O VELHO COURAÇADO
A Júlio Brito
Abril chegara com os seus dias
frescos e suaves. O sol tinha já na sua luz profusa e de ouro um
empalidecimento hibernal. As madrugadas mostravam-se agora, pelas encostas das
serras ou sobre os planos do mar, envoltas em vastas faixas de gaze, de uma
brancura ideal. As tardes, muito límpidas e despidas de nuvens, expiravam
lirialmente em rosados esmaecidos ou em leves barras douradas. Os ocasos não
tinham mais as galas pomposas do estio, mas nuances esbatidas de aqua-marina ou
de nácar. E a cada Ave-Maria, no alto azul do firmamento, corria um bafejo
álgido.
Havia quase um mês que o desolado
ecoar dos bombardeios tinha cessado de todo, trazendo a paz e o esplendor dos
dias felizes à grande capital, tão longamente agitada durante os meses lutuosos
da guerra civil. Mas a tempestade tremenda rugia ainda para o sul, juntando o
furor dos seus raios ao dos ciclones austrais, estourando já sobre os mares em
torvelinhos de espuma. Em breve, talvez, esmagado pela fatalidade, um dos dois
adversários pujantes ia rolar para sempre, vencido, numa medonha hecatombe...
À maneira da capital, Niterói,
que durante os seis meses da luta sofrera os mais vivos tiroteios, tornava
agora à tranquilidade primitiva. Já na sua maior parte, como uma tribo de andorinhas
felizes, vinham chegando alegremente aos seus ninhos as famílias que,
atemorizadas com os horrores da guerra, se haviam asilado em tumulto pelos
sítios interiores. Pelas ruas restabelecia-se pouco a pouco o movimento de uma
cidade, que, abandonada por instantes, se repovoa de repente, reentrando na sua
atividade pacífica. E por tudo pairava como que o alvoroço triunfal de uma nova
vida.
Naquele dia, entre as últimas
famílias que voltavam, contava-se a do barão de Sant’Ana, antigo e abastado
fazendeiro, cujo palacete ficava situado num arrabalde litoral, de onde se
dominava a baía. Colocado para os lados da Armação, o belo solar tivera por
vezes o vasto terraço da frente e as altas cimalhas rendilhadas ameaçados de
ruína pelos disparos dos navios e lanchas nos pequenos desembarques da arrojada
marinhagem. Mas os pontos atingidos já haviam sido reparados e a magnífica
habitação parecia mais nova que nunca nas suas brancas colunatas de mármore e
nos seus ricos ornatos, vazados em estilo coríntio.
A tarde, na alegria daquela
reinstalação sossegada e na plena posse de seus domínios, as filhas do Sr.
Barão, um bando de moças adoráveis, ao receberem as primeiras visitas das
amigas da vizinhança, que há tanto tempo não viam, irromperam pelo jardim e o
pomar em grazinada festiva. Foram então brinquedos e correrias, álacres ao
longo dos canteiros floridos e pelas sinuosas áleas areadas, pitorescamente
ensombradas pelas altas frondes ramalhosas das árvores frutíferas.
À noite, após o jantar,
reuniram-se todos nos grandes salões iluminados, cujas largas janelas de
mármore abriam sobre a baía. O rico piano de cauda foi desde logo assaltado
pelas moças que, no seu constante alvoroço de júbilo, sucediam-se na execução
de variadas peças comuns, em geral valsas e polcas brasileiras, muito
dançantes, de um ritmo e graça característicos. De vez em quando, porém, os ritornellos simples dessas músicas
ligeiras cessavam. Havia uma pausa, em que se ouvia somente o doce gorjear
amoroso das vozes femininas.
Aproveitando um desses fugidios
instantes, uma das moças vizinhas destacou-se do grupo das outras, e, muito
alegre, numa pressa galante, dirigiu-se à Sra. Baronesa, pedindo-lhe para se
fazer ouvir num dos trechos da Gioconda, que ela cantava tão bem. A Sra.
Baronesa, que apesar dos seus cinquenta e três anos conservava ainda muito viva
a sua antiga paixão pelo canto, um dos triunfos maiores da sua encantada
mocidade pelos salões aristocráticos de então, ergueu-se logo a sorrir, e,
atravessando rapidamente a sala, foi sentar-se ao piano.
As meninas correram imediatamente
para as estantes de música, a procurar a ópera. Álbuns e libretos de ricas
capas douradas foram então folheados febrilmente por mãos delicadas e brancas,
em cujos dedos faiscavam anéis. Mas o livro onde estava a Gioconda ninguém
atinava com ele. E na impaciência da procura, fez-se uma alegre confusão, em
que as folhas se voltavam tumultuosamente, por entre exclamações e risadas.
