NATAL
À ilustre escritora portuguesa D. Maria Amália Vaz de Carvalho
Era véspera de Natal em
Joinville, a formosa cidade teuto-brasileira do extremo norte, no estado de
Santa Catarina. As derradeiras claridades rosadas do crepúsculo esmaiavam pouco
a pouco a oeste sobre as planuras que margeiam o Cachoeira, onde se recortavam
pitorescamente, em maciços de folhagem, os extensos mangais verdes, de cujo
seio se erguiam, aqui e além, para os planos afastados, frondes de árvores
ramalhosas e troncos torcidos e esguios de eucaliptos, abrindo no céu pálido da
tarde os seus penachos de folhas embalados pelo vento.
O pequeno vapor em que eu ia, o
D. Francisca, contornara já uma das amplas voltas do rio, de onde se começa a
avistar, pelos rasgões da verdura, os telhados de ardósia vermelha das
primeiras casas de paredes alvíssimas da cidade do Príncipe. E daí a instantes
as sebes densas de mangue, que cercavam a espiégle lanchinha singrando águas
acima, findaram de repente, surgindo então a meus olhos o cais principal de
Joinville — uma linha cinzenta de cantaria, coroada por um renque de armazéns
que são depósitos de mercadorias.
Marinhei apressado, com uma
maleta de viagem na mão, uma das escadas de pedra, por entre um bando rumoroso
e festivo de pessoas da cidade, mulheres e homens, que vozeiravam e riam, num
português cheio de rr e em sílabas ásperas, guturais de alemão. Eram famílias e
outros que vinham receber os conhecidos e amigos de S. Francisco e do Desterro
em excursão de Natal à pequenina e nova Colônia daquém Atlântico, que é talvez
a mais bela cidade do Brasil.
Uma trapalhada de carros tomava
toda a praça que se estende por detrás dos armazéns — carros de passeio e de
carga, uns parados a receber volumes, outros a rodar, atulhados de gente, num
movimento de chegada e partida, puxados por parelhas possantes ao vivo estalar
dos chicotes. Retido entre o burburinho, procurava eu um carro de aluguel ou
alguém que me guiasse até a rua dos Lírios, onde me esperava um nobre lar
germano-brasileiro de família querida, quando me achei subitamente arrebatado
por dois braços robustos, a amplexarem-me com afeição e carinho:
— Ó senhorrr amiga! Ó senhorrr
amiga!
Era Paulo Rosemberg, um hércules
de dezoito anos, inteiramente imberbe, de olhos azuis e muito louro, meu
dedicado camarada e filho mais moço da família que me aguardava à bela rua dos
Lírios. O rapaz, agarrando a minha mala, uma das mãos no meu ombro, carregou-me
logo para o seu carro, no meio da balbúrdia que ainda reinava no largo,
aumentada agora pela escuridão da noite envolvendo Joinville.
Galgado o estribo, e bem
acomodados nas almofadas de marroquim, o cocheiro fustigou os cavalos e entramos
a rolar pela rua do Porto, onde as primeiras habitações se mostravam já
profusamente iluminadas, malhando fora os jardins e o macadame alvacento com
grandes faixas douradas. Pelas janelas e portas, abertas de par em par, ao
centro desses recessos sagrados de serenidade e de amor, as lindas árvores
tradicionais de Natal destacavam-se num buquê de verdura, estreladas vivamente
pelas chamazinhas fumarentas das microscópicas velas de cera colorida, ardendo
em todos os ramos no meio de bibelôs variados e doces de mil feitios. Revoadas
de crianças, todas de cabelos cor de ouro, em leves vestes cheias de fitas,
brincavam alegremente em torno de cada árvore, numa grazinada festiva. Sob as
trepadeiras floridas que revestiam as varandas e cujas folhas miudinhas
recortavam-se em fina trama de bronze num fundo fulvo de luzes, homens e
matronas, com rapazes e moças de lieder, as cabeças de um tom doce de trigo ou
feno em plena maturidade, em volta de longas mesas atoalhadas, cobertas de
grandes bolos tostados e de copos e pelotões de garrafas, palravam e riam
alacremente, bebendo fresca cerveja espumosa ou esses puros vinhos do Reno que
vêm de vinhedos lendários...
