CAROLINA
I
ADEUS!
Na estrada que conduz de Lisboa a
*** erguia-se há poucos anos uma casa de bonita aparência, com sua vinha
verdejante, seu pomar odorífero, seu jardim pequeno, mas bonito, suas alamedas,
curtas mas frondosas. O muro da quinta era alto bastante, e contudo os ramos
das faias e dos choupos gigantes debruçavam-se sobre ele, assombrando com sua
folhagem majestosa a estrada, que o mesmo muro flanqueava para um pequeno
espaço.
Ao ver-se essa pequena casa
cercada de perfumes, de verdura, de sombra e de poesia, podia-se sem receio
dizer: seus habitantes são felizes. E eram. Viviam entregues aos prazeres mais
doces da vida doméstica. Acordavam quando a natureza despertava, no meio do
trinar das aves, do sorrir da manhã e do sorrir das flores; adormeciam
sossegados ao som do vento da noite que zunia, dobrando a coma dos arvoredos.
Era uma bela tarde de maio de
1848. Os raios moribundos do sol no ocaso pareciam dormir nos bastos olivais
que coroavam a crista dos outeiros; uma viração suave e branda refrescava a
atmosfera, sussurrando por entre as folhas e alterando o espelho tranqüilo do
lago onde o cisne vogava majestoso; o céu trajava o azul mais puro apenas
manchado aqui e além por ligeiras nuvens brancas, similhantes a vapores, como
se fossem os rolos de incenso que os turíbulos da terra enviavam aos pés do
Senhor, impelidos pelas auras bonançosas. Era na verdade uma tarde de
primavera, da primavera, mocidade do ano, dessa quadra amena e deleitosa, que
por toda a parte entoa o canto grandioso da criação!...
No fim duma das alameda da
quinta, debaixo dum lindo caramanchão, acabavam de assentar-se um rapaz de 20 a 22 anos e uma menina de
17 ou 18. Tinham os braços entrelaçados e olhavam-se com esses olhares ternos
dos amantes.
Que lindo par! Ele, belo com essa
beleza que distingue o homem; ela, bela com essa beleza que Deus dá só às
mulheres! Ai! um sorriso que se desprendesse dos lábios formosos daquela
virgem, mataria de amores um homem! Um olhar meigo e terno que brilhasse por entre
aquelas pestanas aveludadas, venceria o mundo!
— Ora diz-me a verdade, Augusto,
sempre partes amanhã? disse a jovem a seu companheiro, com uma voz suave como
teriam os anjos, se eles falassem.
— Não me acreditas, Carolina?
Para que te havia de eu enganar?
Carolina fitou seus olhos negros
nos de Augusto, e disse-lhe corando:
— Para quê?!
— Olha, és injusta; um dia to
hei-de provar.
— Mas tu não te demoras muito,
não é assim?
— Não sei; mas mesmo que me
demore muito, um dia hei-de voltar.
— Ah! tu já não me amas! disse
ela, e duas lágrimas despregaram-se de suas pálpebras e vieram cair-lhe no
seio.
— Carolina! Carolina! cada vez te
amo mais, meu anjo.
E Augusto encostou a cabeça da
virgem ao seu peito e beijou-lhe a fronte.
E os pássaros cantavam seus
gorjeios, e a fonte murmurava seus queixumes, e a brisa dizia seus segredos!...
— Escuta, querida, podes vir
todas as tardes sentar-te sobre este mesmo banco, podes até trazer o meu
retrato que eu te dei; e quando os pássaros cantarem, quando o sol s’ esconder,
quando a brisa brincar com as flores, tu ouvirás os meus protestos d’amor.
Sentado à popa do navio que me levar, pisando solo estranho longe de ti, eu
direi à viração do mar, eu direi às brisas da tarde: levai-me este suspiro a
Carolina.
— Sim, sim, murmurava ela,
manda-me um suspiro.
— E quando um dia, continuou
Augusto, a estas mesmas horas, tu ouvires uma voz cantar estes versos:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Então, meu anjo, sou eu, é o teu
Augusto; então, eu o juro, tu serás minha à face do mundo e à face de Deus;
então nós viveremos.
— Oh! Augusto! Augusto! não
partas, não me deixes! e a jovem banhara-se em pranto e soluçava.
— Oh! eu devo partir, mas creio em
Deus, também hei-de voltar.
