A NOVA RAÇA
Quem conheceu o fazendeiro, o grande senhor de terras e de almas, mais poderoso do que os soberbos ricos homens da idade media, dificilmente,
e com pena, o reconhecerá no agricultor
atual, sombra triste dum fastígio morto, ruína melancólica duma grandeza extinta. Dantes,
quem passava a porteira duma fazenda, que
era como pequena cidade encravada entre arvores,
quase todas com a sua capela erguida no centro
de jardim florido, tinha a certeza de encontrar abundância e alegria: os paióis regurgitavam,
o gado cobria os vargedos ubérrimos, as
maquinas nublavam os ares com a poeira
do café e a escravatura, numerosa e
forte, espalhada pelos outeiros, punha a
nota de vida em todos os cantos, mesmo
no fundo das grotas sombrias, onde a água límpida manava, negros faziam luzir os ferros agrícolas, cantando banzeiramente as suas
saudades d'África.
A mesa, copiosamente abastecida, dava a ilusão opipara de banquetes. Chegasse quem chegasse,
lá encontrava um talher e acolhida amável
e, á hora em que a sopa vinha, a ferver,
das imensas cozinhas, ou o sino badalava
alegremente ou um negro possante saía á varanda,
com uma buzina, soprando estentoricamente, para que os viajantes, que passavam nas
estradas próximas, apressassem os animais
e chegassem a tempo de poder refazer-se
sob o teto hospitaleiro da grande vivenda
rural.
As festas eram fantásticas. Não será nestas linhas escassas que hei de descrever tão suntuosos
regalos e só a pena abundante de um
Simão Machado poderia bosquejar tais
maravilhas do passado — eu não tenho as cores
vivas de que se servia o pintor das procissões mineiras, no tempo rico do transbordamento do
ouro. Dizer fazendeiro correspondia a
dizer nababo e quando, na cidade,
aparecia um desses homens de tez queimada,
largo chapéu de palha, calças fofas, de brim branco, casaco folgado e anéis e ourama
lampejando, corria na assistência um murmúrio
de assombro e todos os olhos
deslumbrados cravavam-se no homem que, pelo habito de tratar soberanamente a escravatura
humilde, julgava-se, em toda a parte, um
superior e, quando metia a mão nas
algibeiras fundas, sacava maços de notas gordas e, ás vezes, ouro reluzente, apanhado á
beira dos seus córregos, que ele trazia,
como amostra, para oferecer á venda.
Um filho de fazendeiro tinha foros de príncipe — era uma entidade quase sobrenatural, um como Aladino
dos contos árabes. As cocottes
punham-lhe cerco, os fornecedores disputavam
a honra de pagar-lhe o champagne estróina, o credito escancarava-se ao mais extravagante dos seus caprichos, e adulado,
vangloriado, sempre com uma turba a
formar circulo em volta da sua pessoa,
lá ia ele, orgulhoso, debicando amores, provando todos os prazeres, a espalhar notas, com a
mesma pródiga-idade com que um rijo
vento do outono dispersa folhas secas.
Era isso no tempo em que o café valia o seu peso em ouro. Ah! o bom tempo! Hoje, o fazendeiro é um
tipo de que se não fala e, quem o vê,
não imagina que está diante de um
descendente dos Cresos rurais, dos famosos senhores rústicos, cujos lindes territoriais
iam além da linha do horizonte.
Muitas das antigas fazendas são hoje taperas ermas — o mato reconquistou, palmo a palmo, o terreno
que lhe fora tomado. Vêem-se casarões imensos
com as paredes fendidas, os telhados
cobertos de erva, os paióis em ruínas lúgubres
e, ás vezes, estalando os soalhos podres,
pululantes de tortulhos, varando os tetos carunchosos, uma forte e verde arvore irrompe
á grande luz, sacudindo vitoriosamente a
sua rica folhagem, que farfalha aos
ventos e abriga os passarinhos.
Perguntem pelo fazendeiro — foi desalojado pelo credor e, á luz alegre d'uma manhã, com
algumas relíquias num velho carro de
bois, abandonou, com a família, o solar
agreste, lançando-se aventurosamente a uma
vida nova, como um naufrago que se salvasse nu da pérfida procela.
Não julguem que exagero — copio fielmente quadros da decadência.
O fazendeiro que ainda resiste vive, como o triste profeta hebreu, desferindo lamentosos trenos —
sem animo e sem esperança, espera
resignadamente a chegada da Miséria. À
terra debalde produz, debalde os campos
cobrem-se de flores, de que vale tanta uberdade para que tanto esmalte nas campinas e nos
outeiros, se o produto depreciado não
dá, sequer, para o custeio da propriedade,
que tudo consome?
Os que lucram são aqneles que lá andam pelos lançantes dos morros, homens, mulheres e
crianças louros, como os temidos
germanos de Tácito — são os
conquistadores, que entraram submissamente como colonos e que, com a vida sóbria, acumulando os salários, vão conseguindo
impor-se, adquirindo lotes de terras,
que eles mesmos revolvem e semeiam. São
os donos futuros, é a geração nova, que
se impõe pela força e pela perseverança.
No dia em que o fazendeiro esgota o ultimo recurso o colono levanta a cerviz e é vê-lo,
então, dominando, como para desforrar-se
do tempo da obediência passiva, ditando
leis, assediando a casa senhorial, a
exigir com armas e afrontas. Quando li as palavras acerbas do livro presago de Graça Aranha, senti que o meu patriotismo, revoltado, protestava contra aqueles augúrios cruéis
do alemão Milkau.
