lhes misteriosas carícias, pequenos discos de claridade láctea desciam
até os recantos mais escuros, batendo o mármore do terraço. Mas os balaústres
do centro rasgavam como uma larga janela para o campo, para a amplíssima
paisagem enoitada.
Aí sentamo-nos todos, embevecidos
no panorama do rio, estadeando-se nas voltas flexuosas como uma estranha via
láctea, ao longo da grande avenida do cais. No fio da corrente, onde parecia
que ferviam raios de prata em fusão, barcas a vapor, pequenos lanchões e iates
erguiam no ar vagamente a trama fina das mastreações debruadas de luar. Nos
planos da outra margem, terminando em colinas longínquas, que se esbatiam na
sombra difusa, as culturas adormeciam no silêncio do céu nevoso. Pela barranca
cortada a prumo, aqui e além, na sebe rasa dos arbustos, árvores moças e
pujantes, um ou outro tronco decrépito, torcido já pelos anos e só coroado no
alto por um penacho de folhas, inclinavam as suas franças rendadas, como para
ouvir as ondinas que lhes passavam junto às raízes, cantando.
O maior encanto do quadro era,
entretanto, uma pequena ilha fronteira, de cuja profusa vegetação uma casinha
surgia, tendo a um dos extremos uma gigantesca palmeira, que, semelhante a um
mastro, lhe dava o aspecto de uma velha barca de pastoral de outras épocas, apodrecida
à margem de algum canal esquecido e invadida por uma inundação de verdura. As
águas, descendo com violência, abriam à sua proa de ervagens longos florões
prateados, que ondulavam e fugiam...
Mas, de repente, fraulein Elsa, a
filha do dono da casa, em cuja honra era aquela festa, à frente de um bando
alegre de amigas, apareceu, atravessando o grande salão iluminado, em direção
ao terraço.
As graciosas valquírias chegaram
numa grazinada festiva, e, tomando o lugar em que estávamos, debruçaram-se aos
balaústres, a contemplar o esplendor do luar que nevava todo o céu, a casaria
de Blumenau, os cimos altos das colinas, das árvores, e a longa faixa flexuosa
do rio. E de suas bocas mimosas, exclamações vivas fluíam pela noite admirável. Nisto aproximou-se do grupo o velho Carlos
Schneider, padrinho da festejada, que, dirigindo-se a ela, pediu-lhe que fosse
tocar uma das suas músicas amadas.
Então, um rapaz imberbe e louro,
a estatura gigantesca, atlético e virilmente belo, que estava de pé a meu lado,
meio curvo na sua linha de gentleman, voltou-se todo para a moça e disse-lhe em
alemão, numa acentuação muito íntima:
− Beethoven, Elsa, Beethoven! A
Sonata ao luar...
Elsa, muito alta e airosa no seu
vestido claro de crepe, ergueu vivamente o lindo rosto oval, de uma louçania
celeste de corola que se abre, e, com os grandes olhos azuis, de uma
transparência e candidez inefáveis, um sorriso nos breves lábios rosados,
murmurou uma recusa. Mas logo todos repetiram o pedido num coro solicitante e
álacre:
− A Sonata ao luar! A Sonata
ao luar!
Não houve então mais escusa
possível. O bando chalrante enveredou para o salão como uma revoada de
andorinhas voltando ao beiral de um castelo do Reno por uma tarde primaveral —
e Elsa foi sentar-se ao piano.
O rapaz louro e atlético seguiu o
bando adorável, indo acomodar-se em um divã, o rosto muito rosado agora à luz
profusa dos lustres e uma radiação amorosa nos seus olhos de faiança.
O velho Schneider e os demais
cavalheiros foram colocar-se às portas, numa atitude de profunda atenção.
Leopoldo Schwarz e a esposa, os bons pais de Elsa, ficaram comigo no terraço,
sob o crivo das trepadeiras onde o luar peneirava a sua luz fosca e alva.
E logo as primeiras notas da
sonata saltaram do teclado, voando a todos os ângulos do salão. Os acordes
suaves, de uma sinfonia arrebatadora, ondulavam e fugiam, deixando no ar como
um frêmito de emoções. Envolvia tudo a nevoenta espiritualidade de um
sentimento recôndito, passado em almas que vivem perpetuamente na adoração do
indefinido e do vago, ansiando pela realização de um amor que se livra nos
páramos ilimitados de uma criação transcendente, na esfera subjetiva das
ilusões e dos sonhos.
Mas nessa animosidade nebulosa de
afetos idealizados e aspirações levadas para além da terra até as raias da
abstração, havia toda a palpitação e embevecimento de uma paixão desvairada. E
através dessas volutas sutilíssimas de sons, envolvendo como um fio de melodia
dois corações que, polarizados pelo mesmo impulso, se atraem e se fundem num só
anseio de ideal, sem conseguirem entretanto a desejada ascensão ao seu Éden
sonhado, se desenhava vagamente a iniludível realidade da estância mais
notável, talvez, da vida do grande artista, que concebera, num arroubo divino,
aquela sonata genial.
Sob a grande execução, eu sentia
debuxar-se, em meu espírito, o esquisso desse lied germânico. Era num velho
solar palatino, por uma noite clara do norte. Um cavaleiro enamorado estaca
subitamente o corcel sob as ramas das carvalheiras junto de um torreão
rendilhado. A lua, com a sua luz misteriosa e vaga, banha docemente os vitrais
coloridos da janela gótica. Vibrando o seu alaúde, o paladino amante solta as
primeiras estrofes sonoras de um meigo e velho rimance. Então a ogiva rútila
estremece e um perfil louro de visão se debruça, arrebatado pelo canto. Depois
o trovador emudece. E as horas voam no silêncio da noite nevada. Por fim, um
cicio de frases e beijos de amor passa de uma à outra boca, de um a outro
coração. É o momento da partida. Adeus, meu sol, meu tesouro! Adeus, adorado
amor! E o cavaleiro galopa, fugindo na estrada branca.
Quando a última nota da sonata
findou, Elsa ergueu-se, risonha e cheia de graça, com o seu alto porte de
valquíria e a sua bela cabeleira loura. Todos correram a saudá-la, as moças
como os rapazes, num alvoroço festivo.
O último, porém, que a saudou foi
o jovem Apolo germânico, que se sentara ao divã. Mas a sua galanteria merecera
tal acolhimento da moça que eu, vendo-os assim tão unidos, as mãos enlaçadas
como num enlevo feliz, fiquei a pensar, por instantes, nos personagens ideais
daquela sonata mágica.
Rio— 1899
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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