E Augusto com a voz trêmula e os
olhos umedecidos, abraçando a virgem, disse-lhe:
— Adeus, Carolina!
— Adeus, Augusto! Para
sempre?!...
— Não! não!
E seus lábios se encontraram num
longo beijo d’amor, no meio de lágrimas e soluços.
Um grito, agudo e lúgubre como o
do mocho, retumbou no espaço!...
— Jesus! exclamou Carolina,
cobrindo o rosto com as mãos.
— Não creio em agouros! respondeu
Augusto cavalgando o muro.
Um momento depois sentia-se o
tropel dum cavalo que partia a toda a brida para Lisboa...
Quando esse ruído se perdeu ao
longe, Carolina juntou as mãos e disse em voz baixa:
— Adeus, Augusto! adeus!...
Quase ao mesmo tempo, o cavaleiro
que parecia fugir nas asas do vento, murmurava:
— Adeus, Carolina! adeus!
II
CAIU!
No fim da mesma alameda, embaixo
do mesmo caramanchão, sentados sobre o mesmo banco onde seis meses antes dois
amantes se beijavam em prantos, dois amantes hoje beijam-se por entre sorrisos
de prazer.
Ah! mulher! mulher! que tão cedo
esqueceste o homem que te votou o amor mais ardente de sua alma! Esse homem a
quem juraste vir aqui todas as tardes escutar o suspiro saudoso, que ele te
havia de enviar nas asas da viração!...
Ah! mulher! mulher! que tão
depressa esqueceste um homem que te ama, para ouvires os galanteios doutro que
te cobiça!... Deixas adormecida em teu peito a imagem daquele por quem teu
coração novel bateu as primeiras pulsações, ao mesmo tempo tímidas e suaves, e
não te lembras que esse homem virá um dia, implacável como o destino, terrível
como o raio, pedir-te o cumprimento das juras que lhe fizeste; exigir-te contas
do seu amor, que tu escarneceste; das suas crenças, em que tu cuspiste; da sua
alma, que tu assassinaste!...
Não te lembras que os lábios
ardentes doutro homem roçaram as tuas faces?
Oh! para o futuro, nas horas
mortas da noite, sentirás o pungir desse remorso!
...............................................................
O dia está quase no seu termo; em
breve virá a noite com seu silêncio, suas estrelas, seus fantasmas, seus
mistérios!...
Eles falam; escutamos:
— Olha, Fernando, ontem
esperei-te tanto tempo, e tu não vieste! Estava aqui sentada só, triste!
Qualquer ruído que sentia na estrada, dizia comigo: é Fernando; e enganava-me,
não eras tu!
— Não vim ontem, porque não pude;
mas vi-te.
— Não vieste e viste-me?!
— Vi-te sim, Carolina, vi-te em
sonhos como te vejo todos os dias. E que outra mulher senão tu, há-de vir
abrilhantar os meus sonhos? Às vezes, vejo-te similhante a um anjo, fugires da
terra envolta em nuvens vaporosas. Ontem vi-te aqui, neste mesmo parque. Tu
eras já minha e estavas tão linda como agora; o céu sorria-se para ti, os
pássaros gorjeavam para tu os ouvires, a brisa brincava com teus cabelos e tu
brincavas com as flores...
— E tu, Fernando?
— Eu?! Corria atrás de ti para te
dar um beijo e tu fugias ligeira como a gazela e depois cansada, com teu seio a
arfar, com teus lábios entreabertos, com tuas tranças soltas, caías desfalecida
em meus braços... e ambos gozávamos gozos, delícias, como só se gozam no céu...
estávamos no paraíso. Ah! que sonho tão lindo, Carolina! Mas era um sonho. Foi
cruel o despertar.
— Não te acredito, disse ela com
um sorriso, que queria justamente dizer o contrário.
— Mas eu não te engano; amo-te
como um louco, amo-te como ninguém nunca amou, porque és tu a mulher que eu
havia sonhado nos meus sonhos da infância, nos meus sonhos da adolescência, nos
meus sonhos dos 18 anos, quando o coração tem necessidade d’amor, quando os
lábios desejam que os beijos duma mulher venham mitigar a sede que os abrasa.
E Fernando pôs-se de joelhos aos
pés de Carolina, cingindo-lhe a cintura flexível e delicada, com seus braços
nervosos.
— E tu, Carolina, também me amas?
— Muito, muito, disse ela, e
subjugada pelo olhar ardente de Fernando, uniu seus lábios corados aos dele,
que queimavam...
