IDÍLIO NO MAR
À senhorita Mercedes Pagés
Impressões de uma tarde saudosa à
bordo da polaca espanhola Mercedes, do comando do velho “caballero” catalão
D.Francisco Pagés, de Masnau.
Aquela tarde esmorecida de
outubro, de uma suave iluminação eteral, deixou-lhe para sempre no espírito uma
saudosa impressão de marinha sonhada, em alguma tela encantadora de Bury ou num
desses romances nebulosos de mar, em que os artistas da Britânia põem, com o
seu alado idealismo abstrato, noivados festivos e louros singrando enseadas em
calma, dentro de iates veleiros, com galhardetes de flores coroando latinos
dourados.
Era uma vela vogadora de cutter,
que andava ao longe a errar em contínuas bordadas inquietas, numa brancura
idealizante de ave polar, aparecendo, desaparecendo às vezes, por entre a
imensa, flutuante floresta nua dos mastros. Pelas águas marulhosas, riscadas de
rendas de espuma, pairava um doce frêmito viajeiro de viração austral, mansa
aragem bonançosa, amiga acariciadora das pequeninas velas albentes que cruzam o
seio das rades. E no ar morno e macio, de uma doçura tropical, por entre a
vespertina transparência dos brilhos, o encanto delicioso do céu alto e
arqueado, com um leve desbotamento sidéreo de velho velário cerúleo.
Debruçado da borda, no tombadilho
da polaca, ele olhava melancolicamente aquela mancha singradora de latino alvo,
sentindo desfilar no espírito um tropel de recordações amadas... A plangência
das longas noites do oceano, em que o seu coração ansiara e chorara, órfão de
afetos, em meio à solidão sem raias, vibrava ainda as visões rútilas do seu
sonho e as cordas vivas da sua alma. E, pensativo e dolente, na ebriedade
colorida de um silforama de imagens, desenrolado em efervescentes cismares,
quedara-se a olhar sonambulamente para a singradura vaporosa daquela vela
alada, que a enlanguescia ali, no poente daquela rutilosa viagem, em que toda
uma porção do seu ser, na atração de uma beleza divina, ficara a boiar sobre as
águas, longe, na magnificência de uma cidade bendita, numa ilha de balada...
Mas o alto pano nesgado se aproximava
lentamente, na sua alvura enfunada, em pairos de asa serena levada numa rajada,
por entre os cascos adormecidos das naves, sonhando nebulosamente — quem sabe!
— num estado de quase espiritualidade, com a agitação marulhosa das viagens ao
largo, fecundas dos inauditismos de um mar que não finda e da magia cenográfica
dos espetáculos solares.
Naquele navegar para ele, num
murmúrio longínquo de aquosa cristanilidade, a rasgar vitoriosamente o vitral
da planura infindável, como demandando a polaca, a vela clara aviva-lhe aos
poucos, nas células em que fulgia o clarão de uma saudade inefável, o esquisso
imaterial e celeste de uma estância enluarada, que lhe estava a bailar desde
instantes, incompleto e esparso, na gestação incuriosa e dormente da sua imaginação
de nostálgico. E, de olhos em êxtase, com uma luz espiritual insuflando cor e
vida à sua Visão constelar, sob o brilho aureolante de uma claridade mágica, já
lhe tremia na emoção, suprassensivelmente, como o frisson psicológico de uma
surpresa que raia.
Com efeito, repentinamente, o
branco latino encantado desenhou-se inteiro numa aberta resplandescente das
águas, como se fosse a alma errante do Mar, um sonho albente das ondas, o
símbolo rútilo das Rotas — guia bom das singraduras, bênção augusta da bonança,
bandeira dos ventos, pregoeiro das viagens! E o lento aproximar desta
embarcação velejada sob o entardecer tropical, tão repassado de nostalgia e
sonhares à sombra silenciosa que ia alastrando lentamente as etéreas paragens —
abria-lhe agora, com nitidez, na memória, a fúlgida cadência sonora daquela
estrofe de poema d’alma, que lhe nascera, uma tarde, por um crepúsculo oceânico
de lenda, ao abordar o litoral pinturesco dessa ilha querida, onde o seu amor
torreara ilusões, como uma Eiffel rutilante em demanda do infinito sonhado...
