JURANDO FALSO
Dizer o que era a Nanica,
nos tempos em que o José das Perovas pegou de amores com ela, é coisa quase impossível: só mesmo se se
lhe visse o retrato é que se convenceria a gente da formosura perigosa que a diaba tinha.
Chamavam-lhe Nanica, por ser mesmo garnizé: mas
apesar de retaca – isto agora é que é verdade! – qualquer moçona das
mais sacudidas não lhe causaria inveja
de qualidade alguma.
Pois o José das Perovas
apaixonou-se perdidamente pela tal: não havia no quarteirão alma
cristã que não
soubesse do caso;
por sinal que
uma nhá Tuda,
lingüinha levada dos
dianhos, contara em segredo a muitas pessoas que o vira pinchar flores
de baixo da janela pra riba, na casa em
que a dita morava, com o pai quase imbecil por amor dos pifões.
O boato
avolumou-se, daí a
pouco. Raparigas houve
que chegaram a
perguntar à Nanica:
− Dizem
por aí que
você está dando
corda ao filho
do Manecão: é
verdade? É verdade?
− Ora! O que têm vocês com
isso? – tornava ela: tratem de sua vida e não se importem com a alheia, é o melhor! Eu nunca lhes
perguntei por semelhantes coisas; façam o mesmo: não se intrometam em meus negócios.
Aquelas, contendo a raiva
que lhes gritava no peito, nada mais lhe diziam na presença. Mas
depois – virgem
nossa senhora! –
lá iam todos
os qualificativos, em
procissão, acompanhando o
nome da outra:
fogueta, namoradeira, sem
modos, busca-pé, regateira,
xingos deste porte, e de maior, alteavam-se aos ares, perseguindo-lh’o,
quando acertavam de falar a respeito
dela. A onda cresceu de modo que um dia a Nanica foi sabedora do que à sua conta rosnavam: olhou em redor de si, viu-se
meio abandonada da sorte, aceitou de uma vez
as galanterias do que havia tanto tempo a requestava – e um belo dia
agarrou mundo.
A barulheira que correu no
quarteirão, logo depois, nem se pode contar: parecia querer subir direitinho ao céu, de tão irada que
vinha! Se não subiu é porque a voz do povo, em vez de ser de Deus , como alguns falam, é voz do
diabo: e a voz do diabo não deve de passar deste inferno, que é a terra. Volvidos dias, porém,
quietou o rumor; só o que se ouvia ainda eram
conceitos como este:
− Aquilo é sina, coitada!
E por estarem convencidos
de que era sina, deveras, aquilo, ninguém mais mordeu em o nome da pobre: no que andaram muito bem,
porque afinal de contas águas passadas
não fazem rodar moinho.
Um mortal
não precisa de
viajar grande coisa
para achar a
felicidade: às vezes
(segundo afirma um
entendido!), esta sujeita
não está mais
longe do que
a dois passos
da gente, e a gente
vai procurá-la onde
menos a pode encontrar!
O José das
Perovas não se
afastou muito: arranjou
seu rancho à
beira do turvinho,
aí pros lados
do espírito santo,
e dedicou-se à Nanica. E a Nanica
dedicou-se-lhe que dava gosto vê-los.
De madrugada,
ia ele ao trabalho, depois
de dizer à
companheira frases bonitas
e maviosas como
as do Armando
Erse: ela escutava-o
com semblante florido
de regozijo, e
retribuía-lhe os abraços. Entretanto, quando o vulto do José se sumia
entre as duas guarucaias que se elevavam
à margem da estrada, na garganta da mata, a moça principiava a suspirar,
já de saudades. De tarde, ficava a esperá-lo à porta do rancho: e quando ele
surgia, então ela dava de correr-lhe ao encontro, alegre que
nem uma aleluia. Está-se vendo que vida melhor só no paraíso!
Mas o tempo dos frios
chegou, anunciado desde o começo por umas ventanias bravas que acurvavam o lindo arvoredo dos arredores.
Morreram as rosas do jardim do rancho. Os
céus vestiram-se de cambraia, e a mata de luto. Daí por diante, dia a
dia, caiu geada que foi um despotismo,
consoante o falar
dos caipiras vizinhos.
A Nanica sentia-se
intanguida: o próprio fogo das fogueiras como que já não
esquentava. E como a pousada se erguia à boca de um vale, entre duas montanhas que pouco
distavam uma na outra, o rugir do vento afunilado no vale era mais do que triste, doloroso. Ao
aparecer o sol (que no dizer daqueles caipiras é o capote dos pobres), os dois amantes saíam a
aquecer-se aos raios dele: no terreiro, ficavam
separados, como se
entre ambos se
entendesse um lençol
de água gelada.
E as horas
sucediam-se monótonas.
Uma vez, meado o dia, e na
ausência do José , acercou-se do rancho um guapo moço, que
teve para com
a Nanica a
mais requintada cortesia
que se pode
imaginar. Começou fazendo-lhe um cumprimento rasgado, ao
estacar o cavalo pampa; achou-a depois, cativante; perguntou-lhe, depois,
se aceitava umas
violetas vivas, com
o que ela
muito se admirou,
chegando a inquiri-lo:
− Adonde o senhor mora
ainda há flores que não murcharam?
− Há, respondeu-lhe o guapo
moço: não são tão bonitas como a senhora, mas enfim não têm nada murcho.
− E adonde é que o senhor
mora, ainda que mal lhe pergunte?