A noite tinha estendido o seu
manto: as estrelas cintilavam no firmamento, grossas nuvens haviam ocultado a
face da lua.
A noite tem seus mistérios!
..............................................................
No meio daquela mudez aterradora,
soou um grito de mulher, abafado logo por algum beijo. Teria Carolina visto a
figura d’ Augusto desenhada no muro fronteiro?...
.................................................................
Meia hora depois, à claridade da
lua que se mostrou de súbito, um vulto de mulher atravessava apressado a
alameda, dirigindo-se para casa, grave como um fantasma, trêmulo como um
condenado!
...............................................................
As estrelas cintilavam mais
frouxas, a lua ocultou-se de novo e um murmúrio indefinível, similhante a um
queixume, parecia subir da terra ao céu...
Carolina, tinha uma coroa de
virgem que lhe circundava a fronte como uma auréola brilhante; Fernando
arrancou essa coroa e calcou-a aos pés!...
O anjo caiu do seu pedestal d’
inocência... a rosa purpurina e bela pendeu na sua haste... o vento da noite
levou-lhe as folhas...
III
A VOLTA
Estamos em 1849.
Numa tarde de fevereiro, levado
por toda a velocidade de seu bom cavalo, seguia um cavaleiro a estrada de
Lisboa a ***, estrada onde ficava essa linda quinta com sua casa, no meio de
perfumes e de verdura.
Esse cavaleiro, era Augusto.
Quando ainda de longe ele avistou
a casa, seus olhos disseram é ali, seu coração indeciso, murmurava: aquela?!...
Ai! já não era a mesma quinta
bela e verdejante, que ele tinha deixado na primavera! O inverno havia-a
transformado horrivelmente.
Os ramos das faias e dos choupos
gigantes já não se debruçavam sobre o muro. A natureza estava triste. As
árvores não tinham folhas: apenas erguiam seus ramos despidos que vergavam com
o vento.
Uma tristeza involuntária
apoderou-se do mancebo.
Prendeu ao muro o seu cavalo
coberto de suor e poeira e pôs-se a cantar com uma voz trêmula:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Nenhuma voz respondeu à sua copla
apaixonada. Um silêncio profundo reinava nas alamedas; só os ramos das árvores
se agitavam. Dir-se-ia ser um cemitério.
Augusto teve um pressentimento;
sua fronte empalideceu por um instante, mas continuou repetindo:
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
O mesmo silêncio terrível. Só o
eco repetia triste suas últimas palavras: "sê minha, que eu sei-te
amar".
Saltou o muro e alongou a vista
impaciente.
Que tristeza! As alamedas estavam
desertas, o jardim já não florescia, o lago já não tinha o seu cisne, a
natureza já não sorria!
Foi direito ao caramanchão, ele
lá estava no mesmo lugar com o seu banco de cortiça, mas a fonte que dantes
murmurava parecia gemer agora!
Augusto sentou-se no banco com a
cabeça encostada a uma das mãos e olhou para tudo com uma indizível tristeza.
Ai! os pássaros já não cantavam,
nem a brisa brincava travessa!
Então o pranto correu-lhe livre,
o seu coração dizia-lhe que chorasse.
— Foi aqui, murmurava ele, foi
aqui que me despedi dela, foi aqui que prometi torná-la a ver. Meu Deus!
quantas lágrimas não derramei quando atravessava o Oceano, que me separava da
pátria, onde ficara a minha alma! E agora, que torno a ver a terra onde nasci,
agora, que devia ver a minha Carolina, não sei por quê, sinto uma vontade
imensa de chorar. Carolina! Carolina! bradou ele, vem ver o teu Augusto, vem
dizer-lhe que sempre o amaste, vem dar ao desgraçado que chorou os prantos da
saudade, o teu beijo de amor: e os soluços abafaram-lhe a voz no peito.
Mas o mesmo silêncio lúgubre
continuou; nem uma voz, nem um som respondeu aos gemidos do amante.
Ergueu-se pálido e trêmulo e
caminhou vagaroso pela alameda que ia dar ao jardim, cantando sempre com a sua
voz comovida aquela copla, que tão bem exprimia os desejos do seu coração.
Chegou ao jardim e olhou. A casa
tinha as portas e as janelas todas fechadas. Também estava deserta.
— Mudaram-se, disse ele, Carolina
já aqui não está!
