O PALÁCIO DO REI LUÍS
A Alcides Cruz
Bela tarde de outubro, aquela em
que eu, já há anos, transpunha, alegre e descuidado nas minhas habituais
caminhadas, as pequenas colinas do Estreito em direção à Praia de Fora. Depois
de cruzar várias trilhas e atalhos, por entre ervagens espessas e sebes de
arbustos floridos, nessa península pitoresca em que assenta o Desterro pelo
norte, descia lentamente a larga rua do Soeiro, correndo a cem metros do mar,
sobre uma espalda curva de outeiro, e seguia, enlevado e saudoso, as velas
brancas de um brigue fugindo airosas além, quando uma voz, acolhedora e amiga,
inesperadamente rompeu, baixando do alto sobre mim, dentre um maciço de verdura
que ficava à direita:
− Olá! por aqui? Há que tempo o
não vejo! Surpreendido, estaquei, procurando descobrir quem me falava numa voz
não estranha, mas cuja identidade eu não podia bem conhecer ao momento. E, sem
avistar ninguém, passeava embalde os olhos curiosos e ávidos pela folhagem
densa, nessa parte agreste da rua em que a vegetação crescia à lei da Natureza
e onde se erguia a prumo o corte áspero do terreno, à maneira de um velho muro
todo coberto de musgo e lianas, entrelaçando-se em delicada urdidura verde.
A voz estalou de novo, forte e
meiga:
− Então, goza-se a vida e
passeia-se?
E a figura esguia e alta do meu
amigo Trompowsky apareceu, num talude ao lado, caminhando ao meu encontro,
atacada num leve e claro costume de verão, o rosto fino e rosado, os lábios
vagamente sorrindo, barbicha loura ao queixo e uma radiação carinhosa de afeto
nos belos olhos glaucos.
Feito o costumado cumprimento e
trocadas algumas palavras sobre o sítio que ele escolhera para passar a calma
estival daqueles meses, fomos descendo vagarosamente para a Chácara Garcia,
onde a Praia de Fora começa, alva e recortada, contornando a água azul com o
seu crescente de areias. Palrávamos cordialmente, de tudo, parando, de momento
a momento, para admirar a paisagem e o litoral esplêndido, quando, de uma vez,
avistei, a pequena distância, para o lado de baixo, por sobre a cerca de
espinheiros, recentemente roçada, uma espécie de alicerce em ruínas, num vasto
terrapleno quadrado, aberto sobre um dorso alto de outeiro, que entrava mar a
dentro como um pequeno promontório, cujo extremo findava num monte de rochas
agrupadas em cabeços.
Interessado e curioso, perguntei
ao meu amigo, se sabia a origem daquelas bases de construção, que tinham ficado
apenas em início nesse viso de colina marítima, que era talvez o mais belo
ponto paisagista da costa, revelando assim um fino gosto aristocrático de
artista em quem o escolhera para nele levantar o seu ninho. E, atraído por
aquilo, examinava com afã toda a sebe, em busca de uma passagem que me levasse
até lá, enquanto o amável Trompowsky, fixando-me com um sorriso, ajuntava
fleumaticamente a meu lado, procurando acalmar a minha curiosidade febril:
− Espere, homem, eu lhe explico.
Aquilo tem uma história interessante. Não é preciso romper assim tão loucamente
os espinhos! Olhe, ali está um atalho que lá vai ter direitinho.
E mostrava-me, adiante, uma curva
reentrante da cerca, onde havia uma porteira.
Era já no suave, verdejante
pendor arborizado da Chácara Garcia. A rua perdia-se aí sob as frondes amplas e
altas das nogueiras e dos camboins, estendendo-se sinuosamente para longe,
mosqueada aqui e além pela alvura das casas, surgindo entre moitas tremulantes
de bambuais verdíssimos.
