MUTIRÃO
Tovaca das grandes já cantou na
mata-virgem, surucuá do peito amarelo já deu seus garganteados lá para as bandas do morro, e o
sol está sai-não-sai. Faz um tempo de encantar.
Nhô João da Grota, que é quem mais madruga por estes cafundós, já andou
corre-correndo a invernada, para tocar
as vacas pro curral, e está de volta, com o nariz vermelho por causa do frio; dendem, sua mulherzinha, pequetita e
franzina, mas engraçada que em uma
maravilha das mais miúdas, aprontou o
chá de congonha e ficou esperando-o.
Assim que ele apontou, dendem
botou a bandeja de chá com broinhas de fubá mimoso em
riba da mesa;
e enquanto o bule
ainda
está abafado, para
ficar bom às
direitas, ela vai
arranjar um picuá com virado de galinha, porque nhô João da Grota convocou mutirão para uma
derrubada. Ele chegou,
entrou, sentou-se junto
à mesa, e
pegou a tratar
de adquirir sustância para serviço até a hora do almoço;
e nem bem acabou de bater a última broinha e
engolir a derradeira
xícara de chá,
foi, renteando com
a cerca, olhar
se as vacas
estavam comendo as espigas
de milho do costume; depois, voltou,
garrou o picuá e a ferramenta, e abalou para o espigão da derrubada.
Agora o sol já mostrou um ar de
sua graça; uns fiinhos de luz riscaram as montanhas. A
passarinhada gorgeia que
é um Deus
nos acuda. Os
piripixios, revoando dois a dois
por cima dos
carurus amadurados, não
têm mais propósito
e pintam a
manta; têm sabiás
os arvoredos, que a gente chega a perder a conta deles; tirivas grasnam poderosamente;
saíras pulam, bicando as frutas. Um
tucano dos grandes, num vôo vagaroso e cheio de importância, acaba de passar pelo meio da passarinhada,
sentou um galho de juvévé; olhou de roda, e como está fomento, desceu a uma fruteira.
Nhô João da Grota ouvia tudo e
nada via; baixava o olhar ao chão e ruminava projetos e
mais projetos; a
madeira que estava
jurada de cair,
daria um tanto;
a lenha, outro
tanto quase; e
depois, quando estivesse
tudo escampo, havia
de plantar uns
dez mil pés
de café; quando o café pegasse a dar, − então, Jesus!
− não haveria mãos a medir. Já tão longe deste
mundo, que não
percebeu a meia
risada que os
parceiros do mutirão
soltaram, ao vê-lo
passando arcado e banzando de tal jeito no sossego do caminho.
Afastara-se bastante de casa, fronteava
uma capaúva grandalhona, quando ouviu a voz do Maneco Furquim, que isto dizia:
− Nhô João! Ó nhô João! Espere a
gente! Já se acha tão rico e soberbo que nem vê os pobrinhos?
Ficou enleado
e sem ter
coisa que servisse
de resposta. Voltou-se
para os lados
de onde rompera a voz, e qual não
foi o seu espanto, ao notar que a companheirada vinha ali, tendo-o
por certo visto
passar! E ele
não a vira!
Até gaguejou. Foi-se
repondo, entretanto, pouco a pouco, a ponto de caçoar com os
caboclos, atirando-lhes pilhérias cheias de afeto. A um
chamava araponga, porque
o via com
a cabeça branca,
branca; a segundo,
que ladeava este, graúna, por ter pelo contrário o coco
preto, preto; a outro, paca das mais guasqueiras, por andar ainda àquela hora, meia do dia, meia da
noite. E as gargalhadas espalhavam-se no seio
quieto da mata por onde seguiam.
O frio estava tinindo! Cada qual
trazia seu ponche, seu chale-manta, sua japona, seu pala; e como de prevenção cada qual trouxera
também os pés bem enfiados em sapatos ou
tamancos, o rumor que levantavam, andando e gargalhando, parecia o de
uma tropa de potros que estivesse a
correr e relinchar por uma invernada – sem comparar uma coisa com a outra! O Chiquinho Gázeo, que dava mostras de ser o
mais friento de todos, até batia a fila de dentes de cima com a de baixo, semelhando um sujeito
amaleitado; o Rufino, magricela por amor de
uma asma que nunca o largava, ia dizendo suas frases com a voz meio
encoberta pela pieira; os demais nada
diziam.
Apareceu o valo que marcava o
princípio das terras de nhô João. Beirando-o desde a cerca de varas, chegava-se a uma aguada que
as taiovas escondiam pela metade; era aí que
devia de começar
a forte lida.
Chegados, pois, nhô
João pôs à
vista de todos
uma bojuda garrafa de caninha, daquelas que fazem a
gente vidrar os olhos, de tão gostosa; e, um por um, deram sua boquinha no gargalo. Afiaram as
foices, só por luxo, porque elas vinham finas de véspera, experimentaram os machados, e o
capitão do bando berrou:
− Um! Dois! Três!
À terceira palavra, a foiçaria
desceu direito. Aquilo é que era zé-povinho cumba pro serviço! Tudo batia num só compasso, e firme
até ali. Podia-se ouvir facilmente, numas cem
braças em redor, o pausado resfolegar de todos os peitos; e o matinho
baixo, então, mais se baixava, como por
encanto, acumulando-se em pequenos feixes que erguiam ao ar a brancura igual das hásteas cortadas. Daí a nada,
também, já estava tudo raso. Chegou-se ao matão feio. O garrafão de caninha andou outra vez de déu
em déu. Sumiram-se as foices e os machados
apareceram. E a forte lida continuou na mesma toada que dantes; com a
diferença que agora, numas quinhentas
braças em redondo,
se poderiam ouvir
as crebras machadadas.