− Pergunta bem. Não é
longe, mas também não é perto demais.
A Nanica olhava-o meio de
relance; percebeu que ele era um rico rapaz, porque num animal que encapotava a
todo instante e, sobre encapotar, marchava com a cara virada de uma banda: os seus arreios luziam; suas caçambas
eram de prata; seu bucal, outro tanto; o relho, a mesma coisa! Na garupa do pampa morria
derradeira dobra de uma capa de veludo.
Com pouco apareceu o pajem,
numa esperta mula ferreira, e o patrão meneou a rédea, para se ir ao caminho. Antes, porém, de o fazer,
indagou:
− Se não fosse afoiteza
minha, eu desejaria saber o seu nome.
Ao que ela respondeu:
− Nenhuma. Sou Mariana, sua
criada, por apelido Nanica.
− Criada de Deus , que lhe
dará bom pago.
Despediram-se: e foi só o
que conversaram, naquela ocasião.
Não tardou, entretanto, que
o guapo moço voltasse ao dito rancho, e à mesma hora. E como
a nortada gemia
de contínuo ao
longo do vale,
enregelando-o, a Nanica
ansiou a deliciosa quentura de uma boa casa em
povoada, e que lhe fora oferecida com alta gentileza: um dia, pois, abriu-se.
O José das Perovas por um
bocadinho não enlouquece. Doeu-lhe aquilo tal e qual um golpe
dos mais doídos.
O amor que
tinha era tão
de raiz, que
ali se deixou
ficar uma temporada, no mesmo ninho, calculando que a
Nanica talvez voltasse ainda. Ela, porém, não
voltou nunca mais; o José
fez-se ao largo
afinal: e ao
sair daquele retiro,
onde os ventos,
esbarrando uns nos
outros, zuniam lamentosamente, uma
porção de lágrimas
se lhe foi
derivando pelo rosto a fora.
Mas não
há quem não
saiba que tudo
passa na terra.
A sua dor,
de funda que
era, atenuou-se numa como surdina
de saudades.
Voltou ao pândego viver de
S. Domingos. E nos cateretês, de novo, não havia quem pudesse
gabar-se de levar as lampas ao
José: para sapatear com graça, ele
estava apartado; para rasgar o pinho,
como ele ninguém.
Quando, contudo,
o bulício diminuía
nas varandas das
festas, quando os
parceiros descansavam, o José das
Perovas, a um canto qualquer, encolhia-se que nem um bico-de-latão ao cerrar da noite.
Seguido, acontecia que um
dos folgazões o interpelava:
− Que diacho é lá isso,
José? Você está a modos de jururu.
− Qual nada! Volvia ele ao
outro: estou cansado, isso sim.
− Não está, não é: você o
que tem é cócegas no coranchim por amor da Nanica.
− Juro que não é! Juro!
Juro!
Assim lhe
corria a vida,
até o momento
de se encostar
aos travesseiros. Nesse
momento, ao rezar, ele pedia a Deus perdão de haver jurado falso, e
rogava-lhe:
− Senhor Deus de
misericórdia! Já que esta paixa não me sai de dentro, ao menos fazei que a
Nanica volte! Eu já não posso mais comigo, Senhor Deus de misericórdia!
Fosse pelo que fosse, um
dia ela voltou!
O José
das Perovas por
um bocadinho não
enlouquece. Arrodeava a
ingrata arrependida, meigo nas
mãos, na voz e nos olhos. E como a Nanica desse de chorar, de pura comoção, ele enxugava-lhe as lágrimas,
carinhosíssimamente. Ficou tão possuído de alegria que chegou a resolver:
− Hoje havemos de dançar um
baile às direitas, pois não havemos, meu amor?
− Seja tudo como você
quiser – gorgeou ela.
Mandou-se chamar
o Romão, sanfoneiro
endemoninhado que assistia
pertinho, combinou-se tudo, e o
baile principiou quando a noite principiou.
Lá pelas tantas horas,
ouviu-se um tropel de cavalos na rua, que veio morrer mesmo à porta
do pagode. O
José das Perovas
apareceu a receber
quem quer que
era, ao que
lhe perguntaram do lado de fora:
− Não está aqui uma moça
conhecida por Nanica?
− Está. Para quê? –
interrogou o José.
− Porque eu e mais o
camarada viemos buscá-la.
− Então entrem, entrem.
Logo que
eles entraram, o José das
Perovas tomou dum
refle que tinha,
em cujo manejo era mestre, e ordenou:
− Agora vosmecês hão de mas
é dançar conosco.
E não houve outro jeito. O
guapo moço, xavi que nem um gambá torrado, teve que fazer pé de alferes a noite inteira, e seu
pajem também.
Assim que arraiou o dia, o
José das Perovas falou-lhes:
− Podem-se ir agora, vão-se
e não se lembrem mais de aprontar outra!
Eles não se lembraram até
hoje: e o José e a Nanica vivem felizes e juntinhos, tal e qual um par de vevuías.
Se no meio de uma prosa
alguém acerta de recordar o nome deles, há uma pessoa que se não esquece de dizer:
− Vejam só que força não
tem o primeiro rabicho!
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Nota:
Valdomiro Silveira: "Mucufos" (1894-1905). Versão ortográfica do apógrafo de Carmen Lydia de Souza Dias, in: Alexandre de Oliveira Barbosa: "Edição anotada de Mucufos, coletânea de contos inédita de Valdomiro Silveira", da Universidade de São Paulo, 2007
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