Apressando o passo, transpusemos
a cancela, e, em pouco, pela fita rubra da vereda que se torcia em meio a
grama, chegamos ao terrapleno que se via do caminho. Este lugar aprazível,
fechado do lado de fora pelo semicírculo de rochas erguendo-se em recorte
cinzento, era totalmente descampado e coberto de ervas rasteiras, formando
justamente a ponta sul do crescente em que se talhava a baía. Daí o panorama
litoral se desenrolava aos meus olhos num relevo impressionista.
A essa hora, o sol ia caindo
lentamente por trás da linha ondulosa dos cerros das Tijuquinhas. Toda a costa
do continente e da ilha desenhava-se nitidamente, a uma e outra banda do golfo,
nas rendas alvas das praias curvas, na tumidez verde dos outeiros viçosos e no
declive majestoso de espaldas esmeraldinas. As casas da Praia de Fora, pousadas
à beira d’água, a frontaria batida do sol, num côncavo de areias límpidas,
fulguravam pela vidraçaria radiante num incêndio purpurino. À direita era a
ponta do Recife, Cacupé, Santo Antônio, Sambaqui, o Rapa e o Arvoredo, com os
seus topos solientes de ervagens, perdiam-se além pelo mar, sob um véu de ouro
sutil. À esquerda a brancura dos arraiais e freguesias marítimas, espiando do
alto dos cabos, ou sobre a encosta dos montes, as velas claras que singram. E
no estofo infindo da vaga, malhado de frisos de espuma, a tumidez graciosa de
pequenas ilhas, boiando, como cabazes floridos, sobre a planura infinita.
Depois de olharmos um instante o
ocaso admirável, entrei a examinar detidamente o vasto terrapleno quadrado,
onde se erguiam os alicerces de pedra, que mostravam, em certos pontos, fendas
e desmoronamentos, cobertos já pelas ervas, dourando sempre as ruínas de uma
eterna primavera. E calculava, admirado, as proporções ciclópicas que não viria
a ter o edifício ali projetado, se fosse levado a efeito — quando o meu amigo,
convidando-me a sentar ao pé dele, sobre umas pedras altas, começou a narrar a
história daquelas ruínas, que, segundo me disse, eram de construção recente,
pois vira ele preparar-se o terreno para os primeiros trabalhos.
O rei da Baviera, Ludovico II,
que era um verdadeiro doudo (o Trompowsky, com o seu espírito equilibrado e
terra a terra de homem prático, posto que inteligente, não admitia paixões
artísticas, fantasias, idealidades), tivera a ideia, uma ocasião, de mandar à
América, por sua conta, o seu secretário particular, com o fim único de
escolher um sítio para a edificação de um palácio que ele viria habitar, um
dia, quando cansasse de reinar (o Trompowsky acentuava este cansasse com um
riso irônico e cáustico). O homem recebera para essa comissão instruções
especiais, entre as quais figurava a condição principal da aprazibilidade e
encanto do lugar, seguindo-se, na hipótese da escolha, a remessa para Munique
de fotografias, plantas e quadros. O primeiro país onde aportara fora os
Estados Unidos, seguindo-se a Nova Bretanha ou Canadá, o México, todas as
Repúblicas da América Central e as Antilhas. Depois descera pela Colômbia,
Venezuela, as Guianas até o Oiapoque, atravessando pelo interior para o
Equador, o Peru, a Bolívia, o Chile, a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o
Brasil, que correu desde o Rio Grande do Sul, cortando pelos Estados do centro,
até ao Amazonas, tomando após o litoral e visitando tudo até Santa Catarina,
onde parara alguns meses em contínuas excursões pelas colônias alemãs, desde
Angelina a S. Pedro de Alcântara, no sul, a Joinville, Brusque e Blumenau no
norte. Por fim, chegara ao Desterro... E tinha sido aquele alto de colina,
acabando pitorescamente num cabo sobre o mar azulado, no meio de uma paisagem
deliciosa e das mais originais do mundo, o local escolhido pelo emissário do
rei Ludovico para o seu novo palácio. Tiradas vastas e numerosas fotografias,
arranjados mapas e planos minuciosos de toda a ordem, e remetidos para a
Baviera — um ano depois voltavam, com a aprovação soberana, em cópias nítidas e
exatas, às mãos do solícito mordomo imperial, ao mesmo tempo que chegava uma
turma de arquitetos, pintores, decoradores, estofadores, carpinteiros e
pedreiros bávaros para as obras do grande castelo ideal...
