quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Valdomiro Silveira: "Mutirão"

MUTIRÃO 

Tovaca das grandes já cantou na mata-virgem, surucuá do peito amarelo já deu seus  garganteados lá para as bandas do morro, e o sol está sai-não-sai. Faz um tempo de encantar.  Nhô João da Grota, que é quem mais madruga por estes cafundós, já andou corre-correndo a  invernada, para tocar as vacas pro curral, e está de volta, com o nariz vermelho por causa do  frio; dendem, sua mulherzinha, pequetita e franzina, mas engraçada que  em uma maravilha  das mais miúdas, aprontou o chá de congonha e ficou esperando-o.

Assim que ele apontou, dendem botou a bandeja de chá com broinhas de fubá mimoso  em  riba  da  mesa;  e  enquanto  o  bule  ainda  está  abafado,  para  ficar  bom  às  direitas,  ela  vai  arranjar um picuá com virado de galinha, porque nhô João da Grota  convocou mutirão para  uma  derrubada.  Ele  chegou,  entrou,  sentou-se  junto  à  mesa,  e  pegou  a  tratar  de  adquirir  sustância para serviço até a hora do almoço; e nem bem acabou de bater a última broinha e  engolir  a  derradeira  xícara  de  chá,  foi,  renteando  com  a  cerca,  olhar  se  as  vacas  estavam  comendo as espigas de  milho do costume; depois, voltou, garrou o picuá e a ferramenta,  e  abalou para o espigão da derrubada.
  
Agora o sol já mostrou um ar de sua graça; uns fiinhos de luz riscaram as montanhas.  A  passarinhada  gorgeia  que  é  um  Deus  nos  acuda.  Os  piripixios,  revoando  dois  a  dois  por  cima  dos  carurus  amadurados,  não  têm  mais  propósito  e  pintam  a  manta;  têm  sabiás  os  arvoredos, que a  gente chega a perder a  conta deles; tirivas grasnam poderosamente; saíras  pulam, bicando as frutas. Um tucano dos grandes, num vôo vagaroso e cheio de importância,  acaba de passar pelo meio da passarinhada, sentou um galho de juvévé; olhou de roda, e como  está fomento, desceu a uma fruteira.

Nhô João da Grota ouvia tudo e nada via; baixava o olhar ao chão e ruminava projetos  e  mais  projetos;  a  madeira  que  estava  jurada  de  cair,  daria  um  tanto;  a  lenha,  outro  tanto  quase;  e  depois,  quando  estivesse  tudo  escampo,  havia  de  plantar  uns  dez  mil  pés  de  café;  quando o café pegasse a dar, − então, Jesus! − não haveria mãos a medir. Já tão longe deste  mundo,  que  não  percebeu  a  meia  risada  que  os  parceiros  do  mutirão  soltaram,  ao  vê-lo  passando arcado e banzando de tal jeito no sossego do caminho. Afastara-se bastante de casa,  fronteava uma capaúva grandalhona, quando ouviu a voz do Maneco Furquim, que isto dizia:

− Nhô João! Ó nhô João! Espere a gente! Já se acha tão rico e soberbo que nem vê os  pobrinhos?

Ficou  enleado  e  sem  ter  coisa  que  servisse  de  resposta.  Voltou-se  para  os  lados  de  onde rompera a voz, e qual não foi o seu espanto, ao notar que a companheirada vinha ali,  tendo-o  por  certo  visto  passar!  E  ele  não  a  vira!  Até  gaguejou.  Foi-se  repondo,  entretanto,  pouco a pouco, a ponto de caçoar com os caboclos, atirando-lhes pilhérias cheias de afeto. A  um  chamava  araponga,  porque  o  via  com  a  cabeça  branca,  branca;  a  segundo,  que  ladeava  este, graúna, por ter pelo contrário o coco preto, preto; a outro, paca das mais guasqueiras, por  andar ainda àquela hora, meia do dia, meia da noite. E as gargalhadas espalhavam-se no seio  quieto da mata por onde seguiam.

