domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Idílio no Mar"

IDÍLIO NO MAR 
À senhorita Mercedes Pagés

Impressões de uma tarde saudosa à bordo da polaca espanhola Mercedes, do comando do velho “caballero” catalão D.Francisco Pagés, de Masnau.
  
Aquela tarde esmorecida de outubro, de uma suave iluminação eteral, deixou-lhe para sempre no espírito uma saudosa impressão de marinha sonhada, em alguma tela encantadora de Bury ou num desses romances nebulosos de mar, em que os artistas da Britânia põem, com o seu alado idealismo abstrato, noivados festivos e louros singrando enseadas em calma, dentro de iates veleiros, com galhardetes de flores coroando latinos dourados.

Era uma vela vogadora de cutter, que andava ao longe a errar em contínuas bordadas inquietas, numa brancura idealizante de ave polar, aparecendo, desaparecendo às vezes, por entre a imensa, flutuante floresta nua dos mastros. Pelas águas marulhosas, riscadas de rendas de espuma, pairava um doce frêmito viajeiro de viração austral, mansa aragem bonançosa, amiga acariciadora das pequeninas velas albentes que cruzam o seio das rades. E no ar morno e macio, de uma doçura tropical, por entre a vespertina transparência dos brilhos, o encanto delicioso do céu alto e arqueado, com um leve desbotamento sidéreo de velho velário cerúleo.

Debruçado da borda, no tombadilho da polaca, ele olhava melancolicamente aquela mancha singradora de latino alvo, sentindo desfilar no espírito um tropel de recordações amadas... A plangência das longas noites do oceano, em que o seu coração ansiara e chorara, órfão de afetos, em meio à solidão sem raias, vibrava ainda as visões rútilas do seu sonho e as cordas vivas da sua alma. E, pensativo e dolente, na ebriedade colorida de um silforama de imagens, desenrolado em efervescentes cismares, quedara-se a olhar sonambulamente para a singradura vaporosa daquela vela alada, que a enlanguescia ali, no poente daquela rutilosa viagem, em que toda uma porção do seu ser, na atração de uma beleza divina, ficara a boiar sobre as águas, longe, na magnificência de uma cidade bendita, numa ilha de balada...

Mas o alto pano nesgado se aproximava lentamente, na sua alvura enfunada, em pairos de asa serena levada numa rajada, por entre os cascos adormecidos das naves, sonhando nebulosamente — quem sabe! — num estado de quase espiritualidade, com a agitação marulhosa das viagens ao largo, fecundas dos inauditismos de um mar que não finda e da magia cenográfica dos espetáculos solares.

Naquele navegar para ele, num murmúrio longínquo de aquosa cristanilidade, a rasgar vitoriosamente o vitral da planura infindável, como demandando a polaca, a vela clara aviva-lhe aos poucos, nas células em que fulgia o clarão de uma saudade inefável, o esquisso imaterial e celeste de uma estância enluarada, que lhe estava a bailar desde instantes, incompleto e esparso, na gestação incuriosa e dormente da sua imaginação de nostálgico. E, de olhos em êxtase, com uma luz espiritual insuflando cor e vida à sua Visão constelar, sob o brilho aureolante de uma claridade mágica, já lhe tremia na emoção, suprassensivelmente, como o frisson psicológico de uma surpresa que raia.

Com efeito, repentinamente, o branco latino encantado desenhou-se inteiro numa aberta resplandescente das águas, como se fosse a alma errante do Mar, um sonho albente das ondas, o símbolo rútilo das Rotas — guia bom das singraduras, bênção augusta da bonança, bandeira dos ventos, pregoeiro das viagens! E o lento aproximar desta embarcação velejada sob o entardecer tropical, tão repassado de nostalgia e sonhares à sombra silenciosa que ia alastrando lentamente as etéreas paragens — abria-lhe agora, com nitidez, na memória, a fúlgida cadência sonora daquela estrofe de poema d’alma, que lhe nascera, uma tarde, por um crepúsculo oceânico de lenda, ao abordar o litoral pinturesco dessa ilha querida, onde o seu amor torreara ilusões, como uma Eiffel rutilante em demanda do infinito sonhado...

