A PRIMEIRA ENTREVISTA
Às ave-marias, arrumada a vaca e
picada a ração para o cavalo numa espécie de estrebaria improvisada sob as
ramagens bastas dos cafeeiros, cercando ao fundo a cozinha, o João Valente
entrou em casa, a tomar o seu casaco de brim e o seu bordão de camboatá para as
costumadas excursões noturnas pela freguesia.
Estrelava, quando desceu o
terreiro e os seus grossos tamancos de couro começaram a estalar em cadência
sobre o arcão da vereda que ia dar à estrada. Caminhava cantando, sob o
esplendor da noite transparente, na doçura daquele descanso bem ganho à labuta
do campo. E a sua alma exultava, feliz, por entre as sebes do atalho, onde os
grilos veladores soltavam já, pelas moitas, os seus piqueniques metálicos.
À porteira parou, porque ouviu de
repente, para os lados de cima, uma algazarra de rapazes. Esperou um instante,
para ver se era gente das redes ou alguns dos companheiros de andadas. Tirou o
isqueiro do bolso e, acendendo o grosso cigarro de palha que trazia à orelha,
pôs-se a escutar. Na volta do caminho as vozes se tornaram mais claras.
Reconheceu, então, o bando costumado — o Lino, o Honório e o Cosme, com a
troçada tiririca — que lá vinha, nas habituais correrias dos sábados, para os
fandangos da Baixada. Recolheu logo à porteira, correndo-lhe precipitadamente
as varas, e agachou-se em seguida, escondendo o cigarro na escuridão das
ramagens.
Não queria ser visto para poder
escapar ao grupo que, constantemente nesses dias assim, o arrastava para
aquelas folias noturnas. Já estava cansado das longas caminhadas e festas por
essas paragens distantes. Depois, naquela noite, não se pertencia, pois tinha
de ir à rua Velha, onde o seu coração achara agora um encanto. E na ânsia de se
ocultar, com medo de que o menor ruído o revelasse, comprimia o peito,
sofreando a respiração, para não faltar — louvado fosse Deus! — ao primeiro
encontro que ia ter com a Rosinha, pela volta das oito, conforme haviam tratado
em casa da tia Marciana.
Mas o bando passou num estrépito,
numa alegre correria, em direção à Figueira Grande, onde a estrada real se
bifurcava na da Baixada e na da Ponta das Canas. E durante muito tempo o rumor
dos passos e vozes ecoou no caminho, afastando-se para longe...
Quando o silêncio voltou, só
interrompido vagamente pelo saudoso perpassar do vento na folhagem sussurrante,
o João Valente ergueu-se e sacudindo a roupa meio irrorada pela umidade da
grama, com o cigarro fumegando nos beiços, transpôs a porteira rompendo o
caminhar à tola. Num outeiro próximo, por onde a estrada subia para cair outra
vez na planície, entrou a moderar a marcha, porque sentiu novamente a barulhada
dos rapazes estalar adiante. Já um pouco nervoso, desesperava-se, no temor de
que as horas passassem e não pudesse chegar mais a tempo à casa da tia
Marciana. Na descida parou à sombra de um vasto cafezal que margeava o caminho,
e, enquanto o bando se perdia além, na zoada que esmorecia para os lados da
Baixada, impaciente e inquieto, ora batia freneticamente com o porrete no chão,
ora fixava as estrelas vivíssimas, abrindo no alto um sendal de ouro flamante.
Em pouco, porém, a matinada se
escoou ao longe e ele volveu a caminhar a passadas gigantes. Pelo engenho do
Silvano, situado antes da encruzilhada, encontrou o Rufino, um camarada de
infância, que corria para casa do vigário a buscar remédio para a mãe,
agonizante de repente com uma sufocação. Fê-lo estacar por momentos; e após
algumas perguntas tumultuosas a que o outro respondia arfando, quase a chorar,
com umas garrafas na mão, inquiriu ainda:
− E uma coisa: não esbarraste com
o bando do Lino numa balbúrdia por aí fora?...
O Rufino gritou-lhe, já numa
andada de gamo pela ladeira acima, a cabeça voltada, a voz contrafeita pelo
esforço da marcha:
−
Não! Só se embarafustaram pela Figueira Grande...