Para alcançarmos a casa tínhamos
de percorrer todo o coração da cidade — a rua do Meio, a do Príncipe, a de
Ludovico, a da Cachoeira e a do Norte, todas amplas, muito limpas, pautadas ao
longo das casas por orlas de grama curta e por sebes de roseiras.
O nosso carro voava, cruzando
dezenas de outros, através as ruas em festa, em meio à correnteza dos prédios,
que, ornados e cheios de luzes, povoados de risos e cantos, com balões
venezianos brilhando entre ramagens, a árvore amada das crianças erguida ao
centro das salas, faziam esquecer por momentos a materialidade de sua
estrutura, para tomarem à vista deslumbrada a arquitetura luminosa e rendada de
castelos fantásticos, desses que — rezam as sagas — fulgiam à noite pelos
feudos, nos grandes festins reais. E o magnífico veículo só diminuía a marcha
ou estacava por vezes para dar passagem aos numerosos grupos de raparigas e
moços que, aqui e além, tomavam as esquinas das ruas, vagando em todos os
rumos, numa grande cantoria coral, em que as notas graves dos bassos abafavam,
a espaço, o uníssono delicado das gargantas femininas.
Em vários pontos e quadras,
edifícios colossais, com largos pórticos e parques interiores, como imensos
politeamas, destacavam-se feericamente pelo extraordinário clarão de sua alta
frontaria pejada de luminárias: eram os “bailes públicos”, onde se reúne a
gente do povo, operários e criadas para celebrar o Natal. Bandas musicais de
cem figuras e mais estrugiam dentro, em execuções vertiginosas mas de uma
afinação impecável, desenrolando o infinito repertório das polcas, xotes e valsas, ao som das quais se moviam
jubilosamente multidões inumeráveis de pares, nesses zumbs delirantes que
começam com as primeiras estrelas e só findam à madrugada.
Durante meia hora talvez
carruajamos assim, em meio à expansão coletiva e geral de toda a cidade, onde
decerto poucas almas haveria que não palpitassem e gozassem no triunfo do
Natal, essa festa característica e eterna das nações setentrionais. E foi
justamente ao apontar suntuoso da lua sobre as colinas de leste, onde o rio
serpenteia por cachoeiras de prata, que nós entramos, muito alegres, a linda
rua dos Lírios, cintilando toda acesa pela fachada das casas.
Alguns momentos depois apeávamos,
sob palavras de boa acolhida, à entrada da ampla varanda entre ramagens do
palacete Rosemberg, onde o bom velho Wilhelm, o dono da casa, deixando a multidão
dos convivas que lhe inundavam as salas, com a esposa e as meninas, um grupo
inefável de valquírias louras — me veio cercar para logo afetuosamente,
ordenando a Paulo que me conduzisse lá acima, aos aposentos que me destinara.
Subimos, então, em seguida, e, demorando-me apenas o tempo indispensável para
sacudir a poeira de carvão da viagem, delongada de quase seis horas desde S.
Francisco até ao cais de desembarque — desci radiante com Paulo, para a
apresentação aos amigos da família e a primeira visita à árvore de Natal, no
salão nobre, onde as crianças traquinavam em deliciosa algazarra.
Na larga varanda balaustrada,
abrindo para o jardim da frente, sob o denso crivo de trepadeiras e as luzes
que o douravam, corria a imensa mesa do festim de Weihnachten, totalmente
ocupada por cavalheiros e damas, e à
cabeceira da qual Wilhelm Rosemberg e a esposa, repousados e felizes, nessa
alta sinceridade de afetos que é o encanto da raça saxônia — faziam as delícias
de todos, entretendo e animando a confabulação geral na mais doce intimidade.
Cada um dos convivas, sentado familiarmente ao seu lugar, servia-se por suas
mãos, pois nessa noite não há um só lar alemão que não dê folga aos criados — e
esta é a folga sagrada do Natal, que ninguém ousa de leve afrontar, ainda em
casos excepcionais. Os homens e rapazes tinham diante de si altos copos de
litro, de porcelana ou cristal, com as finas tampas de metal branco reluzente
erguidas para trás sobre a asa: dentro de cada copo a cerveja fervia, coroada
de espuma, translúcida, cor de topázio. As matronas e fräulein debicavam
iguarias e doces, acompanhando os saborosos bocados com pequenos goles de
Kocheim e Jahannisberg, os famosos e finos vinhos capitosos do Reno.
