A GAIVOTA AZUL
O encanto de Miss Anne a bordo
era uma dessas lindas gaivotas do polo, de alto pescoço gracioso e de uma
alvura radiante, tocada levemente, nas asas, de uma nuança de azul.
Possuía-a havia um ano. Dera-lha
o praticante da galera, uma manhã de julho, na costa da Groenlândia. Fora após
uma grande luta com duas baleias, que tinham sido arpoadas pela meia noite no
paralelo 70, junto à ilha de Hooker, sob esse clarão nebuloso e perene das
noites polares. As lanchas as perseguiram durante seis horas, numa faina
contínua, finda a qual os arpões as venceram. Mas antes disso a embarcação que
o rapaz patroava tivera algumas tábuas arrancadas ao fundo pela terrível
rabanada de um dos cetáceos, que a levara a encalhar num iceberg próximo, em
cujas finas agulhas de gelo pousavam bandos e bandos de pássaros marinhos.
Enquanto os tripulantes da baleeira tomavam os rombos com lonas alcatroadas, o
George Dinger, com a sua espingarda inglesa, percorria a grande massa gelada,
derrubando algumas aves, entre as quais uma bela gaivota azul, que, viva e mal
ferida numa asa, debatia-se, aos gritos, sobre um cabeço alto. Apanhada a
laurus glaucus, ao voltar para bordo da galera, oferecera-a a Miss Anne, que
era louca pelas aves do mar.
A graciosa menina irlandesa nunca
mais a deixara, tratando-a como uma boneca, fazendo dela o seu encanto.
Pusera-lhe o nome de Hope, esperança, e trazia-a continuamente ao colo,
cobrindo-a de mimos e beijos, repetindo-lhe de instante a instante, na sua
adorável ingenuidade, como a uma companheira querida, palavras de doçura e
meiguice — oh my dear! oh, my darling!
Pela manhã, quando deixava o
camarote, surgia no salão da câmara já com a gaivota nos braços, a dar-lhe
pedacinhos de biscoutos, miolo de nozes e passas. E mesmo às horas de leitura,
das longas leituras britânicas, muito fundas e cismadas, com um grosso volume
de Cooper sobre o regaço, nos vastos sofás das anteparas da câmara ou no seu
camarim sobre os estreitos beliches envernizados, junto ao vidro das vigias,
afagava-a ternamente, envolta nas suas vestes de peles sob o frio boreal. A
tarde, nas latitudes mais quentes, enquanto a galera bordejava, com os grandes
corpos dos cetáceos amarrados às bordas, na extração desse óleo utilíssimo que
faz a riqueza dos armadores baleeiros de Mugford e do Donegal, vinha brincar
para o tombadilho, empoleirando a gaivota nas enxárcias de ré, ou fazendo-a
esvoaçar pela borda, presa de uma fita escarlate.
E era essa, agora, a diversão
predilecta da filha do capitão Thomas Reider, um valente marinheiro, de tez
lisa e cor de lacre, apesar dos seus quarenta anos de lida no mar. Cruzando os
oceanos polares durante o verão, quer nas regiões boreais, quer nas austrais,
esse gigante das vagas, desde que casara, na primeira metade da sua mocidade,
ativo e ambicioso, encetara o comando de navios baleeiros, de onde se tiravam
então riquezas incalculáveis. As suas primeiras viagens foram em navios do
Canadá, e com tal êxito se acentuaram para ele, que, dentro de seis anos,
passara a armar por sua conta, em Foyle, na Irlanda, de onde era a mulher,
formosa loura do Donegal, de forte descendência marítima, cujos antepassados
haviam perecido heroicamente nas grandes expedições árticas. A morte desta,
porém, numa invernação dolorosa no polo, onde todos estiveram quase perdidos,
logo após o nascimento de Anne, na sua esplendida galera Mermayd, desgostara-o
de tal modo que vendera os seus navios e bens, e, voltando ao Canadá, passara
alguns anos em terra, com um Ship-chandler, para educar a filha e descansar um
pouco dos labores do mar. Mas o negócio fora para trás, durante uma grave pneumonia
que quase o matara, e, perdido tudo, apenas se restabelecera, embarcara outra
vez para a pesca polar. E ali ia, agora, aos sessenta anos e pobre, só com
aquela filha adorada, no alto casco da Farewell, para as águas austrais.
