ABANDONADO
L’amiral dit: - Timonier?
Fait’s moi vit’ monter
l’aumônier!
L’aumônier n’ fut pas long à v’nir
Avec tout c’ qui faut
pour bénir
I’ nous dit face au pauvre mourant
La prière des agonisants!
Yann Nibor – Les Albatros
Homem ao mar! Homem ao mar!
E o grito doloroso, partindo da
proa, ecoava desoladamente sobre a tolda do couraçado, que as ondas sacudiam,
em vaivens, no seu dorso espumoso. Bátegas d’água consecutivas caíam em cordas,
em meio às rajadas indômitas, assobiando pelos cabos furiosamente. Uma névoa
muito densa encobria o convés, as amuradas, os mastros, rolando em grandes
pastas pardacentas. Do mar em desordem, só se viam os rendados gigantescos de
espuma, que alagavam o costado quando embatiam os vagalhões, desfeitos. E uma
sinfonia atroadora dominava tudo, silvando e reboando, num estranho concerto.
Mas o grito explodia em direção à
ré, afogado, despaçado pelo fragor da tormenta.
E só quando toda a guarnição, já
em cima, repetiu o mesmo brado, num coro de trezentas vozes aflitas, é que o
oficial de quarto, de pé no passadiço, junto ao homem do leme, ouviu, como um
débil som esmorecido, o eco lastimoso que o ciclone abafava ainda no seu clamor
tremendo.
Nesse instante, o guardião e
outros marinheiros subiam precipitadamente a escada, a dar parte do sinistro.
Fora um cabo marinheiro que o mar
levara do gurupés, numa caturrada terrível. Estava a ferrar as velas de proa
com seis camaradas, e ia galgar o estribo da giba, para fugir à montanha d’água
que vinha sobre o beque na ocasião em que o navio descia no jazigo da vaga,
quando aquela rebentou de repente. Os seis homens tinham sido impelidos contra
o molinete, ficando todos feridos. Mas o cabo marinheiro ninguém o vira mais,
arrebatado pelo torvelinho...
O oficial, inquieto, foi até a
amurada, investigando o mar em volta, sob o nevoeiro; e tornando após, agarrado
aos varões grossos de metal por causa dos balanços contínuos, ordenou que
safassem prontamente os escaleres e os salva-vidas, ao mesmo tempo que expedia
o guardião a dar parte ao comandante de todo o ocorrido.
Os marinheiros desceram logo e,
momentos depois, o comandante e demais oficiais subiam ao passadiço. Novas
ordens soaram, de envolta com apitos silvantes, cruzando a coberta, sob o
ciclone bravio.
E como o casco pesado não podia
manobrar debaixo da capa em que ia, a uma voz do comando, foram lançados ao
mar, presos de longos cabos de Cairo, os grandes discos salva-vidas.
Marinheiros, às bordas,
investigavam as ondas em roda, a ver se deparavam o náufrago ou se ouviam algum
grito, enquanto outros, à proa, preparavam os escaleres, numa faina vivíssima.
As vagas, porém, não cessavam de
alagar o navio, rolando contra ele serras de vagalhões, que interrompiam as
manobras, desfaziam tudo, com a sua cólera impassível. O primeiro escaler que
boiou, uma volta de mar carregou-o, numa coroa de espumas. Isto desesperou a
rude marinhagem que, furiosa, na labuta incessante, praguejava e maldizia-se,
ao mesmo tempo que invocava o céu com fervor, fazendo promessas piedosas à
Senhora da Bonança.
Valerosamente, de novo, à voz do
oficial, a guarnição atirou-se ao outro bordo, onde as ondas quebravam com
menor impulsão. E, acautelado tudo, um segundo escaler arriou-se, tripulado por
dez homens. Mas apenas se afastara umas braças, atravessou às vagas quase
soçobrando. Os marinheiros aproaram então ao navio, onde, em confusão
tumultuosa, no meio da atracação dificílima se lhes jogaram cabos, para
salvar-lhes a vida. E mais este escaler foi levado na crista espumosa das
vagas... Agora, todos, a bordo, permaneciam hesitantes. Oficiais e guarnição
não sabiam o que fazer ante o furor do oceano. O comandante, no entanto, velho
marujo bretão, não trepidava um momento, e, mandando safar com presteza vergas
e mastaréus sobressalentes que vinham no porão, ordenou se fizesse uma jangada
e se lançasse às ondas. E voltando-se para os oficiais, dizia, referindo-se ao
pobre cabo marinheiro:
− Se ele ainda vive, terá ao
menos um pedaço de tábua para se agarrar até que o tempo amaine...
E cada qual voltou ao seu posto,
ficando apenas de vigia os grumetes e marinheiros de ronda.
Quando a jangada foi jogada da
borda, suspendia o nevoeiro. As bátegas d’água diminuíam e já se via em redor o
desdobrar ritmado dos vagalhões. Pouco a pouco também, a planura do mar começou
a desnudar-se, na sua deserta, infinita amplidão. E à claridade frouxa do sol,
já descendo no poente, de bordo do couraçado, todos puderam ver com profunda
tristeza, boiando além, pela popa, sob uma nuvem de albatrozes voejando em
torno, um pequeno ponto negro.
Era o infortunado marujo, que lá
se debatia no esforço derradeiro.
Mas o navio corria ainda à capa e
todo o socorro era baldado.
O comandante, outra vez no
passadiço com toda a oficialidade, mandou arvorar na enxárcia uma grande
bandeira branca, como um triste sinal de despedida ao infeliz companheiro, ao
mesmo tempo que no mastaréu da gávea, pendia, à meia haste, funerariamente, o
glorioso pavilhão francês.
Em seguida, a guarnição formou às
amuradas, na tolda e pelo tombadilho, voltados os rostos abatidos de dor para o
ponto negro longínquo, que os albatrozes cercavam corvejando em torno.
Chamado o capelão, que tomou lugar
no passadiço, ao lado do comandante, paramentado com as insígnias sagradas e
tendo um grande Cristo de prata suspenso bem alto nas mãos, como para ser visto
pelo náufrago — entrou a rolar sobre as vagas, de envolta com os uivos do
vento, numa tristeza inexprimível, a prece dos agonizantes.
Uma desolação plangentíssima
pesou, de repente, mais forte, sobre aqueles corações varonis, afogando-os numa
ânsia. Alguns marinheiros soluçavam, outros tapavam o rosto com as mãos,
enquanto em cima, no passadiço, comandante e oficiais, cercando em silêncio o
sacerdote, tinham os olhos arrasados de pranto.
Por momentos, então, muito alto e
solene, nos dedos trêmulos do padre, o grande Cristo de prata dominou o oceano,
sob o murmúrio da oração santíssima, por entre o silvar rijo do vento e o
desdobrar marulhoso das ondas.
No entanto, muito longe, pela
popa, no crepúsculo cinzeiro da tarde em tormenta, acompanhado dos albatrozes
grasnantes, o ponto negro fugia, a boiar sobre as águas, como um estranho
enterro...
Rio — 1897
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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