NATAL NO MAR
A Eliseu Guilherme
O capitão tinha dito na véspera
que se o tempo se aguentasse e o vento fosse favorável, por aquela semana, e
Nossa Senhora os não desamparasse, iriam passar o Natal na sua freguesia, no
descanso da viagem. Os marinheiros, ocupados, ao momento, em remendar as velas,
à proa, sobre o castelo abaulado, sorriram, por instantes, na doçura daquelas
palavras, que lhes alegrava a alma, como um prenúncio suave.
E um rapaz moreno, de vinte anos
mais ou menos, que estava sentado à gaiúta, as pernas cruzadas, a fronte
pendida sob o boné de pala larga, afagado pelas densas madeixas escuras do seu
cabelo anelado, tendo sobre os joelhos uma lousa, onde fazia o cálculo da
última singradura andada, ergueu docemente os grandes olhos negros, cheios de
um brilho nostálgico, fixou rápido o capitão, o timoneiro robusto, pousando-os
longamente, em seguida, sobre o mar azulado. Depois, inclinando outra vez a
cabeça, prosseguiu mudamente no cálculo, embranquecendo a pedra de números, que
o lápis abria em bordados. Absorvido na tarefa, só se interrompia algumas vezes
para folhear as tábuas náuticas. Suspirava então, de leve, como numa abafada
saudade.
Levou assim muito tempo, até que
o capitão, voltando da popa, onde estivera a deitar a barquinha, perguntou-lhe
com a sua voz grossa e áspera:
− Então, quantas milhas andou o
patacho?
− Noventa, fez ele de pronto,
erguendo o rosto queimado, onde os olhos fulgiam, acesos ainda num clarão de
saudade.
A face carregada do velho marujo
iluminou-se então duma expansão de bondade, e sua boca alentada, de finos
lábios enérgicos, descerrou-se num sorriso de júbilo, sobre os belos dentes
alvos. Achegando-se da gaiúta, onde o rapaz, já de pé, pegava as Tábuas e a
pedra para descer para a câmara, pousou-lhe a mão sobre o ombro, e, fitando-o
muito com os seus olhos claros, raiados de sangue nos cantos pela idade e pela
refração do sol no mar, disse-lhe, enternecido, num vago ar paternal:
− Assim, meu rapaz! É puxar pelo
casco, é puxar pelo casco! E deixa-te lá de casórios, que tu não tens idade! A
Luíza que espere. Faz-te homem, primeiro... A tua mãe, coitada, precisa de
ti... Bota pra fora as tristezas! E alegra-te, que vais ainda passar com dia o
Natal!...
Enleado de repente por aquelas
palavras, a cabeça baixa, os olhos fisgados na tolda, o Venâncio, colhido assim
no seu segredo íntimo, nem sabia o que dizer. Mas como o velho Soeiro, que ele
tanto respeitava e temia pela sua severidade e rigor em viagem, lhe falasse
desta vez com tanta bonomia, ousou responder vagamente, todo rubro, numa
titubeação de palavras:
− Não, senhor... não, senhor...
eu não penso em casar...
E desceu para a câmara,
carregando os objetos, numa pressa de se libertar do “aperto” em que o pusera o
velho náutico. Entrou no camarote, e sob o júbilo que o tomava, naquela doce
esperança de ir passar o Natal no seu arraial, abriu a caixa da roupa, sacou de
dentro um pequeno registro colorido do Senhor do Bonfim, que era o padroeiro do
lugar, e beijou-o longamente, pensando na mãe o na amada...
Mas um pampeiro do sul caiu
inopinadamente, uma tarde, na antevéspera do dia almejado. E o navio, com o
litoral já à vista, pela proa, foi obrigado a fazer-se ao mar. Desde essa hora
até ao dia seguinte, ninguém a bordo parara, numa faina contínua, quando o
vento começou a amainar e o patacho meteu de novo na bordada de terra. Até à
tarde, porém, não se avistou a costa; e a tripulação, agastada com aquele
demônio de tempo, praguejava rudemente, perdida agora a esperança de ir passar
o Natal em seus lares.