Miss Anne era uma menina de
quinze anos, alta e cheia, de um busto de giganta das Sagas, robusta,
setentrional. Tinha os cabelos crespos e cor das praganas dos milhos, a pele
fina e rosada, os olhos de um verde de onda do largo. A boca fresca e polpuda,
vagamente recortada em flecha, abria-se, sobre os dentes de neve, como um traço
carminado. E do seu talhe alto e forte de deusa britânica, dourada pelo sol do
mar, um resplendor saía, nimbando-a de tal graça e beleza, que se diria uma
aparição dos Edas, surgindo, loura, das vagas.
George Dinger, que era um rapaz
brasileiro, de cabelos castanhos e olhos negros inflamados, posto que filho de
yankee, mal pisara o convés da galera impressionara-se por Miss Anne. E no
espaço de quase três anos em que ali andava, cruzando as zonas polares, o seu
coração enamorado não cessara um só instante de palpitar e gemer por aquela
rapariga divina, que lhe arrebatara a alma. Mas a visão loura das Sagas, na sua
ingenuidade saxônia, durante muito tempo não lhe dera a menor atenção. E era
embalde, e timidamente, que ele, às vezes, à mesa, lhe dirigia a palavra,
amoroso e tartarmudeante; ou que, pelas tardes veladas do polo, ou sob os
luares idealizadores dos céus tropicais, a envolvia em seus cantares, fitando-a
meigamente da borda, sob as velas enfunadas.
Miss Anne não passava de uma
verdadeira criança com um porte colossal. Um dos seus entretenimentos mais
queridos eram os jogos que, nos dias de calma e boa monção, lhe arranjava o
piloto na tolda. Esse bom velho hércules, rosado e de barbas grisalhas, que,
apesar de solteirão amava as crianças com um enternecimento paternal, fazia
consistir, de algumas vezes, as suas brincadeiras em correrias loucas atrás da
menina, como se brincassem ambos o Tempo será; de outras, em agarrá-la pelos
braços e balouçá-la da borda sobre as ondas espumantes — tudo isso por entre um
alegre tumultuar de exclamações e risadas...
É o pobre George Dinger,
debruçado da borda, ou de pé junto ao leme quando estava de quarto, vendo-a tão
indiferente ao seu amor, suspirava baixo, num despeito e com um vago ar
magoado.
Mas na ocasião em que estivera
quase a morrer contra a ilha de Hooker, na perigosa arpoagem daquela manhã de
julho — o pior dia de pesca que experimentara depois que andava na Farewell —
uma esperança de que a rapariga viesse a perceber o seu grande afeto por ela
nasceu-lhe subitamente na alma ao apanhar a linda gaivota azul. Desde então,
com efeito, Miss Anne se lhe tornara mais amiga, e, com a ave sempre ao colo,
no tombadilho ou na câmara, quando se encontravam, falava-lhe com certa
meiguice, envolvendo-o na doce luz dos seus olhos.
Com o pretexto de afagar a
gaivota, ele jamais se descuidava de se aproximar dela, dirigindo-lhe de
contínuo elogios e graças. Assim, dentro em pouco, começou a nascer entre ambos
uma certa intimidade. Horas e horas, então, pelas manhãs transparentes e pelas
tardes suaves, sentados alegremente na tolda ou junto das amuradas, apreciavam
a aurora ou o crepúsculo fulgindo em chamas de nácar sobre a vastidão do
oceano, ao mesmo tempo que carícias langues de amor voavam de lábio a lábio, no
murmúrio vago das ondas quebrando contra o costado. E a gaivota azul entre
ambos como um talismã sagrado!
Um dia, porém, ao deixarem o
hemisfério do norte, a linda ave fugira. Miss Anne, inconsolável e num pranto,
fechada no camarim, não quisera falar ao namorado, nem subira ao tombadilho.
Ele também, por seu lado, triste e suspiroso, corria todo o navio, à procura da
gaivota, que era a sua felicidade na vida.
Mas a gaivota do polo lá ia por
esses mares, em busca das terras árticas...
E o capitão, indiferente, ria
alegre com o piloto, enquanto a galera veleira singrava, airosa, à bolina.
Rio — 1897
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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