À medida que o cutter avançava,
num vasto sulco onduloso, em direção à polaca, todo o seu casco esguio e alvo
se detalhava nas vagas, em linhas finas e artísticas de requintada construção
naval, desde os vivos frisos das bordas ao tope do mastaréu triunfante, erguido
no ar como a ponta de um gigantesco florete embolado, ferindo verticalmente o
Azul, que se diria sangrar sobre o mastro, na golfada de sangue tremulante de
um galhardete encarnado.
Mas de repente, e a pequena
distância, a esguia embarcação começou a panejar, atravessada ao vento, num
embalo ritmado, sobre a ondulação inquieta, e ele pode ver, através das
irradiações do seu sonho e da vaga luz interior da sua nebulose mental, a
silhueta inefável de dois seres amantes, destacando à balaustrada oscilante da
popa, na líquida toalha de espuma, como um casal divino de deuses saído de um
mito da Hélade. Banhava-o idealmente a claridade cendrada do alto, descendo em
desmaio de tons sobre as ondas e rolando etereamente por entre a cordoalha e os
mastros. E ali a boiar, como num fundo azulado de ópera marinha, aquele idílio
de costa europeia setentrional cortava de um encanto fidalgo, de velhas
civilizações cheias de arte, as águas de Guanabara.
Na frouxidão alvacenta do pano
murcho e rugoso, a estalar contra os cabos nessa virada de bordo, e erguendo ao
ar osciladoramente como uma teia de aranha fantástica, o cutter caía, caía na
corrente, em busca do beijo cheio da aragem. A pequena coberta recurva aparecia
agora amplamente, em linda modelação quase oval, reluzindo artisticamente na
variada coleção dos objetos náuticos, que se exibiam aí em singular exposição
flutuante de alfaias estranhas ou de bric-à-brac. E o que mais sobressaía, no
meio desse luxo naval, eram as altas amuradas corridas onde se erguiam as
enxárcias, a gaiúta envidraçada, as malaquetas de metal e de aço, o bordado
trincaniz amarelo, o pequeno castelo inclinado, os turcos curvos e em gancho
como antigas armas de abordagem, o cintado cabrestante encapado, as pequenas
âncoras pesadas, os finos croques reluzentes e o molinete rodante onde se
prendem as amarras...
Nesse instante, porém, nada disso
impressionava já a sua imaginação visionada, arrebatada num enlevo ante o
formoso e louro par, vogando inefavelmente sob a luz fugidia do ocaso em meio à
berceuse da vaga. Sutilmente, todo o seu ser vibrava, na doçura dessa
contemplação, aclarada interiormente pelos afetos passados, no enternecimento
de uma grande simpatia por essas almas aladas, noivando, na tolda da bela
embarcação adejante, sob o encanto do céu vesperal...
Mas a alta vela nevada fugia,
batida de uma rajada — e o gracioso casco vogador retomava a primitiva bordada,
numa faixa meandrosa de espuma que esfervia e ondulava. Agora, à balaustrada
branca, tombada para a borda roladora, o belo casal olhava o mar, invadido de
ternura, algemados os olhares em fundos êxtases de amor.
A tarde fenecia nos páramos
azulados do espaço, desolado já num esmorecimento saudoso. Longe, muito longe,
na amplidão curva do horizonte, onde as vagas tremiam em longos frisos de
esmeralda, uma branda mancha de sol vermelhava, sobre as brumas do ocidente,
como um esbatido de nácar. E o belo cutter sumia-se no estofo cerúleo das
vagas. Mas por muito tempo ainda a láctea brancura nevoenta do seu alto latino,
sugestiva de lembranças passadas, numa alegre estância vivida, ficou a boiar
além, numa névoa de saudade...
Rio— 1894
---
---
Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
Nenhum comentário:
Postar um comentário