O próprio capitão, de pé ao
cata-vento, junto ao homem do leme, mostrava, nesse instante, o rosto carregado
como numa contrariedade. No entanto, durante o vendaval, a sua larga fisionomia
de leão do oceano se conservara plácida e animada, nessa serenidade
incomparável de espírito e de alma, que é a superioridade do marujo ante esse
temível adversário — o mar. É que o velho Soeiro tinha também esposa e filhos a
quem idolatrava, e mais do que todos, a bordo, sentia o desejo insaciável de
mergulhar o coração sequioso de afetos nas carícias e bênçãos do lar, onde
todos os que vogam nas ondas encontram sempre um asilo remansoso e sagrado.
Num recanto da popa, entretanto,
o Venâncio, a quem o velho afagara nas vésperas, junto à gaiúta alta,
satisfeito e feliz por encontrar nele um discípulo digno e que não temia
bater-se com as vagas, prometendo dar de si um marinheiro que o saberia honrar;
num recanto da popa, o rapaz não cessava de olhar, um momento, o horizonte
além, onde lhe parecia ainda ir surgir de repente, sob a névoa dourada do
poente, a curva branca e saudosa do seu golfo natal. Ali ficou muito tempo, até
que a sineta de bordo o despertou para o quarto.
Já então, para leste, uma cinza
sutilíssima se alastrava nas águas. Descia a noite lentamente; na barra verde
do ocaso, onde brilhos vagos morriam, na glória do sol que findava, um ponto
fulvo pequenino, Vésper, a estrela da tarde, numa cintilação tremulante e
faustosa, que convidava a amar, rolava no côncavo azul do firmamento, como uma
camândula dourada.
Nas amuradas, à proa, e sobre o
castelo arqueado, os marinheiros em grupo, esquecidos já do pampeiro, numa
resignação invejável de almas sãs e amoráveis, que não dão nunca abrigo e
guarida a ódios mas a amores e mágoas, cantavam saudosamente e em coro essas
belas cantigas do sul, que sonorizam as estradas e praias alvas dos sítios pelo
tempo do Natal.
Embaixo, na câmara, o capitão,
vendo que não chegariam à barra senão ao outro dia, pela tarde, pois estavam
ainda a mais de dois graus ao mar, abrira os mapas sobre a mesa para traçar os
rumos andados e pôr o ponto na carta. Mas a saudade da família trabalhava-lhe a
alma. E, às vezes, quando o canto da maruja estalava mais forte, à proa, sob o
ranger surdo dos mastros, ele, subitamente enternecido, os olhos arrasados de
lágrimas, erguia a cabeça leonina, branqueada pelos anos, e punha-se a olhar
tristemente a luz amarela e saudosa do farolim, pendendo osciladoramente do
teto, na sua manga de vidro cercada de um gradil de metal.
Em cima, ao pé do leme, sentado
em frente à bússola, na gaiúta fechada, o Venâncio enlevava-se também
longamente naquelas cantigas nostálgicas. Conhecia-as bem, pois a sua infância
dourada havia deslizado entre elas, num embalamento de júbilo, na sua aldeia
adorada. E quantas vezes as cantara, em menino, no bando alegre dos amigos, em
noites assim de festa, seguindo, com a lua no céu, de presepe em presepe, os
ranchos palreiros das raparigas amadas!
Assim cismava tristemente, quando
o coro dos marinheiros, avante, cessou de súbito, num profundo stacato. Fez-se
um momento de silêncio, em que só se ouvia o murmúrio saudoso das ondas batendo
nas amuradas. Era meia noite, uma dessas meias noites soturnas e quase trágicas
do mar.
Então, sob os quadrados alvos das
velas nevando o espaço no alto, vozes roucas e másculas gritaram, à uma, do
castelo:
− Tocar a Natal! Tocar a Natal!
E logo a sineta de bordo, em
repiques vibrantíssimos, de uma consoladora alegria de alvorada de calma,
cantou o nascimento divino do Menino Jesus, que docemente ecoou pelas águas,
rolando ali, marchetadas de estrias de luz, sob a rede de ouro dos astros.
O capitão, num enlevo, subiu à
pressa ao tombadilho, chamando os marujos à ré. E todos, num forte uníssono
festivo, que arrebatava a alma, entoaram vigorosamente, na tolda, entre aquelas
velas felizes dominando o oceano, este estribilho devoto de um velho hino
cristão:
“Salve! ó divino Jesus!
Luz do nosso coração,
Que vieste hoje ao mundo
Para nossa salvação!”
Rio— 1896.
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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