«É provável que o nosso destino seja transformar, de baixo
a cima, este país, de substituir por outra civilização toda a cultura, religião e as
tradições de um povo. É uma nova
conquista lenta, tenaz, pacifica em seus meios, mas terrível em seus projetos de
ambição. É preciso que a substituição
seja tão pura, e tão luminosa, que sobre
ela não caia a amargura e a maldição das destruições. E por ora nós somos apenas um
dissolvente da raça deste país. Nós penetramos
na argamassa da nação e a vamos amolecendo,
nós nos misturamos a este povo, matamos
as suas tradições e espalhamos a confusão!...
Há uma tragédia na alma do brasileiro, quando
ele sente que não se desdobrará mais até ao infinito. Toda a lei da criação é criar á
própria semelhança. E a tradição se
rompeu, o pai não transmitirá mais ao
filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos
e fundos desejos da personalidade emudeceram,
o futuro não entenderá o passado».
Hoje, porém, posto que reaja com toda a força, com toda a energia do meu instinto patriótico, diviso, através
daquela profecia, um fundo de verdade: o
Brasil vai sendo transformado, não
absorvido. Os inimigos não vêm em esquadras,
aparelhadas belicosamente: chegam em grandes levas, que enxameiam as proas dos
transatlânticos, vêm dos países regurgitantes,
sanem do aperto das grandes cidades e, como
sofreram toda a sorte de torturas, desde o frio, nos lajedos dos cães, até as fomes nas baiúcas em
que se acumulavam, ás dezenas,
confundindo os hálitos e os gemidos;
desde a afronta dos poderosos até o desprezo dos próprios parentes mais aquinhoados pela
fortuna, ou vindo o nome do Brasil e,
talvez, lendas que ficaram dos
venturosos tempos do ouro, demandam ansiosamente a terra do sol e das flores,
onde não ha invernos que transam nem
miséria que mate, onde sobram campos aos
pastores e ainda existem regiões inteiramente
virgens, nem trilhadas nem vistas por homens
civilizados, onde só caminham hordas de bugres
e feras fremem, ao luar, em manadas sanguinárias.
Chegam, são acolhidos pelo clima tépido, que é uma caricia natural, respiram, a largos
pulmões, o puro ar das florestas,
dessedentam-se nas límpidas águas dos
arroios que murmuram, contemplam os grandes
rios, admiram, extasiados, as borbulhantes cachoeiras e, contentes com o que vêm, dão
graças a Deus pela redenção e vão imediatamente
tratando do estabelecimento, que é o
primeiro passo para a conquista.
Fazem-se colonos e, como já conhecem a miséria, trabalham ambiciosamente, acorçoados
pela fertilidade. Ha casa, o mealheiro é
comum, e como a família vive com
sobriedade, os lucros crescem, em pouco
tempo.
O fazendeiro, ao contrario, habituado ao fausto, á vida pródiga, não soma as despesas e, á
medida que a crise aumenta, vai
dissipando com mais largueza, como para atordoar-se. O seu dinheiro transfere-se do cofre para as arcas dos
colonos, empilhando-se até o dia em que ele se encontra sem vintém e assediado pelos avaros trabalhadores
que lhe sugaram a fortuna.
Esse é o dia trágico, o dies irae: o senhor abandona
a propriedade absorvida pela hipoteca, os
colonos tornam-se pequenos proprietários e começa a expansão na terra.
Os berços lá estão ao fundo das casas — são os novos homens. Onde, antigamente, chorava, em
farrapos, o crioulinho nu, filho do
escravo, vage agora o bambino rosado e
louro, abençoado por este sol admirável. Vai-se a língua cruzando — vocábulos exóticos ressoam
estranhamente em frases portuguesas, é a
lenta invasão da palavra; já se não ouve
o ressôo soturno dos tambores nagôs;
agora é o estrepitar das castanholas, ou o sonoro adufar nas soalhas dos pandeiros napolitanos. Nos terreiros de congada dança-se a tarantela
e as tradições brasileiras vão desaparecendo. Pouco a pouco uma nova raça surge e a humílima e dessorada
geração, enfraquecida pela abastança
desordenada, cede aos sadios o terreno,
como os romanos da decadência cederam aos robustos bárbaros.
Mas o caldeamento se fará sem prejuízo da Pátria — a nação não perecerá, porque os que vão
nascendo, á medida que os pais enriquecem
e aformoseiam a terra, vão-lhe ganhando
afeição, amam-na e, começando por defenderem
a casa, acabam defendendo a fronteira e quando,
desaparecido o ultimo decadente, viver, rija e formosa, a nova gente, sobre esse dilúvio,
como o Espírito de Deus nas águas da catástrofe,
ha de pairar a língua, a doce língua
portuguesa, enriquecida, sem duvida, com
expressões adventícias, e baixando sobre a terra a raça que ha de ficar, a Pátria reaparecerá
mais bela, mais graciosa e mais rica,
pronta para todas as sementeiras, como reapareceu o mundo depois dos quarenta
dias de calamidade, tendo como prova de
aliança não o íris fulgurante, mas a bandeira auriverde, que é o símbolo da nacionalidade.
O que se está realizando — é possível que eu veja como otimista — é a lei da seleção e não uma conquista — os fortes hão de prevalecer e
queira Deus que assim seja, para gloria
da Terra e orgulho dos nossos filhos.
A raça desanimada que aí está, essa é que não pode
subsistir. Homens que choram em presença do perigo não merecem as honras do triunfo.
Venham os novos brasileiros, apareça e domine a gente nova e robusta.
Foram os bárbaros que renovaram o mundo Ocidental: venceram, mas foram assimilados
pelos vencidos e, para fazer a
assimilação das hordas que chegam,
basta-nos o nosso Sol.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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