domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Nerah"

NERAH

O gracieux fantôme,  enveloppe-moi de tes bras.
Plus ferme, plus ferme encore!
Presse ta bouche  sur ma bouche;
adoucis l’amertume de la dernière heure.

Henri Heine


Conhecia-a numa pitoresca cidade do sul. Era alta e alourada, um desses ideais e esguios onde as linhas triunfam em esplendores de beleza rara, lembrando o perfil níveo e franzino dessas virgens de balada, que passavam outrora numa fascinação eteral, através das estrofes plangentes dos lieder, entre sons melancólicos de harpas edênicas, tangidas por obscuros artistas idealizados, sob o velário nebuloso duma lua de lenda, debaixo das ameias dos castelos adormecidos à margem de rios e lagos, ou à beira das estradas silentes, enflorescidas, da média idade.

O seu pescoço alvo, de uma pureza de alabastro, por onde desciam os longos cabelos esparsos em ondulações de ouro ardente, como uma esteira de astros, tinha a contornação pura, a veludez seráfica, a doçura açucenal e celeste do das virgens de Velasquez. Seus olhos azuis, grandes, magníficos, de uma candidez espiritual, imersos sempre numa umidez de langor e numa ternura inefável, tentavam com atração irresistível, venciam e algemavam as almas. Notava-se neles como que o desejo acariciador e sutil de um aconchego ou de um enlace.

Sua existência, embalada pela harmonia e os brilhos de uma vida ideal, em que as esperanças e sonhos passavam e repassavam em faiscante e dourada parábola, como um rosário de estrelas, se expandia suntuosa, numa alta paragem de seleção e nobreza que não permitia quase a escalada das paixões humanas. Parecia viver de abstratas alegrias aladas numa imaterial transcendência, conduzindo luminosamente a sua aspiração e sonhares pelos vagos céus azulados, onde o seu espírito fantasioso e místico se fora amorosamente aninhar. Mas, por vezes, no seu olhar quente e transparente, flutuava uma langorosidade meridional de morena, que anseia e freme nas palpitações de uma paixão mundanal, e então, em sua face nevada e límpida de remota origem escandinava, acendia-se a carminação ardente dos frutos tropicais.

Era inteligente e nervosa e tinha a vesânia artística dos poentes engalanados, em que a sua alma se inebriava numa saudade estranha do Infinito, onde o seu sonho constelara ilusões na explosão luminosa e sangrenta da agonia solar. Em sua imaginação nevrosada, de arrebatamentos súbitos e irradiações impersistentes, surgiam, às vezes, como desenhos caleidoscópicos, idealidades errantes, com intensidade de alucinações e coisas sem fundamento, ilógicas.

A sua vida era como uma orquestra de violinos e órgãos, cheia, umas vezes, de surdinas aéreas, muito altas, arrebatadoras como hinos religiosos de catedrais saxônias, que enterram as flechas no céu; e outras de turbilhões convulsos, fantásticos, como coruscações de relâmpagos cortando o escuro molhado das noites invernosas.

A primeira vez que a ouvi falar, senti a maviosidade saudosa de uma canção distante, no azul luminoso e fresco de uma tarde americana: a sua voz dulcíssima, como cordas tremulantes de cítaras vibrando sob as abóbadas de um claustro, ficou-me a cantar longamente nas células rútilas de meu espírito e nas paredes vazias da minh’alma. E quando, horas inteiras, fixava os seus olhos castos, de uma doçura e brilho de sacrário iluminado, vertendo angelicamente nos meus a sua luz de turquesa ideal, o meu triste coração de solitário, tão cheio de desilusões e saudades, calmava de repente o seu pulsar inquieto, para cair docemente na imobilidade de um êxtase ou de um sonho constelar.

Por fim, uma vez, à bendita claridade nevosa de uma noite enluarada, atirei-me genuflexamente ante a sua aparição tentadora, numa adoração prosternada; e longamente, inigualavelmente, por semanas incontáveis, em que todas as delícias humanas se idealizaram como em um vasto ninho eteral, suspenso do céu no meio de uma clareira de astros, o meu ser arrebatado incessantemente se expandiu e rolou nas alucinações de um delírio divino e de um bem incomparável!...

Um dia, porém, inquietante dia nebuloso de desespero e cuidados, empastado tenebrosamente no alto de carbonosas tintas tumultuárias, que um grande vento de inverno intumescia e agitava fazendo chorar, a espaços, em aguaceiros nostálgicos o triste azul enlutado na viuvez desoladora da luz, morta de repente no seio incinerador das lestadas — ela, a radiante criatura estelar, a Astarte alvinitente, a Diana boreal, a minha glória, o meu amor, o meu Caminho de S. Tiago, começou a esmaiar pouco a pouco em sua irradiação sideral.

Lentamente então a sua fina estrutura de mármore, animada pelo sangue nobilíssimo de uma antiga descendência fidalga, entrou a perder as suas linhas recurvas, de uma modelação sonhadora de estátua, caindo dia a dia numa progressiva consumpção nevoenta, de dolorida poesia funérea, que lembrava um perfil de valquíria, passeando o seu mal ideal entre grutas de pedraria, no fundo de águas lendárias. E este definhar contínuo, que lhe dava às formas uma diafaneidade sutil, tornando-a como uma dessas visões nebulosas que flutuavam outrora em legiões alvíssimas na imaginação evocativa dos místicos, à meia luz esfuminhada das celas e cárceres, fazia com que o seu talhe delicado adquirisse mais e mais a doçura sofredora e angélica, a contornação leve e vaga, a divinização inefável que exornavam de graça sagrada as monjas medievais.