E volta pensativo para o
caramanchão e parou diante da fonte.
— Onde está Carolina? perguntou
ele, como se a fonte pudesse responder-lhe.
— Onde está Carolina? perguntou
ele às árvores, e parecia esperar a resposta.
Mas a fonte continuava a correr e
as árvores a agitar os ramos.
— Então adeus, meu caramanchão,
minha fonte, meu jardim, adeus!
E Augusto saltou o muro e quis
passar por diante da casa onde estivera a sua amada. Quando aí chegou, parou e
pôs-se a olhar para a janela onde a tinha visto a primeira vez.
— Jesus! Meu Deus! aquele não é o
senhor Augusto? dizia uma saloia, que passava por ali, a seu marido.
— Parece que é, respondeu o
saloio.
Ao ouvir o seu nome, Augusto
olhou para o lado donde partiram as vozes e reconheceu-os. Depois de os
cumprimentar perguntou logo:
— Diga-me, o senhor Ferraz já
aqui não mora?
— Há que tempos! mudaram-se pelo
Natal.
— Sabe para onde?
— Isso é que não sei; tanto ele
como a senhora estavam muito tristes, e tinham razão, aqueles desgostos não são
para menos.
— Então eles tiveram algum
desgosto? perguntou Augusto, que pressentia a morte de Carolina.
— E muito grande. Sua filha, a
senhora D. Carolina, fugiu...
— Carolina fugiu? perguntou
Augusto com uma voz que assustou a pobre mulher.
— Sim senhor, respondeu ela, foi
no meado do mês de dezembro. Custa a creditar, que uma menina tão boa deixasse
sua mãe. E daí pode ser que fosse roubada, quem sabe!
Augusto já nada ouvia; estava
louco.
— Oh meu Deus! meu Deus! murmurou
ele.
— Jesus! que é isso, senhor
Augusto? perguntou a mulher vendo-lhe a extrema palidez e o chamejar sinistro
dos olhos.
— E eu que a amava tanto!
continuou ele em voz baixa.
A saloia compreendeu-o e
afastou-se murmurando:
— Pobre rapaz! o que lhe fui eu
dizer!
Augusto ficou ainda algum tempo
imóvel com os olhos turvos e o peito arquejante, mas depois erguei a fronte de
repente e bradou com uma explosão terrível de dor:
— Ah! mulher, mulher! tu me
mataste!
Desprendeu seu cavalo, montou e
desapareceu na estrada. Ainda olhou de longe uma vez para aquela quinta deserta
e triste, que lhe inspirava tantas recordações...
IV
O MUNDO!
O esplêndido sol dum dia de junho
de 1852 brilhava com toda a sua força.
Lisboa—a ufana—curvada graciosa
para o Tejo, que lhe beija as plantas, oferecia alegre as suas torres, seus
palácios, suas praças, suas ruas, aos raios ardentes desse astro vivificador.
Entranhemo-nos por essa Lisboa,
labirinto como tantos outros que se chamam Paris, Londres, etc. Vereis por toda
a parte desonra, infâmia, crime! Vereis a virtude esmagada pelo vício! Vereis a
par da mais deslumbrante opulência, a mais horrível miséria! Vereis o pobre
ajuntar as migalhas dos festins e das orgias do rico! Vereis desacatada a
religião, profanado o templo, insultado o Cristo!
— E vive-se nesse inferno?!
perguntareis vós.
— Vive-se sim, porque esse abismo
alcatifado de flores, tem uma atração a que ninguém resiste. Vive-se sim,
porque aí pode o malvado esconder a fronte criminosa no meio da multidão, que
se agita e ruge como o oceano em um dia de cólera. Vive-se sim, porque a
mulher, que o mundo perdeu, pode aí facilmente furtar-se à vista daqueles, que
a conheceram no seu tempo de candura e d’inocência.
— Vinde.
— Por aqui?!...
— Sim, por aqui; causam-vos nojo
estas ruas estreitas, tortuosas e lamacentas? Também a mim. Reparai como estes
prédios denegridos exalam um fétido insuportável. Tudo respira orgia, vício!
Não vedes essas mulheres, que nos atraem com seus olhares voluptuosos, seus
sorrisos d’amor, seus requebros lascivos? São mulheres perdidas. Coitadas!
Arrojaram-nas nesse abismo de devassidão, e não há mão, que as salve! Hão-de
morrer revolvendo-se nesse lodaçal imundo! Desçamos esta calçada.