Assim que apareci com Paulo, o
velho Wilhelm, empoltronado como estava, sem se mover, mas risonho e afável,
com os seus olhos vivos de sable cheios de uma grande ternura, a barba longa e
grisalha, gritou o meu nome a todos, apresentando-me descerimoniosamente, e
chamou-me para o seu lado, onde sentei-me, depois de corresponder às cortesias,
na cadeira deixada nesse momento mesmo por uma de suas filhas, a encantadora
Bertha, que saía com dois pratos cheios de bolo e uma garrafa clara, em direção
à outra sala.
Passando-me a mão pelo ombro e
afagando-me, depois de me perguntar delicadamente como passara na viagem e como
deixara a família, que ele conhecera de uma vez em que fora ao Desterro, o bom
germano dizia-me:
− Berthe foi levarr algume coise
aos velhas que está na outrre sale com as menines.
Os “velhas” eram os nonagenários
Rosemberg, marido e mulher, os nobres pais de Wilhelm, que também já contava
sessenta e cinco anos. Como todos os anos, os dous velhos, apesar de
alquebrados e trêmulos pela idade, não queriam deixar o “seu trono” no salão
nobre onde estavam os netos e bisnetos com a sua “árvore”, sem que batesse a
meia noite, hora em que devia chegar o fantástico S. Silvestre, der
Sylvesterabend, com o pesado embornal de couro para a distribuição às crianças
dos presentes de Natal.
E conversávamos, enquanto Paulo,
em frente a mim, do outro lado, servia-me cerveja e servia-se, partindo ao
mesmo tempo queijo e fatias de bolo tostado. Por toda a mesa, para mais de
quarenta convivas de ambos os sexos bebiam e riam, alegremente e com
sobriedade. Do salão grande, colocado ao centro, com interposição de uma sala e
tomado às portas por belos reposteiros de cassa, vinha-nos de vez em quando, em
rajada, a gritaria sonora das crianças, forte e viva como uma girândola de
foguetes que de repente se desprendesse e espocasse no ar.
Depois de algumas horas eu quis
ir ver com Paulo a árvore de Natal, saber de que proporções era, como a tinham
armado naquele ano e que surpresas guardava; mas o bom Wilhelm correu-me
paternalmente a mão pelo ombro, dizendo-me que não, que esperasse para a ver
quando estivesse a entrar S. Silvestre, que não tardava, pois já eram onze e
meia.
Continuamos a cervejar e a
confabular cordialmente, quando de súbito uma campainha retiniu lá fora, ao
fundo do palacete, para os lados do pomar. As crianças, no salão, romperam em
colossal matinada, como se ali se tivesse soltado inesperadamente um grande
bando de gralhas. Alvoroçaram-se as salas. E todos da mesa, a começar por
Wilhelm e a esposa, ergueram-se, gritando com estardalhaço:
— Der Sylvesterabend! Der
Sylvesterabend! E precipitaram-se todos para o salão da árvore. Eu, levado pela
mão de Wilhelm, lá fui também no torvelinho, palpitando de curiosidade.
No salão profusamente iluminado
pelo grande candelabro e por arandelas douradas saindo de cada portal, estavam
ainda somente os dois nonagenários e as crianças, que, caladas agora e sentadas
numa linha de ricas cadeiras de carvalho esculpido, não tiravam os olhinhos
azuis esbugalhados da cortina de damasco escarlate fechando o umbral do
corredor ao fundo, que levava à varanda do pomar.
Enquanto o “santo” não surgia,
pois que não dera ainda a tilintada final, formamos todos em dois grupos — um a
cada lado da sala. Os grupos partiam em direção à fileira das crianças vindo do
pequeno estrado recoberto de veludo vermelho, onde, sobre duas poltronas
imperiais, de alto espaldar floreado e marchetado de ouro, estilo Frederico o
Grande, se achavam sentados os avós Rosemberg, com vestimentas características
de outras épocas, traduzindo costumes obsoletos — magrinhos ambos, mas de
ossada poderosa, fronte ampla e inteligente, o tórax alto e bem feito dos povos
louros do Báltico. Tinham a larga face expressiva, engelhada pelas emoções de
uma existência quase secular, como de pergaminho rosado, onde luziam docemente
os pequeninos olhos verdes, já vazios de esperanças e sonhos, é certo, mas
umedecidos ainda de vaga ternura e saudade. Os cabelos inteiramente nevados
davam-lhes um grande ar venerável.