Os dias, as semanas e os meses passavam, com tintas de ouro ou de sombra, numa lentidão inquisitorial, estendendo-lhe sendais de saudades que afogavam aqui e ali as últimas florescências dos júbilos passados, dentro do seu coração já vencido na dilaceração angustiosa de antigas e santas imagens...

Percebia claramente, iniludivelmente, que tudo ia em breve findar e que dentro em si alguma coisa — o espírito? a alma? — já vagamente se debatia, em ânsia, para o transe convulsivo do Derradeiro Suspiro. Antevia, pelo pensamento, quase sorrindo e com serena resignação, as paragens sombrias da Pátria Sepulcral... Mas nunca, um só momento, mesmo nas mais agudas e despedaçadoras crises, seus lábios desbotados e tristes deixavam passar de leve, como tão comumente acontece, um ai de blasfêmia ou queixume. Só apenas, um ou outro dia de mais carregada névoa e spleen, em que a terra e o Azul se despojavam da alada alegria dos brilhos no seio denso e revolto das invernias bravas, e pairava no ar gotejante um gemer plangentíssimo de pétalas e ninhos perdidos, a afetuosa criatura amada voltava para mim as esferas azuis dos seus olhos radiantes, e, apertando-me vivamente as mãos, que eu trazia sempre envolvendo docemente as suas, tomada de súbito de uma certa melancolia e saudade, me dizia lentamente na sua voz casta e velada:

− Como é desesperador e terrível, meu amigo, este lento desmanchar de uma vida! E isto na gloriosa plenitude da mocidade e do amor! Se ao menos, quando os males nos tocassem, fosse subitamente e de uma vez, no esmagamento completo de todo o nosso ser, em instantes tão rápidos que não pudéssemos sequer ouvir, dentro em nós, o fúnebre prantear ofegante das quimeras e dos sonhos... Mas não! E um moroso sangrar inclemente, uma tortura sem nome, que parece infligida pelas mãos assassinas de um inquisidor, que possuísse nos seus nervos sinistros o segredo tenebroso dos suplícios inéditos... Ah! se pudesses imaginar o que sofro!...

E a sua cabeça tão loura, de uma sedução imortal, tombava ansiosamente sobre o macio espaldar do divã de Smirna, lívida e sublime, cheia de dor e de sonho, como a de Jesus no Calvário...

Uma tarde, em que maio floria nas planícies e vales e pelas montanhas verdes, ao cantar cristalino de fios d’água correndo em plissés de prata sob o meigo gemer das ramagens, ela, como de costume, pediu-me carinhosamente que a levasse para o grande salão dos damascos e que lhe abrisse os amplos vitrais do ocidente, porque sentia, nesse instante, sangrar-lhe intensamente no espírito a nostalgia plangente dos seus queridos ocasos. Aí, junto aos grandes portais ogivais, longamente amparada em meus braços, alheada de tudo, inerte e como magnetizada, ficou saudosamente a olhar a extraordinária iluminação do poente, poente que eu jamais vira, e que me deixou, no seu esplendor incomparável, esta nevrose singular pelas cores que tanto flameja em minha alma.

Era um desses recantos encantados de mar, que visionam profundamente, em irisações feéricas, a retina extasiada dos paisagistas. Uma sanguínea imensa começara a alastrar o horizonte e se espalhara sobre as águas em gigantescas brochadas rútilas, que inflamavam os longes neblinosos e vagos. Pinceladas de ouro riscavam, com grandes franjas luminosas, esta tela colossal abrindo-se, aqui e além, como uma velha clâmide gloriosa, em rasgões violentos de andrajos, por onde surgia serenamente um fundo leve e saudoso de diluída esmeralda. Veios brancos suavíssimos alternavam com toda esta bizarra fileteação de amarelo e sangue, que esmaiava para o ar, em gradações nacarinas de conchas. Em cima, todo o céu se vestira de uma tenuíssima floração de lilases, tremendo brandamente às badaladas plangentes do Angelus. Uma paz messiânica, que encantava a alma numa contemplatividade sem fim, estagnava-se religiosamente por toda a amplidão. E uma vaga espiritualidade de aventuras e viagens longínquas, sob os céus de outros países, pairava nostalgicamente, além, na linha fugidia do horizonte...

Mas densos véus de nanquim entraram a rolar mortuariamente do alto, e tudo se envolveu em suas dobras sombrias que vestiam os corações em crepes negros de angústias. Ela então, numa súbita agonia, lívida e estertorosa, murmurou toda fria:

− Ampara-me, leva-me daqui... Eu já não posso mais, eu morro...

E, estendida sobre um amplo divã, não fez mais um movimento, no seu belo roupão de cetim, cujas pregas ondulosas rojavam agora no chão, esquecidas. Os longos cílios escuros, outrora palpitantes e vivos, ficaram para sempre cerrados, como as franjas de um sudário tristíssimo. O rosto, opalescente e esguio, cobrira-se de absoluta serenidade, numa etérea castidade de lírio. E as suas mãos afiladas e brancas, parecendo cinzeladas em blocos de marfim velho, fundamente evocavam à lembrança essas santas mãos de promessas, que se veem alvejar nas procissões, levadas piedosamente por virgens descalças, em penitenciações fervorosas e místicas.

Dilacerado e aflito, numa angústia tumultuosa em que a razão se me abismava, atirei-me para a rua, e, horas e horas, numa precipitação de perseguido, vaguei sem parar, iluminado dantescamente pela minha dor, sob o velário agourento da noite que negrejava no alto toda crivada de círios!...


Rio — 1895


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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