O frio estava tinindo! Cada qual trazia seu ponche, seu chale-manta, sua japona, seu  pala; e como de prevenção cada qual trouxera também os pés bem enfiados em sapatos ou  tamancos, o rumor que levantavam, andando e gargalhando, parecia o de uma tropa de potros  que estivesse a correr e relinchar por uma invernada – sem comparar uma coisa com a outra!  O Chiquinho Gázeo, que dava mostras de ser o mais friento de todos, até batia a fila de dentes  de cima com a de baixo, semelhando um sujeito amaleitado; o Rufino, magricela por amor de  uma asma que nunca o largava, ia dizendo suas frases com a voz meio encoberta pela pieira;  os demais nada diziam.

Apareceu o valo que marcava o princípio das terras de nhô João. Beirando-o desde a  cerca de varas, chegava-se a uma aguada que as taiovas escondiam pela metade; era aí que  devia  de  começar  a  forte  lida.  Chegados,  pois,  nhô  João  pôs  à  vista  de  todos  uma  bojuda  garrafa de caninha, daquelas que fazem a gente vidrar os olhos, de tão gostosa; e, um por um,  deram sua boquinha no gargalo. Afiaram as foices, só por luxo, porque elas vinham finas de  véspera, experimentaram os machados, e o capitão do bando berrou:

− Um! Dois! Três!

À terceira palavra, a foiçaria desceu direito. Aquilo é que era zé-povinho cumba pro  serviço! Tudo batia num só compasso, e firme até ali. Podia-se ouvir facilmente, numas cem  braças em redor, o pausado resfolegar de todos os peitos; e o matinho baixo, então, mais se  baixava, como por encanto, acumulando-se em pequenos feixes que erguiam ao ar a brancura  igual das hásteas cortadas. Daí a nada, também, já estava tudo raso. Chegou-se ao matão feio.  O garrafão de caninha andou outra vez de déu em déu. Sumiram-se as foices e os machados  apareceram. E a forte lida continuou na mesma toada que dantes; com a diferença que agora,  numas  quinhentas  braças  em  redondo,  se  poderiam  ouvir  as  crebras  machadadas.  Alguns  passarinhos  protestavam,  gritando,  contra  aquela  invasão;  mas  ninguém  dava  fé,  sequer,  de  tamanha e tão tola arrelia.

A espaços, vibravam dentre o barulho pedidos como este:

− Mané Guarirova, canta uma moda!

− Uma moda bem terna, Mané Guarirova! 

− Bem chorosa!

− Bem tremida!

O Mané Guarirova, fazendo-se surdo, prosseguia no trabalho, com afã. Quem o visse  tão absorvido na lavra, mostrando-se mourejador como poucos, não seria capaz de adivinhar  que ali se achava o cabra mais entusiasmado dos cateretês. Por isso mesmo lhe rogavam que  cantasse.  Os que  rogavam não perderam seu tempo; a voz bonita daquele danado alteou-se  regaladamente, com intervalos curtos regulados ao lascar das madeiras. A primeira moda foi
assim:

“Tico-tico lari no quilão,
 ‘tá batendo c’o bico no chão,
andorinha fazendo verão,

por isso é que eu sempre digo:
querer bem não é bom, não,
ai!
querer bem não é bom, não!”


− Essa não serve, Guarirova! − lhe disseram, logo que terminou a trova.

− Por quê? – inquiriu ele.

− Porque é moda do norte, e aqui não há ninguém de lá.

− Então boto outra.

E de fato cantou por esta forma:

“Vai serrar pau de pinho
e também de canela,
pra fazer cinco portas,
vinte e cinco janelas;

pra matar a saudade,
que eu não posso mais co’ela:
puxa a serra, Mariana!
puxa a serra, Mariana!”

− Essa também é do norte, não serve! Foi o que lhe observaram.

− Pois do norte sou eu – rotorquiu ele; e sirvo muito!