Daí a instantes, o João Valente,
passado o sítio da grota, onde havia uma pequena ponte arruinada sobre um
córrego murmurante, cujo fio de água prateada se perdia entre as ervagens do
campo, entrou a demorar o passo, pois avistara lá no alto, contra o maciço
escuro do pomar, a casa da tia Marciana.
Antes de tomar a vereda que
levava até lá, cumpria evitar a cancela do velho Estêvão Santos, cuja casa era
logo adiante. O abastado lavrador, ou alguém do seu lar, se o visse passar,
inutilizava-lhe imediatamente o “plano” e ele perderia, desta vez, a primeira
entrevista com a amada.
Conhecia quanto aquela gente o
malqueria e do que o velho era capaz, se viesse a saber um dia do seu amor pela
filha, que idolatrava. Por isso, desde que o seu afeto nascera — havia um ano —
guardava o maior sigilo, não o narrando mesmo à sua mãe, para que ele se não
divulgasse até que fizesse o casamento. E era por essa razão que, a muito
custo, depois de enorme relutância da parte da Rosinha, obtivera dela, para
aquela noite, uma entrevista em casa da tia Marciana, que protegia
solicitamente o namoro de ambos. Não queria, pois, por coisa alguma do mundo,
perder a oportunidade de assentar, de uma vez, as bases da única felicidade que
aspirava o seu coração.
Meteu-se, então, por um canavial
que acompanhava aí a estrada até a porteira do campo, e foi sair do atalho, bem
em frente à casa da tia da Rosinha, que tinha luz na varanda. Botou-se à pressa
pela vereda acima, muito alegre na sua paixão, e feita a volta da fonte, caiu
em cheio no terreiro, na empena para onde dava a porta. A Rosinha e a tia, ao
avistarem-no, ergueram-se logo do degrau onde estavam sentadas e correram para
ele, exclamando:
− Boas horas! Estamos aqui há que
tempo... Que demora, Virgem Santa!...
O Valente, apertando-lhes as
mãos, ainda meio cansado da corrida, começou a contar-lhes, miudamente, as
contrariedades que sofrera, desde a saída da casa até aquele instante. E ia para
entrar, a pilheriar no meio de ambas, que se desfaziam em risos, quando, lá
embaixo, no caminho, uma voz grossa e forte estrugiu de repente:
− Ó comadre! Ó comadre! Olhe, a
Rosinha que ande!... Eu cá estou à porteira...
Os três estacaram, atônitos, ao
som da voz tão conhecida e temida do velho Estêvão Santos. E tia e sobrinha,
assustadas e trêmulas, correram para a varanda, dizendo apenas ao rapaz:
− Esconda-se, por Nossa Senhora,
senão o velho o apanha...
O Valente, atarantado e indeciso,
nos apuros do momento, procurava onde ocultar-se, quando ouviu os passos do
velho, que subia já em direção ao terreiro. Desorientado, atirou-se à vereda, a
fim de alcançar um algodoeiro ao pé e galgar a estrada no outro extremo do
terreno; mas, na cegueira em que ia, esbarrou, sem esperar e tão violentamente,
com o velho, que o derribou contra a sebe, na escuridão das ramagens espessas.
O homem soltou um rugido abafado,
em meio à terrível surpresa, e, levantando-se logo, muito rijo e possante no
seu todo hercúleo de lavrador, desceu ao caminho, brandindo o seu grosso cajado
de laranjeira, trovejando, indignado e colérico:
− Ah! canalha! Se te apanho,
sacudia-te o pelo!...
O Valente, na disparada, saltara
a cerca do outro lado, e, varando um mandiocal à esquerda, agachou-se entre as
ramas, a espreitar o caminho, o coração aos saltos, com medo do velho Estêvão.
Só pode respirar livremente quando o perfil gigantesco do homem se sumiu no
atalho. Saiu, então, para a estrada e deu de andar para a casa, murmurando de
si para si, entre desapontado e satisfeito:
Felizmente, o demônio não me
conheceu!...
Outubro de 1896
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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