A CHUVA
Há seguramente três dias que não
vivo, que não vejo o sol, nem falo. E ela, a minha adorada Everalda, não veio,
não virá mais, decerto. E no entanto, dizia-me na sua carta de uma letra fina e
miúda: “Amanhã, quinta-feira, vou. Estou louca por abraçar-te... saudades...
não imaginas...”
A chuva tem caído e cai
incessante, desventurosamente. O céu, pardacento, de uma claridade esmaecida e
igual, jorra a água em fios, como se a passasse por uma peneira gigante.
Um arrepio de sezões anda-me nas
carnes e o negro e fundo spleen aristocrático e mylord ataca-me com fúria o
coração, onde o fel rebenta em ondas. Tenho as unhas roxas e a pele engelhada, como
um cadáver. Sentado, o busto inclinado sobre a mesa da escrita, o braço direito
em ângulo, apoiando o rosto, voltado para a janela, os olhos cravados longe,
através dos vidros açoutados pelas rijas e sonoras bátegas — aqui estou, mudo e
tempestuoso, numa formidanda excitação de nervos e penso profundamente na mais
amada das mulheres, sentindo, na sofreguidão imensa de a possuir, uma elétrica
nevrose de ferocidade animal, que me incendeia delirantemente.
Debalde intento ler. O meu livro
mais querido, O Primo Basílio, o livro extraordinário, que está aberto diante
de mim, não me glorifica, nem me atira para o alto.
E quando subitamente me acode ao
cérebro, como uma desolação, a ideia de que talvez mentisse a mais amada das
mulheres, inflama-me o sangue um furor nefasto e ruge no antro o coração
indomado.
Mas não! ouço na escada um
fru-fru roçagante, um passo nervoso e miúdo... E os meus lábios, por muito
tempo, ficaram colados aos lábios dela.
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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