− Olhem só a prosa!

− Pois se vocês bem sabem!

− Está bom. Cante uma modinha.

− Como coisa que sou agora algum sabiá. É cantar e mais cantar! Quem tem boca. .

− Vai a Roma.

− ... Não manda soprar, que ainda é melhor e mais importante.

Entrementes o sol fora subindo, subindo; já seus raios caíam direitinho sobre os troncos das  perovas, de alto a baixo, o que vale dizer que podia ser meio-dia. A caboclada suava à grande: o  próprio guarirova, destemido como raros, já tinha a testa orvalhada e a camisa de meia pingando.  Nhô João da Grota  convidou tudo para o almoço, o que foi uma idéia esplêndida, pois ninguém  mais bateu machado nos arvoredos. Agruparam-se os parceiros à roda dos caldeirões enormes, que

fumegavam cheirosamente, e era de ver o jeito aforçurado de cada qual. Levantavam-se afirmações  deste teor, a todo instante:

− Arre! Que já não posso mais!

− A fome é negra e maligna, nhô João da Grota !

− Estou com o rato no paiol, nhô João!

− Nhô João, quase morro de fraqueza!

Houve  tempo  e  lugar  para  todas  as  coisas.  Queixas  não  apareceram;  muito  pelo  contrário, quando nhô João trouxe nova carregação de pinga, da tal que fazia vidrar os olhos  vários corações agradecidos não se puderam conter:

− Mas você é um anjo, nhô João!

− Nhô João, você é um demônio tentador!

E  outros  e  outros  ditos,  ao  fim  dos  quais  veio  o  café  com  mistura.  Biscoitos,  brevidades,  bolos  de  arroz,  o  que  de  melhor  se  imagina  para  sobremesa  de  almoço,  nada  faltou  naquele.  Ao  erguerem-se  todos,  cheios  e  fartos,  não  foram  poucos  os  que  sentiram  bambas  as  pernas.  O  que  logo  passou,  afinal,  porque,  por  amor  do  serviço,  ninguém  quis  quebrar as munhecas às direitas. E todos andaram, cantando:

“Quando eu for para a cadeia
levarei meu garrafão,
fão, fão;
não quero que ninguém me prenda, 
oléré!
debaixo de seu pilão.”

A  faina  continuou  como  dantes.  Guarucaias,  vamirins,  tapiás,  caneleiras,  corações,  canjaranas, iam caindo uma a uma todas as árvores do espigão. Apenas uma tira, nada mais,  restava  para  derrubar;  e  quando  foi  três  horas,  se  tanto!  –  o  alto  do  morro  surgiu,  embranquecido dos troncos que patenteavam lascas recentíssimas. Nada mais! Nada mais! – e  a parceirada, juntando a ferramenta, reuniu-se a repousar, entre dois canchins grossos. O sol  tremia no céu, quente e bravo; mas ali no meio das ramarias ainda verdes, havia uma frescura  de encantar.

O Maneco Furquim, pegando do garrafão, cantou:

“Viva o cravo, viva a rosa,
viva a flor de maravilha, 
viva o nosso João da Grota 
e toda a sua família!”

A parceirada acompanhou, firme na toada. Depois, como estava tudo feito, cada qual  tratou  de  abalar  para  seus  pagos:  o  grupo  desceu  do  morro,  alegre  que  nem  um  bando  de  araguarís em fruteira, e nhô João da Grota vinha mais alegre do que todos.

Ao chegar à casa, sozinho, que os companheiros se tinham espalhado para diferentes  rumos, falou à dendem, que labutava risonha e corada como uma aurora:

− Agora, sim, podemos esperar nossos filhos sem susto; o nosso futuro lá está, naquele  espigão.

E aproximando-se dela, ainda mais, falou-lhe ao ouvido:

− Não precisamos agora de estar fugindo das luas!


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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do  apógrafo  de  Carmen  Lydia  de Souza  Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007   

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