domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "A Gaivota Azul"

A GAIVOTA AZUL

O encanto de Miss Anne a bordo era uma dessas lindas gaivotas do polo, de alto pescoço gracioso e de uma alvura radiante, tocada levemente, nas asas, de uma nuança de azul.

Possuía-a havia um ano. Dera-lha o praticante da galera, uma manhã de julho, na costa da Groenlândia. Fora após uma grande luta com duas baleias, que tinham sido arpoadas pela meia noite no paralelo 70, junto à ilha de Hooker, sob esse clarão nebuloso e perene das noites polares. As lanchas as perseguiram durante seis horas, numa faina contínua, finda a qual os arpões as venceram. Mas antes disso a embarcação que o rapaz patroava tivera algumas tábuas arrancadas ao fundo pela terrível rabanada de um dos cetáceos, que a levara a encalhar num iceberg próximo, em cujas finas agulhas de gelo pousavam bandos e bandos de pássaros marinhos. Enquanto os tripulantes da baleeira tomavam os rombos com lonas alcatroadas, o George Dinger, com a sua espingarda inglesa, percorria a grande massa gelada, derrubando algumas aves, entre as quais uma bela gaivota azul, que, viva e mal ferida numa asa, debatia-se, aos gritos, sobre um cabeço alto. Apanhada a laurus glaucus, ao voltar para bordo da galera, oferecera-a a Miss Anne, que era louca pelas aves do mar.

A graciosa menina irlandesa nunca mais a deixara, tratando-a como uma boneca, fazendo dela o seu encanto. Pusera-lhe o nome de Hope, esperança, e trazia-a continuamente ao colo, cobrindo-a de mimos e beijos, repetindo-lhe de instante a instante, na sua adorável ingenuidade, como a uma companheira querida, palavras de doçura e meiguice — oh my dear! oh, my darling!

Pela manhã, quando deixava o camarote, surgia no salão da câmara já com a gaivota nos braços, a dar-lhe pedacinhos de biscoutos, miolo de nozes e passas. E mesmo às horas de leitura, das longas leituras britânicas, muito fundas e cismadas, com um grosso volume de Cooper sobre o regaço, nos vastos sofás das anteparas da câmara ou no seu camarim sobre os estreitos beliches envernizados, junto ao vidro das vigias, afagava-a ternamente, envolta nas suas vestes de peles sob o frio boreal. A tarde, nas latitudes mais quentes, enquanto a galera bordejava, com os grandes corpos dos cetáceos amarrados às bordas, na extração desse óleo utilíssimo que faz a riqueza dos armadores baleeiros de Mugford e do Donegal, vinha brincar para o tombadilho, empoleirando a gaivota nas enxárcias de ré, ou fazendo-a esvoaçar pela borda, presa de uma fita escarlate.

E era essa, agora, a diversão predilecta da filha do capitão Thomas Reider, um valente marinheiro, de tez lisa e cor de lacre, apesar dos seus quarenta anos de lida no mar. Cruzando os oceanos polares durante o verão, quer nas regiões boreais, quer nas austrais, esse gigante das vagas, desde que casara, na primeira metade da sua mocidade, ativo e ambicioso, encetara o comando de navios baleeiros, de onde se tiravam então riquezas incalculáveis. As suas primeiras viagens foram em navios do Canadá, e com tal êxito se acentuaram para ele, que, dentro de seis anos, passara a armar por sua conta, em Foyle, na Irlanda, de onde era a mulher, formosa loura do Donegal, de forte descendência marítima, cujos antepassados haviam perecido heroicamente nas grandes expedições árticas. A morte desta, porém, numa invernação dolorosa no polo, onde todos estiveram quase perdidos, logo após o nascimento de Anne, na sua esplendida galera Mermayd, desgostara-o de tal modo que vendera os seus navios e bens, e, voltando ao Canadá, passara alguns anos em terra, com um Ship-chandler, para educar a filha e descansar um pouco dos labores do mar. Mas o negócio fora para trás, durante uma grave pneumonia que quase o matara, e, perdido tudo, apenas se restabelecera, embarcara outra vez para a pesca polar. E ali ia, agora, aos sessenta anos e pobre, só com aquela filha adorada, no alto casco da Farewell, para as águas austrais.