Alguns passarinhos protestavam,
gritando, contra aquela
invasão; mas ninguém
dava fé, sequer,
de tamanha e tão tola arrelia.
A espaços, vibravam dentre o
barulho pedidos como este:
− Mané Guarirova, canta uma moda!
− Uma moda bem terna, Mané
Guarirova!
− Bem chorosa!
− Bem tremida!
O Mané Guarirova, fazendo-se
surdo, prosseguia no trabalho, com afã. Quem o visse tão absorvido na lavra, mostrando-se
mourejador como poucos, não seria capaz de adivinhar que ali se achava o cabra mais entusiasmado
dos cateretês. Por isso mesmo lhe rogavam que
cantasse. Os que rogavam não perderam seu tempo; a voz bonita
daquele danado alteou-se regaladamente,
com intervalos curtos regulados ao lascar das madeiras. A primeira moda foi
assim:
“Tico-tico lari no quilão,
‘tá batendo c’o bico no chão,
andorinha fazendo verão,
por isso é que eu sempre digo:
querer bem não é bom, não,
ai!
querer bem não é bom, não!”
− Essa não serve, Guarirova! −
lhe disseram, logo que terminou a trova.
− Por quê? – inquiriu ele.
− Porque é moda do norte, e aqui
não há ninguém de lá.
− Então boto outra.
E de fato cantou por esta forma:
“Vai serrar pau de pinho
e também de canela,
pra fazer cinco portas,
vinte e cinco janelas;
pra matar a saudade,
que eu não posso mais co’ela:
puxa a serra, Mariana!
puxa a serra, Mariana!”
− Essa também é do norte, não
serve! Foi o que lhe observaram.
− Pois do norte sou eu – rotorquiu
ele; e sirvo muito!
− Olhem só a prosa!
− Pois se vocês bem sabem!
− Está bom. Cante uma modinha.
− Como coisa que sou agora algum
sabiá. É cantar e mais cantar! Quem tem boca. .
− Vai a Roma.
− ... Não manda soprar, que ainda
é melhor e mais importante.
Entrementes o sol fora subindo,
subindo; já seus raios caíam direitinho sobre os troncos das perovas, de alto a baixo, o que vale dizer
que podia ser meio-dia. A caboclada suava à grande: o próprio guarirova, destemido como raros, já
tinha a testa orvalhada e a camisa de meia pingando. Nhô João da Grota convidou tudo para o almoço, o que foi uma
idéia esplêndida, pois ninguém mais
bateu machado nos arvoredos. Agruparam-se os parceiros à roda dos caldeirões
enormes, que
fumegavam cheirosamente, e era de
ver o jeito aforçurado de cada qual. Levantavam-se afirmações deste teor, a todo instante:
− Arre! Que já não posso mais!
− A fome é negra e maligna, nhô
João da Grota !
− Estou com o rato no paiol, nhô
João!
− Nhô João, quase morro de
fraqueza!
Houve tempo
e lugar para
todas as coisas.
Queixas não apareceram;
muito pelo contrário, quando nhô João trouxe nova
carregação de pinga, da tal que fazia vidrar os olhos vários corações agradecidos não se puderam
conter:
− Mas você é um anjo, nhô João!
− Nhô João, você é um demônio
tentador!
E
outros e outros
ditos, ao fim
dos quais veio
o café com
mistura. Biscoitos, brevidades,
bolos de arroz,
o que de melhor se
imagina para sobremesa
de almoço, nada
faltou naquele. Ao
erguerem-se todos, cheios
e fartos, não
foram poucos os
que sentiram bambas
as pernas. O
que logo passou,
afinal, porque, por
amor do serviço,
ninguém quis quebrar as munhecas às direitas. E todos
andaram, cantando:
“Quando eu for para a cadeia
levarei meu garrafão,
fão, fão;
não quero que ninguém me prenda,
oléré!
debaixo de seu pilão.”
A
faina continuou como
dantes. Guarucaias, vamirins,
tapiás, caneleiras, corações,
canjaranas, iam caindo uma a uma todas as árvores do espigão. Apenas uma
tira, nada mais, restava para
derrubar; e quando
foi três horas,
se tanto! –
o alto do
morro surgiu, embranquecido dos troncos que patenteavam
lascas recentíssimas. Nada mais! Nada mais! – e
a parceirada, juntando a ferramenta, reuniu-se a repousar, entre dois
canchins grossos. O sol tremia no céu,
quente e bravo; mas ali no meio das ramarias ainda verdes, havia uma
frescura de encantar.
O Maneco Furquim, pegando do
garrafão, cantou:
“Viva o cravo, viva a rosa,
viva a flor de maravilha,
viva o nosso João da Grota
e toda a sua família!”
A parceirada acompanhou, firme na
toada. Depois, como estava tudo feito, cada qual tratou
de abalar para
seus pagos: o
grupo desceu do
morro, alegre que nem
um bando de
araguarís em fruteira, e nhô João da Grota vinha mais alegre do que
todos.
Ao chegar à casa, sozinho, que os
companheiros se tinham espalhado para diferentes rumos, falou à dendem, que labutava risonha e
corada como uma aurora:
− Agora, sim, podemos esperar
nossos filhos sem susto; o nosso futuro lá está, naquele espigão.
E aproximando-se dela, ainda
mais, falou-lhe ao ouvido:
− Não precisamos agora de estar
fugindo das luas!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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