Eu ouvia tudo isto, que me
parecia quase inverossímil e fantástico, numa arrebatação íntima, gozando mais
fundamente então, na minha nevrose patológica de artista, a irresistível
simpatia desde muito votada a esse rei encantador, estranho esteta coroado que
o mundo já vira um dia. E as suas grandes coleções artísticas, de uma
riqueza “feita para desorientar a
gente”, como disse Oliveira Martins, composta do célebre lustre que a fábrica
de Meissen levou quatro anos a fazer, de uma toalete de Saxe que jamais alguém
possuíra igual, de um leito todo incrustado de ouro e de uma colcha da China
que era uma maravilha, — bailavam-me na ideia num torvelinho rutilante de pedrarias
e cousas preciosas e raras. Pensava nos seus palácios da Baviera “que eram de
fadas, nos recessos mais agrestes das montanhas, sobre píncaros inacessíveis,
ou em ilhas banhadas pelas águas dos lagos alpestres”. Via, claramente via pela
imaginação superexcitada, a sua figura loura e colossal, “de noite, ao luar, na
sua barca, fazendo de Cisne — o cisne da lenda, o Lohengrin da fantasia
germânica!” E encantava-me, sobretudo, a paixão extraordinária e mental que ele
tivera por Wagner, dando-lhe especialmente um teatro para as óperas geniais e
construindo-lhe outro em Beyruth, sob a única condição, como diz ainda o
egrégio pensador português, de “ir ouvir, sozinho, às escuras, a Tetralogia
épica em que os seus sonhos tomavam realidade, e em que o mundo lhe parecia um
só, o da cena e o dos homens, o das visões e o dos fatos, interpretados em
sinfonias de uma alucinação atroadora...”
Mas o Trompowsky prosseguia:
Mal as obras começaram, o rei
Ludovico, consumido pelas dívidas e dado por doudo pelos médicos, deixara o
trono da Baviera, sendo aclamado, em seu lugar um irmão — outro doudo! O
emissário, que dirigia os trabalhos, suspendeu tudo, e, reunindo toda a gente,
partiu... Daí a meses chegava ao Brasil a notícia trágica de que o pobre
Ludovico II, uma manhã do ano de 86, por um junho azul e suave, em Munique,
andando a passear pelas margens floridas do Sternberg, atirara-se ao lago onde
perecera afogado.
O Trompowsky calara-se um
instante; depois, pousando os olhos no mar, que se ensombrava já lentamente à
última claridade do ocaso, concluiu:
Aqui tem, meu amigo, a história
verdadeira, mas que poucos conhecem, destes alicerces carcomidos que tanto o
impressionaram.
E, levantando-se, desceu para o
recorte de rochas onde o cabo findava.
Eu, sentado ainda sobre aquelas
ruínas, embevecido com o que ele narrara, numa impressão extraordinária,
olhando vagamente as primeiras estrelas que radiavam a leste com uma luz
eteral, evocava intimamente, no espírito, o verdadeiro perfil desse bávaro
inefável, que, rei e artista, só vivera para a Fantasia e para a Arte, figura
impressionante e olímpica, que eu vira, uma vez, havia anos, num belo quadro
alemão em Joinville, no grande palacete do príncipe deste nome: um rapaz de
trinta anos, fronte ampla e expressiva, cabelos de ouro anelados e uns olhos
rasgados e vagos, de um azul de faiança, voltados sonambulamente para o céu,
como os de um místico ou de um iluminado.
Rio — 1896
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Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)
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