De repente, uma das moças,
erguendo às mãos um livro de capa de veludo azul, saiu a correr em direção ao
piano, com gritinhos alvissareiros:
— Achei, Sra. Baronesa! Está aqui
a Gioconda!
E colocando o livro sobre a
pequena estante do teclado, abriu-o na ária que canta o tenor, um príncipe
genovês disfarçado em marinheiro dálmata, a bordo do seu bergantim romanesco,
onde se improvisara corsário.
Então a bela voz de soprano da
Sra. Baronesa começou a ondular na sala, em notas de uma encantadora melodia
saudosa, que exprimiam vivamente as incertezas e as interrogações amorosas que
Enzo, enlouquecido da paixão pela divina Laura, lançava desoladamente à
imensidade e ao vago, de pé, à tolda balouçante do Hecate, singrando o mar de
Fusina ao clarão triste da lua:
Cielo e mar! L’etereo velo
Splende come un Santo altare ...
L’angiol mio verra dal cielo?!
L’angiol mio verra dal mare?!...
E a ária findou pelo alvoroço de
uma atracação em pleno mar. Era uma galeota iluminada, que surgira de repente à
popa, vindo de terra a toda a força, ao cantar ritmado dos remos, em demanda do
navio. Enzo depara com o vulto da amante adorada, vaporoso e feérico como uma
visão edênica, à luz vermelhante dos archotes ensanguentando estranhamente as
águas. Emocionado e ansioso por apertá-la em seus braços, corre para o espelho
de ré e joga um cabo à galeota, num tumulto febril de palavras
Qua la fune... aggrappa... annoda
Le tue mani... un passo ancor...
Non cadere! approda! approda!..
As moças, entusiasmadas pelo
canto e a magistral execução, aplaudiam alegremente. Mas Cecília, uma das
filhas mais novas da Sra. Baronesa, tinha os seus negros olhos cismadores
cobertos de um véu de lágrimas. Aquela música melancólica, que há tanto tempo
não ouvia, avivara-lhe subitamente no espírito a dolorosa saudade daquele a
quem de muito votara a sua alma. Desde que rebentara a revolta que nunca mais o
pudera ver, porque ele, seguindo os seus companheiros de armas, se fora
enfileirar entre as suas falanges guerreiras, em o navio onde se achava... Uma
semana depois, no receio daquela luta terrível, ela partia com a família para
um sítio do interior, e não tivera mais notícias dele, nem mais soubera o
destino que levara! Dizia-lhe, porém, o coração que ele vivia ainda, e pelejava
lá pelos mares do sul, de onde certamente deveria em breve voltar...
E sob o pungir destas
recordações, a moça encaminhou-se para o amplo terraço que ditas grandes
lâmpadas verdes alumiavam com um vago e fosco clarão de esmeralda. Aí, para não
ser perturbada pela alacridade buliçosa das irmãs ou das amigas, que a não
deixavam um instante quando a viam imersa nas profundezas daqueles cismares,
foi acomodar-se num recanto escuso, entre a folhagem rendilhada de alguns
arbustos e de pequenas palmeiras, que ali cresciam prisioneiros em grandes
tinas pintadas.
A noite arrastava-se serenamente
no espaço azulado, que estrelas rareadas picavam com a sua pontilhação
tremeluzente e dourada. Para um lado a cidade estadeava-se na sua casaria
branca toda cortada pelas infindáveis linhas flamantes dos combustores de gás, aqui e ali empalidecidos
pelo clarão astral de uma ou outra lâmpada elétrica; para o outro, eram as
pequenas cordas em sombra das colunas da Armação; e, defronte, estendendo-se
entre o bordado em relevo das pontas litorais, as águas escuras da baía
ondulando vastamente para além até as enfiadas de luzes infinitas dos planos e
montes da capital, desdobrando-se depois para a barra até aos páramos indecisos
e empastados de treva das vastidões do mar alto.
Com o pensamento no amado, e tão
somente nele, numa vaga palpitação que a fazia suspirar, Cecília investigava
com um olhar melancólico a superfície imensa das vagas, buscando distinguir
entre a leve mancha negra dos numerosos cascos flutuantes o perfil querido dos
navios da esquadra, que ela conhecia por ele lhos haver mostrado muitas vezes,
quando, nas frequentes idas à capital, atravessavam juntos na barca. Mas, em
meio à multidão das frotas estrangeiras fundeadas no porto, desconhecendo
totalmente a posição em que teria ficado a armada revoltosa ao ser abandonada,
embalde procurava descobrir os seus navios, que a legalidade vencedora
dispersara para o fundo da rade, e que, além de tudo, a escuridão da noite
cruelmente lhe ocultava.