Não vedes além, aquela jovem
pálida e linda encostada à sua janela? Tem seus olhos negros fitos no céu;
talvez esteja passando pelo pensamento toda a sua vida. Quem sabe?
Olhai! também tem sobre a fronte
o cunho da prostituição.
Mas reparai bem: não vos parece,
assim como a mim, tê-la já visto?... Esperai! Foi...há-de haver quatro
anos...numa linda quinta...chamava-se...chamava-se...Carolina...
Carolina!! Aquela virgem que
passeava pensativa e bela no seu jardim...inocente como uma pomba?... Oh o
mundo!...O mundo!...
E foi um miserável que a
perdeu!...
Fernando! Fernando! o que
fizeste!...
Onde está teu filho, malvado?!
Meteste-o na roda! Vai, mostro,
vai ver se o encontras agora, no meio dessas crianças condenadas a viver, sem
jamais receberem uma carícia de sua verdadeira mãe, sem que na hora derradeira
se recordem que os beijos maternos lhe roçassem as faces na sua infância.
E quando um dia, um homem puser
sobre teu peito a ponta do seu punhal, exigindo-te a—bolsa ou a vida,— terás a
certeza de que esse bandido não seja o teu filho?...
Ah! Fernando! Fernando! a virgem,
que louca, se confiou na tua lealdade,— seduziste-a!
A mulher, que com vergonha da sua
família, deixou por teus conselhos a casa paterna, — abandonaste-a!
E a desgraçada, numa noite
tempestuosa, vertendo prantos de dor e arrependimento, bradou desesperada:
"Fernando! Fernando! tu m’ enganaste! Augusto, perdão! Meu Deus, valei-me!
que hei-de eu fazer? Oh! a culpa não é minha, levo a consciência
tranqüila!"
E lançou-se no vício!...
E não houve um braço que a
sustivesse à borda do precipício!...
E as turbas, que vêm e vão,
quando passam, chamam-lhe—prostituta!...
Covardes! não insulteis essa
mulher. Foi um homem que a perdeu.
Lembrai-vos que ela já foi
virgem; lembrai-vos que essa rosa, hoje pálida, desbotada, murcha e estendida
no solho dum lupanar, já foi um botão mimoso, que entreabria risonho num jardim
florido, e que o vendaval da vida derrubou.
Não a insulteis! resgatai-a do
vício; tirai-lhe o labéu infamante, que lhe pesa sobre a fronte e Deus vos
recompensará.
Não a insulteis, que aquele pobre
coração há-de sofrer tormentos horríveis. Quantas vezes não terá ela chorado
lágrimas de sangue, lembrando-se das carícias de sua mãe, do amor de seu pai,
dos seus dias sossegados e felizes passados no lar doméstico! Quantas vezes não
terá pensado no seu Augusto, que tanto a amava e que talvez agora a
amaldiçoe!...
E essa infeliz, ralada por
sofrimentos horríveis, não terá, na última hora, mão amiga, que lhe venha
cerrar as pálpebras?!...
Ah! mundo! mundo! abismo insondável,
que tragas tantas vítimas!...
Ah! Sociedade estúpida! que
escarneces da desgraça!...
Ah! Justiça! Justiça! palavra
irrisória, que nunca punes o criminoso!...
Mas há a de Deus, e essa...é
justa!
V
DEUS
Nesse magnífico dia de junho de
1852 em que Carolina na sua janela olhava para o céu e parecia murmurar uma
oração à Virgem, dois jovens caminhavam conversando pela mesma rua.
— Pois é como te digo, dizia um
deles, o amor cá para mim resume-se no gozo. Para que diabo tem um homem
dinheiro, senão para pagar com ele os seus prazeres? Um homem rico é feliz, tem
tudo quanto quer.
Nada inveja, nem mesmo o sultão,
porque o dinheiro também pode comprar um serralho com cem mil mulheres, que
todas juntas entoem um canto imenso de voluptuosidade e d’amor, cerquem um
homem de carícias e encham o espaço com um concerto mágico de beijos e
suspiros.
Isso é que é vida. Se a não posso
ter assim, ao menos nunca me deixei arrastar por essas torrentes de
sentimentalismo estúpido, de que tantos parvos têm morrido. Cá para mim, o amor
é o prazer.
— Tens razão, Fernando, replicou
o outro: de que serve dar um homem o seu amor puro e sincero a uma mulher, se
ela depois escarnece dele?