À medida que o cutter avançava, num vasto sulco onduloso, em direção à polaca, todo o seu casco esguio e alvo se detalhava nas vagas, em linhas finas e artísticas de requintada construção naval, desde os vivos frisos das bordas ao tope do mastaréu triunfante, erguido no ar como a ponta de um gigantesco florete embolado, ferindo verticalmente o Azul, que se diria sangrar sobre o mastro, na golfada de sangue tremulante de um galhardete encarnado.

Mas de repente, e a pequena distância, a esguia embarcação começou a panejar, atravessada ao vento, num embalo ritmado, sobre a ondulação inquieta, e ele pode ver, através das irradiações do seu sonho e da vaga luz interior da sua nebulose mental, a silhueta inefável de dois seres amantes, destacando à balaustrada oscilante da popa, na líquida toalha de espuma, como um casal divino de deuses saído de um mito da Hélade. Banhava-o idealmente a claridade cendrada do alto, descendo em desmaio de tons sobre as ondas e rolando etereamente por entre a cordoalha e os mastros. E ali a boiar, como num fundo azulado de ópera marinha, aquele idílio de costa europeia setentrional cortava de um encanto fidalgo, de velhas civilizações cheias de arte, as águas de Guanabara.

Na frouxidão alvacenta do pano murcho e rugoso, a estalar contra os cabos nessa virada de bordo, e erguendo ao ar osciladoramente como uma teia de aranha fantástica, o cutter caía, caía na corrente, em busca do beijo cheio da aragem. A pequena coberta recurva aparecia agora amplamente, em linda modelação quase oval, reluzindo artisticamente na variada coleção dos objetos náuticos, que se exibiam aí em singular exposição flutuante de alfaias estranhas ou de bric-à-brac. E o que mais sobressaía, no meio desse luxo naval, eram as altas amuradas corridas onde se erguiam as enxárcias, a gaiúta envidraçada, as malaquetas de metal e de aço, o bordado trincaniz amarelo, o pequeno castelo inclinado, os turcos curvos e em gancho como antigas armas de abordagem, o cintado cabrestante encapado, as pequenas âncoras pesadas, os finos croques reluzentes e o molinete rodante onde se prendem as amarras...

Nesse instante, porém, nada disso impressionava já a sua imaginação visionada, arrebatada num enlevo ante o formoso e louro par, vogando inefavelmente sob a luz fugidia do ocaso em meio à berceuse da vaga. Sutilmente, todo o seu ser vibrava, na doçura dessa contemplação, aclarada interiormente pelos afetos passados, no enternecimento de uma grande simpatia por essas almas aladas, noivando, na tolda da bela embarcação adejante, sob o encanto do céu vesperal...

Mas a alta vela nevada fugia, batida de uma rajada — e o gracioso casco vogador retomava a primitiva bordada, numa faixa meandrosa de espuma que esfervia e ondulava. Agora, à balaustrada branca, tombada para a borda roladora, o belo casal olhava o mar, invadido de ternura, algemados os olhares em fundos êxtases de amor.

A tarde fenecia nos páramos azulados do espaço, desolado já num esmorecimento saudoso. Longe, muito longe, na amplidão curva do horizonte, onde as vagas tremiam em longos frisos de esmeralda, uma branda mancha de sol vermelhava, sobre as brumas do ocidente, como um esbatido de nácar. E o belo cutter sumia-se no estofo cerúleo das vagas. Mas por muito tempo ainda a láctea brancura nevoenta do seu alto latino, sugestiva de lembranças passadas, numa alegre estância vivida, ficou a boiar além, numa névoa de saudade...


Rio— 1894


---
Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

Nenhum comentário:

Postar um comentário