E nessa ânsia de incerteza e
desejo insatisfeito, lembrou-se de repente do Sete de Setembro, o belo e velho
couraçado, que, segundo lhe constara lá no interior, onde se achava; os
revolucionários haviam propositalmente afundado ali, em frente à cidade, a
poucas braças do cais. Quando recebera essa notícia experimentara uma grande
tristeza e derramara mesmo algumas lágrimas, porque amava esse navio como a um
velho símbolo sagrado, que entrara acidental mas significativamente na sua
existência, pois fora a bordo dele que pela primeira vez vira o Álvaro, o seu
noivo adorado, quando, ainda segundo tenente, chegara de uma viagem ao Prata.
Já lá se iam dez anos, tinha ela apenas treze! Mas lembrava-se tão bem do velho
couraçado como se ainda o houvesse visto na véspera!
Nesse tempo conservava o
couraçado a sua alta e magnífica mastreação de fragata. O seu longo costado de
aço, onde a proa se desenhava na linha característica dos navios de aríete,
erguia-se a meio numa grande casamata, onde os temerosos canhões espreitavam
sinistramente para um e outro lado do mar, por quatro grossas portinholas
abertas. Percorrera esse compartimento com toda a família, ao lado de Álvaro,
que lhes mostrava tudo minuciosamente. Vira de perto esses canhões, tão limpos
e polidos que pareciam de prata. E o camarote do comandante? e a praça de
armas?... Parecia que os estava ainda a ver, esses departamentos, com as suas
pequenas salas ouro e branco, os seus espelhos, os seus tapetes, os seus
aparelhos e instrumentos de guerra, os seus quadros de batalhas navais. A praça
de armas a encantara sobretudo, porque era nela que o Álvaro tinha o seu camarotes
um quartinho quase de bonecas, com um beliche esguio, tão estreito e tão baixo
que ela não sabia conto unta pessoa podia ali dormir sem morrer sufocada!
Recordava-se também do tombadilho, um lugar muito vasto, tão bem assoalhado e
asseado como um grande salão. O que, porém, aí mais a impressionara tinha sido
o largo pano claro que tremia ao vento, esticado horizontalmente em grandes
varões de ferro, e que dava uma tão doce frescura ao navio, protegendo-o contra
o sol da tarde. E fora à sombra deliciosa dessa espécie de teto de tenda
marinha que o Álvaro, de pé ao seu lado, num recanto da borda, aproveitando um
rápido instante de isolamento, lhe dissera, num vago enleio, as suas primeiras,
inolvidáveis palavras de amor...
E neste triste desfiar de saudades,
Cecília percorria a baía com os seus olhos lacrimosos, buscando, por todos os
pontos, o vulto do velho couraçado, ou a sua mastreação, que deveria plainar
ainda acima das ondas bravas. A escuridão sobre as águas era, porém, naquela
altura, de uma grande intensidade, devido ao forte contraste das luzes vivas do
cais; de sorte que ela só podia descobrir os cascos altos das barcas, que
chegavam ou que partiam, num grande silvo metálico...
No entanto, uma vaga claridade
láctea apontou saudosamente por sobre os montes de leste. Malhas rútilas de
vidrilhos acenderam-se sobre o mar, lá contra a costa fronteira. Então, a meio
do golfo, os navios entraram a destacar-se pouco a pouco, em vagos debruns de
alvaiade, sobre um fundo de fusain. E por fim a lua surgiu, triunfal, abrindo
um leque de prata sobre a negrura das águas.
Nesse instante, justamente, o
olhar triste da moça pairava num ponto das vagas onde havia um casco negro. Era
o velho couraçado. Estava já desmastreado e sem cabos, as bordas despedaçadas.
Ela julgou a princípio que não fosse ele, mas alguma velha barcaça que ali se
houvesse afundado.
− Não, não é possível! dizia de
si para si. O belo navio não pode estar assim tão desfeito, tão desmantelado...
E esquadrinhava todo o porto, a
ver se algum outro casco seria o belo vaso de guerra, onde encontrara o seu
noivo e lhe falara pela primeira vez, numa emoção que constituíra para sempre a
sua maior felicidade. Mas nenhuma outra embarcação grande se via ali que
pudesse ser o Sete de Setembro. Era ele portanto aquele casco informe e negro,
que as ondas amavam e iam esconder para sempre, decerto, no seu seio de
esmeralda...
E enquanto no vasto salão
iluminado o canto e a música prosseguiam festivamente, ela, numa infinita
saudade do noivo, contemplava sem cessar os últimos destroços perdidos do velho
couraçado, que a lua, galgando agora o zênite, fazia destacar mais e mais sob o
seu clarão nostálgico.
Rio— 1899
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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