Tens razão; o amor é o prazer.
— Ora Augusto! disse Fernando
soltando uma gargalhada do mais revoltante cinismo: então tu também caíste na
asneira de amar com muito respeito alguma virgem encapotada? Hein? aposto que
ela te pagou bem!
— Fugiu com outro, a pérfida!
disse ele, e seu rosto cobriu-se da palidez da morte.
— É porque entendia melhor da
vida do que tu.
— Oh! Fernando, tu não sabes o
que eu tenho sofrido! Era a primeira mulher que amava, a única, que tenho
amado. Era tão linda! parecia um anjo. Não, não! não creio que aquela mulher me
traísse; foi decerto uma fraqueza d’ instante.
— Histórias da vida! Ela
aborreceu-se de ti e gostou doutro, eis o caso. Há quanto tempo foi?
— Há quatro anos.
— Há quatro anos e ainda tu
pensas nisso! Se fosse há dois dias tinha alguma desculpa. É a primeira vez que
tal vejo. Pois há mulher alguma que mereça as lágrimas dum homem? Há tantas!
— Mas eu amava-a!
— Ora amavas! Gostavas dela é que
queres dizer. Pois bem, esquece-a; goza agora de vinte ao mesmo tempo e estás
vingado nobremente.
— Sim, sim, quero vingar-me!
bradou Augusto, e sobre seus lábios pairou um sorriso sinistro, diabólico!...
— Até que afinal! Filiei mais um
campeão às minhas bandeiras. Dou-te os parabéns. Para essa vingança, à minha
moda, tens quem te ajude, toca.
E estes dois homens, que deviam
saldar entre si uma dívida terrível de sangue, apertaram as mãos como amigos!
— Sim, sim, quero vingar-me,
continuou Augusto, hei-de perder tantas mulheres quantas as lágrimas que ela me
fez verter.
— Bravo! bravo! isso é que se
chama uma vingança sublime.
E assim conversando, tinham ambos
chegado junto à escada do prédio onde morava Carolina.
— Oh! Augusto, para principiares
a vingar-te, vamos aqui ao 4º andar.
— Não vou.
— Anda, vem! O Moreira disse-me
que há aqui uma rapariga muito linda. Que diabo vais tu fazer agora ao passeio?
Anda, vem.
E ambos subiram a escada, bateram
ao 4º andar e entraram.
No corredor, sentiram o roçar dum
vestido pelas paredes; um vulto de mulher apareceu a uma porta e fugiu de
súbito.
Seguiram essa mulher e viram-na
cair sobre um sofá com o rosto oculto entre as mãos, soluçando como uma
criança.
Quando eles se aproximaram, a
desgraçada ergueu-se e juntando as mãos para Augusto disse-lhe:
— Perdão! Perdão! Fernando é que
me perdeu, e caiu sem sentidos!
— Carolina! exclamaram os dois
mancebos ao mesmo tempo, recuando um passo.
E só então é que esses dois
homens compreenderam o papel, que deviam representar nesse drama.
— Miserável! Foste tu! bradou
Augusto lívido de cólera agarrando Fernando por um braço.
Este levou a mão ao peito, os
olhos injetaram-se-lhe de sangue, sentiu vergarem-lhe as pernas e ferido por
uma apoplexia fulminante caiu redondamente no chão. Na queda, roçou com a
cabeça a orla do vestido de Carolina.
A justiça de Deus foi
terrível!...O algoz expirou aos pés da vítima!
VI
PERDÃO!
Augusto fugiu espavorido daquela
casa onde deixava um cadáver; o cadáver de Fernando, punido pela cólera do
Senhor!...
E ele conviveu com esse homem
durante tantos anos e chamava-lhe seu amigo!...
E a mulher que ele amara
pediu-lhe perdão, confessando o seu erro e o seu arrependimento!...
Ela ainda o amava...talvez! e com
esta lembrança ele sentia reviver todo o amor que lhe jurara nos seus dias
felizes. Cem vezes quis voltar para trás e levar nos seus braços Carolina
desfalecida, que ele reanimaria com o seu hálito abrasador, mas a cabeça
andava-lhe à roda, as casas pareciam cair e as pernas tremiam-lhe. Uma febre
ardente devorava-lhe o cérebro.
Uma hora depois, dois médicos
contemplavam-no estendido sobre a cama.