Ao centro das alas, entre o
“trono” e a criançada, erguia-se a árvore, feita do cimo tenro de um pinheiro
novo, desses que, quando em pleno desenvolvimento, coalham em florestas
colossais os planaltos de S. Bento e da Serra do Mar. Era a maior de todas as
árvores de Natal apresentadas até ali pelo velho Wilhelm aos seus filhos
amados: tinha cerca de quatro metros de altura, da peanha que a sustinha aos
artesãos do teto afundado. Toda coberta de luzes, como um recanto de céu
estrelado, com bibelôs variadíssimos das célebres fábricas de Hamburgo e de
Meissen, com uma multidão de pequenas massas e doces secos representando uma
série zoológica e as cousas mais singulares — a sbaum queridíssima da infância
norte-europeia atraía e deslumbrava, num esplendor quase fantástico.
Eu, no meu grupo com Paulo, já
cansado da demora e com os olhos deslumbrados daquela maravilha de árvore,
perdia-me enlevadamente a contemplar o rosto divino e casto de Bertha, que,
postada em frente no outro grupo, me fitava ingenuamente, com os seus mágicos
olhos celestes, de um azul transparente de lago. E sonhava, acastelava
deliciosamente no espírito as ilusões embaladoras de um profunda amor de
Germana, num lar cheio de pureza e de afeto, cheio de ordem e de paz — quando a
campainha me despertou de súbito, com vibrante tilintada.
Fez-se pesado silêncio: e todos
olharam a porta recoberta de damasco vermelho, com ansiedade. De repente a
cortina correu, colhida em pregas ao lado; as crianças ergueram-se numa
matinada; e um grito uníssono e alegre partiu todas as bocas:
− Der Sylvesterabend! Der
Sylvesterabend! Um velho gigantesco mostrou-se então no umbral, com uma grossa
peliça cinzenta, um grande barrete de marta e um alto bordão de jornada. Os seus
cabelos e barbas cobriam-lhe os ombros e o peito em largas pastas nevadas, as
quais lhe enquadravam o rosto venerável, onde os olhos reluziam como duas
turquesas molhadas. A orla da peliça viam-se-lhe as pernas cheias e fortes,
calçadas em grossas botas amarelas, enrugadas e como úmidas ainda do chapinhar
nos gelos, decerto por alguma planície da Prússia, de onde ele viera
subitamente até ali como por milagre. Trazia um grande embornal de couro a
tiracolo, tão grande que tinha a boca oculta sob umas axilas, enquanto o fundo,
cheio e túmido como um odre, quase tocava o soalho.
Com um gesto militar e sem
proferir palavra, o santo protetor das crianças e enterrador dos “anos velhos”,
que se precipitam no abismo a cada giro de translação do globo — marchou,
circunspecto e severo, sem um sorriso que fosse, em direção ao “trono”, onde já o esperavam de pé, na sua
tremura senil, os bons avós Rosemberg, que, mudamente também, mas sorrindo, lhe
oscularam a larga mão. Depois o “mensageiro do céu” estacou em frente à árvore,
onde logo o cercaram as crianças, que após lhe beijarem o cajado, entraram a
gritar vivamente reclamando, as suas “festas”.
S. Silvestre sorriu-se então
vagamente, contraindo as longas barbas, e muito meigo e carinhoso, curvando-se
um pouco na sua estatura gigante, abriu o bornal de couro, repartindo pelas
crianças uma série variadíssima de encantadores brinquedos e caixas rútilas de
bombons.
Os grupos romperam em palmas, num
fervor de aclamação e em altos vivas ao “santo”.
E neste rumor de alegria, S.
Silvestre foi recuando mansamente para o fundo da sala, sempre voltado para
todos, até galgar o umbral do corredor, onde a cortina de damasco vermelho, ao
som da campainha ressoando de novo, o ocultou por mais um ano, nesse infantil e
conhecido “mistério” que faz a great attraction deliciosa do natal alemão.
Em seguida, na vasta sala
contígua, começaram as danças, que se despenharam em sucessivas xotes e valsas até os primeiros clarões da
alvorada.
Rio — 1897
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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