domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Galáxia"

GALÁXIA
  
No varandim colunado de um antigo palácio, inclinada sobre a balaustrada branca toda de mármore de Paros e entrelaçada de rosas, ela olhava melancolicamente as águas mansas do Pireu, onde o luar despontava cobrindo o golfo com o seu imenso zaimf de prata. Havia horas, longas horas de placidez e silêncio, arrastadas lentamente sob o azul magnificente da noite sarônica, que o seu olhar não parava, sondando incessantemente a amplidão reluzente do mar.

Para leste e para o largo, perdendo-se na limpidez espelhada do horizonte sem raias, por onde a lua subia na sua olímpica iluminação eteral, desdobrava-se vagamente um cenário de ilhotes e ilhas, em silhuetas de renda sobre a ondulação azulada. Pela costa, correndo de norte a sul, trechos curvos de praias alvas, faiscando idealmente, numa vasta pulverização de alvaiade, por entre os grossos cabeços abruptos das rochas basálticas, em altos relevos fantásticos. Manchas negras de sombra, em largas pastas angulosas malhavam retintamente as águas, ao longo de dorsos dentados de penínsulas e cabos, cortados apenas, em um ou outro ponto longínquo, por algum saudoso, tremulante debrum de luar. E só além, ao longe, onde o Mediterrâneo ia alto, num afastamento confuso e nostálgico, em que errava nebulosamente a espiritualidade sem fim das viagens, o grande véu de Diana, suspenso e aberto no ar, iluminando a rota escura das velas, numa pompa nupcial.

Um silêncio elegíaco e dolente, cheio de infinita saudade, evocativo de luminosas estâncias passadas — episódios romanescos, aventuras amorosas — palpitando, outrora, tumultuosamente sobre aquelas águas lendárias, pesava, sob o lácteo velário do céu, nessas plagas da Hélade. Nenhum som se abria na noite além do meigo ciciar da aragem, errando queixosamente pelas penedias e areias faiscantes, afogadas na carícia espumosa das vagas. E pelo vasto litoral rendilhado, o soturno adormecimento solene das horas altas, em que a própria Natureza onipotente parecia repousar longamente, na suavíssima exaustão de um letargo.

E ela, a Visão láctea e bendita das noites claras, agitava-se pouco e pouco, no largo varandim branquejante de mármore de Paros. Uma vaga inquietação invadia-a, aumentando de instante a instante; e seus olhos radiosos, cada vez mais incertos, investigavam incessantemente os ilhotes, os promontórios e penínsulas, correndo com sofreguidão amorosa, todos os recantos escusos da planura ondulada...

De repente, uma vela esguia e alta alvejou ao longe melancolicamente, na esparsa caiação do luar, e lentamente, numa amura alada e larga, inclinado à brisa, na altura esfuminhada de sombras de uma ilha isolada, nanquinada densamente no horizonte pelo vivo contraste violento de um chamalote de prata, ardendo suntuosamente nas águas — o seu bojo avançava numa fina esteira de espuma, em direção à faixa curva da praia. O seu vulto voador de asa clara ora singrava em cheio na bruma luminosa do largo, ora esbatia-se tristemente, quase extinto e sem forma, no seio negro das abras.

Então ela, a flor linda do Pireu, no varandim magnífico de mármore de Paros entrelaçado de rosas, corria já, em pequeninos passos nervosos, de um para outro lado, alvoroçada e alegre, a seguir, com o olhar radiante, as bordadas alvacentas da barca.

Em pouco, libertada de todo dos numerosos recortes salientes das rochas basálticas, a vela alta vogadora começou a plainar, como um guião de escumilha, no seio da enseada. Ao abordar a praia, bem em frente às largas portas chapeadas do velho palácio, faiscando agora feericamente sob os aljôfares pulverizados do luar que encantava — rasgou o silêncio luminoso da noite a sonoridade arrebatadora e saudosa de uma balada de mar...

Então, dentre as colunas branquejantes, todas de mármore de Paros entrelaçado de rosas, a voz dela se elevou, veludosa e dolente, fugindo toda para o alto, para a lua, numa tremulina de ais!... E logo outro canto nostálgico, mas vigoroso e viril, rompeu de baixo, da amura alvacenta da vela, suplicante e gemente, como num chamamento sagrado:

− Ó Galáxia!...  Ó Galáxia!...

A grande porta do palácio se abriu num rumor abafado, e um vulto olímpico de mulher assomou, deslizou, sob a lua, em direitura à praia, envolta misteriosamente em longa túnica alva.

A vela largou de súbito, afastando-se lentamente para além, para além, no Mediterrâneo azulado...

Rio — 1895


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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

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