Erguia meio corpo, apoiava-se com
os cotovelos, e espraiando os olhos desvairados, perguntava com uma voz
terrível: "Onde está Carolina?"
Depois...seus punhos cerravam-se,
seus dentes rangiam e murmurando: Fernando! Fernando! caía de novo sobre o
travesseiro. Era o delírio.
À claridade das velas, aquele
rosto pálido, que se debatia na cama, parecia o dum espectro agitando-se sobre
um túmulo.
À meia noite cessou-lhe a febre e
um sono tranqüilo e longo o conservou deitado até às 10 da manhã.
Apenas acordou, contra a ordem
expressa dos médicos, vestiu-se e saiu.
Quem o visse na rua diria ser um
fantasma. Estava desfigurado como um cadáver; só seus olhos tinham um brilho
imenso.
Dirigia-se apressado para a casa
onde se desenrolara a seus olhos o drama da véspera: queria ver Carolina.
— Quero falar à menina Carolina,
disse ele à dona da casa, apenas entrou.
— O senhor certamente enganou-se
com a casa, aqui não há nenhuma Carolina.
— Pois ela não estava aqui ontem?
— Carolina!...não senhor.
— Se eu estava aqui quando ela
desmaiou ontem à tarde!
— Ah! é verdade, mas ela chama-se
Amélia.
— Mudou de nome! disse consigo o
mancebo, tinha vergonha que a conhecessem! Depois dirigindo-se à mulher: Não
lhe podia falar agora?
— Ela já cá não está. Saiu ontem
mesmo quase à noite, deixando-me uma carta para entregá-la a uma pessoa que a
devia vir aqui procurar ontem ou hoje. Talvez seja o senhor. Queira ter a
bondade de me dizer o seu nome?
— Augusto ***.
— Justamente. Vou já buscá-la.
— Esperava que eu viesse ontem ou
hoje e não quis que eu a visse! murmurou ele apenas a mulher saíra da sala.
Compreendo-te, Carolina; tu ainda me amas e receavas que eu te repelisse agora
que estás manchada, quando te havia deixado pura. Não, não! não te repilo, porque
o meu coração bate da mesma maneira que batia há quatro anos; porque para mim
sempre serás a mesma Carolina virgem, inocente, que eu respeitei como irmã;
porque terias de mim o perdão voluntário dessas faltas que o mundo te fez
cometer. Oh! para que me separei de ti? para que fiz aquela viagem?...
E abafou com o lenço as lágrimas
que lhe saltaram dos olhos.
— Aqui está a carta, disse a
mulher entrando.
Augusto recebeu-a e desceu
precipitadamente as escadas. Queria lê-la em casa, porque aí ninguém viria
perturbar-lhe a sua dor.
Meia hora depois, sentado a uma
mesa, lia ele a carta de Carolina.
" Augusto:
"Perdão! perdão! é de
joelhos que to imploro. Não me amaldiçoes; por piedade, ouve-me primeiro. Bem
sei que te rasguei o coração, porque tu me amavas deveras, mas já tenho expiado
de sobra o mal que te fiz. Para que me deixastes tu, para fazer aquela viagem?
Antes não fosses. Chorava todas as tardes debaixo do caramanchão, por ti;
chorei três meses. Um dia vi Fernando. Um dia... Perdão! perdão! foi fraqueza;
manchei o corpo, mas a alma ficou pura. Não amava senão a ti. Desde esse dia a
tua imagem perseguiu-me sempre. Tremia diante da minha família, tremia diante
de Deus, tremia diante de tudo! Era culpada! Uma noite, enfim, seduzida por
aquele homem, que prometera desposar-me, reparando a falta, deixei a casa onde
nascera para nunca mais voltar. Passei essa última tarde com minha mãe, que eu
abracei e beijei mil vezes. Minha pobre mãe! que nunca mais te hás-de sorrir
para mim! Meu pobre pai, que nunca mais me chamarás a tua Carolina!
"Oh! Augusto! Augusto! eu
tenho sofrido muito.
"Depois, meu filho foi-me
arrancado dos braços, e quando pedi a Fernando os meus dias felizes, a minha
honra, as carícias de minha mãe e os afagos de meu pai... ele respondeu-me com
uma gargalhada e abandonou-me.
"Para onde havia de ir? Para
casa de meus pais? Eles fechariam a porta à filha indigna que lhes manchara o
nome. Não tinha coragem bastante para suicidar-me...arrojei-me no abismo!...