Miss Anne era uma menina de quinze anos, alta e cheia, de um busto de giganta das Sagas, robusta, setentrional. Tinha os cabelos crespos e cor das praganas dos milhos, a pele fina e rosada, os olhos de um verde de onda do largo. A boca fresca e polpuda, vagamente recortada em flecha, abria-se, sobre os dentes de neve, como um traço carminado. E do seu talhe alto e forte de deusa britânica, dourada pelo sol do mar, um resplendor saía, nimbando-a de tal graça e beleza, que se diria uma aparição dos Edas, surgindo, loura, das vagas.

George Dinger, que era um rapaz brasileiro, de cabelos castanhos e olhos negros inflamados, posto que filho de yankee, mal pisara o convés da galera impressionara-se por Miss Anne. E no espaço de quase três anos em que ali andava, cruzando as zonas polares, o seu coração enamorado não cessara um só instante de palpitar e gemer por aquela rapariga divina, que lhe arrebatara a alma. Mas a visão loura das Sagas, na sua ingenuidade saxônia, durante muito tempo não lhe dera a menor atenção. E era embalde, e timidamente, que ele, às vezes, à mesa, lhe dirigia a palavra, amoroso e tartarmudeante; ou que, pelas tardes veladas do polo, ou sob os luares idealizadores dos céus tropicais, a envolvia em seus cantares, fitando-a meigamente da borda, sob as velas enfunadas.

Miss Anne não passava de uma verdadeira criança com um porte colossal. Um dos seus entretenimentos mais queridos eram os jogos que, nos dias de calma e boa monção, lhe arranjava o piloto na tolda. Esse bom velho hércules, rosado e de barbas grisalhas, que, apesar de solteirão amava as crianças com um enternecimento paternal, fazia consistir, de algumas vezes, as suas brincadeiras em correrias loucas atrás da menina, como se brincassem ambos o Tempo será; de outras, em agarrá-la pelos braços e balouçá-la da borda sobre as ondas espumantes — tudo isso por entre um alegre tumultuar de exclamações e risadas...

É o pobre George Dinger, debruçado da borda, ou de pé junto ao leme quando estava de quarto, vendo-a tão indiferente ao seu amor, suspirava baixo, num despeito e com um vago ar magoado.

Mas na ocasião em que estivera quase a morrer contra a ilha de Hooker, na perigosa arpoagem daquela manhã de julho — o pior dia de pesca que experimentara depois que andava na Farewell — uma esperança de que a rapariga viesse a perceber o seu grande afeto por ela nasceu-lhe subitamente na alma ao apanhar a linda gaivota azul. Desde então, com efeito, Miss Anne se lhe tornara mais amiga, e, com a ave sempre ao colo, no tombadilho ou na câmara, quando se encontravam, falava-lhe com certa meiguice, envolvendo-o na doce luz dos seus olhos.

Com o pretexto de afagar a gaivota, ele jamais se descuidava de se aproximar dela, dirigindo-lhe de contínuo elogios e graças. Assim, dentro em pouco, começou a nascer entre ambos uma certa intimidade. Horas e horas, então, pelas manhãs transparentes e pelas tardes suaves, sentados alegremente na tolda ou junto das amuradas, apreciavam a aurora ou o crepúsculo fulgindo em chamas de nácar sobre a vastidão do oceano, ao mesmo tempo que carícias langues de amor voavam de lábio a lábio, no murmúrio vago das ondas quebrando contra o costado. E a gaivota azul entre ambos como um talismã sagrado!

Um dia, porém, ao deixarem o hemisfério do norte, a linda ave fugira. Miss Anne, inconsolável e num pranto, fechada no camarim, não quisera falar ao namorado, nem subira ao tombadilho. Ele também, por seu lado, triste e suspiroso, corria todo o navio, à procura da gaivota, que era a sua felicidade na vida.

Mas a gaivota do polo lá ia por esses mares, em busca das terras árticas...

E o capitão, indiferente, ria alegre com o piloto, enquanto a galera veleira singrava, airosa, à bolina.

  
Rio — 1897


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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