Mas todas as noites pedia a Deus
nas minhas orações, que te pudesse ver ainda uma vez antes de morrer, a ti, o
único que tenho amado. Deus ouviu-me, Deus puniu Fernando.
"Adeus! parto para longe de
ti; nunca mais me verás. Não, nunca mais, porque é impossível que o coração de
um homem possa amar a mulher que o traiu. Mas ao menos lembra-te que Cristo
perdoou a seus algozes, perdoa-me também. Oh! sim, Augusto, perdão! perdão para
CAROLINA."
Sim, sim, perdôo-te, exclamou o
mancebo deixando cair a carta das mãos: perdôo-te, porque sinto renascer todo o
amor que eu julgava extinto. Carolina! Carolina! bradou ele, erguendo-se, vem a
meus braços, vem, que eu te dou todo o amor que encerra o coração de um homem.
Meu Deus! meu Deus! dai-me a
minha Carolina, que eu nunca amei outra mulher no mundo...
VII
A ÚLTIMA HORA
Um mês depois, nos últimos dias
de agosto, Carolina gemia agonizante em Setúbal.
Que coração de mulher resistiria
a tantas comoções?
Com a cabeça formosa recostada no
travesseiro, firme e resignada, ouvia ela da boca do sacerdote as doces e
consoladoras palavras do Evangelho.
Sobre uma pequena mesa via-se um
crucifixo entre duas velas acesas, que espalhavam pelo quarto a sua claridade
mortuária.
Oh! triste e solene hora do
passamento! Como se patenteia então eloqüente o nada das grandezas humanas!...
— Filha, dizia-lhe o padre, com
sua voz suave; lembrai-vos só de Deus, diante do Qual ides em breve comparecer.
Arrependei-vos, filha, e Ele que é um Deus de bondade e misericórdia há-de
perdoar-vos.
— Deus perdoa-me, padre?
— Perdoa-vos, sim, filha.
— Então morro contente; mas eu
também queria levar outro perdão da terra.
— Dizei, filha.
— É o de meus pais, que eu
abandonei, padre; mas eu amava-os muito.
— Também te devem perdoar, filha,
porque Deus manda que se perdoe.
— Ainda falta outro, padre.
— Dizei, filha.
— É um homem que eu amei muito,
padre, e que ainda amo.
— Fizestes-lhe mal, filha?
— Traí-o, padre, disse ela
chorando.
— Descansa, filha, ele também te
há-de perdoar.
— Meu padre, queria pedir-vos um
favor.
— Falai, filha.
— É de enviardes para Lisboa a
carta que está sobre aquela mesa; é o último adeus que eu digo àquele homem.
— Eu enviarei a carta, filha. Mas
por que chorais? são ainda lembranças deste mundo, que vos pungem? Já vos
arrependestes sinceramente de tudo: pois bem; desligai o pensamento de tudo que
é terrestre, mesquinho e pequeno, e pensai em Deus, sublime e grande.
— Padre, padre, eu vou morrer!
repeti-me que Deus me perdoa.
O padre aproximou-se e curvado
sobre o leito dizia-lhe:
— Minha filha, Deus é bom, Deus
perdoa quando Seus filhos se arrependem como vós vos arrependestes.
— Minha pobre mãe, adeus!
murmurava a agonizante, perdoa a tua filha, meu pai!
Depois um tremor percorreu-lhe os
membros, um soluço saiu de seu peito e fazendo um último esforço disse:
adeus... Au... gus... e a voz expirou-lhe nos lábios e a cabeça pendeu para o
lado, sem um gemido.
Estava morta.
O padre contemplou-a um instante,
mudo e enternecido.
— Morreu! disse ele enxugando uma
lágrima, ainda tão jovem! Foi o mundo que a matou.
EPÍLOGO
Alguns dias depois, Augusto,
trêmulo, abria uma carta fechada com obreia preta, e lia:
" Adeus, Augusto: quando
leres esta carta já estarei morta. Consola meu pai e minha mãe, se os vires.
Não amaldiçoes a minha memória! Morro beijando o teu retrato, que levo comigo
ao túmulo. Adeus! ora por mim!
CAROLINA".
— Sim, sim, disse o mancebo,
caindo de joelhos e juntando as mãos, eu oro por ti. Que Deus te perdoe como eu
te perdoei.
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Nota:
Casimiro de Abreu: "Carolina" (1856)
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