Tive apenas um amigo na infância.
Sinto abrir este conto com a
minha personalidade; e, sem pretensões a humorismo, nem a estilo digressivo,
conheço que a pessoa de um autor inculcando-se na sua obra produz o efeito
desagradável, que o senso estético original de João Paulo nota no quadro em que
o pintor agrupasse também a palheta, o cavalete e os pinceis. O valor da
personalidade pouco é; os antigos compreenderam-na perfeitamente, quando deram
o nome de persona á mascara que o
ator trazia para reforçar a voz. A personalidade que se toca, serve para o
trato da rua; a individualidade, o caráter, revelado na vontade, são imanentes
no livro, são o livro. Antes porém de fechar o parêntesis aí vão algumas linhas
sobre a pessoa do meu único e primeiro amigo, um alter ego, ou fidus Achates, como diriam dois estudantes de
seleta. Não nos demos de repente. Tínhamos o mesmo nome de batismo, fazíamos
anos no mesmo dia, começamos a versejar ao mesmo tempo; a afinidade eletiva
entre nós não provinha destas coincidências, nunca reparamos nelas; era uma amizade
de terror, respeitávamos-nos. Na escola fomos sempre antagonistas; quando
passamos a estudar latim, ficamos surpreendidos ao vermos-nos algemados ao hora,
horæ. Ainda os mesmos desforços, o
mesmo orgulho. Então já nos consultávamos sobre alguma duvida de sintaxe, como
de potencia a potencia. Mais tarde encontramo-nos sobre o mesmo banco a ouvir
as preleções estúpidas de lógica, a lógica que nos havia de tornar maus,
capciosos, ergotistas. Já não nos temíamos, éramos amigos, tínhamos necessidade
um do outro. Depois vieram as confidencias estreitar mais esta afeição. Foi ele
o primeiro a fazê-las. Não sei se era amor, compaixão ou cinismo a primeira
aventura que me contou. Era assim:
«Eu tive uma prima, não sei em
que grão, culpa das subtilezas canônicas. A pobre criança possuía uma morbidez
voluptuosa no olhar, não os tirava de mim. A cor morena dizia tão bem com as
linhas nítidas da fisionomia árabe, que ela sabia animar com um ar doloroso de
uma melancolia expressiva, que se lhe refletia na face! Eu ficara órfão de mãe
e costumara-me a brincar sozinho; ela procurava-me na minha solidão, sentava-se
junto de mim; o seu olhar incomodava-me. Mas tinha medo de fugir-lhe, doía-me
esta indiferença e para disfarçá-la trepava acima das arvores carregadas de frutos
do pomar onde passávamos o verão, e de lá deixava cair aqueles que mais se
douravam com os raios do sol de agosto, os que me expunham a maiores perigos.
Ela aparava-os no regaço com a afabilidade com que se queria associar aos meus
folguedos.
«Afinal teve vergonha de mim;
corava, escondia a face entre as mãos, ficava pensativa e depois fugia-me. Neste
tempo contava eu algumas lições de desenho; os meus arabescos tinham uma
frescura de inocência, uma rudeza que parecia uma criação pura arte medieval.
Eu tinha a monomania de esboçar cabeças. Não sei quem na família, me pediu que
fizesse o retrato dela. Fi-lo. O caso deu-lhe uns longes de semelhança, tive
vergonha da verdade; quando ela me agradeceu com um sorriso tímido, eu rasgava
o papel com a crueldade de uma criança que brinca. Não a tornei a ver naquele
dia, escondera-se a chorar. Não tinha culpa desta frieza brutal; a falta de
carinhos perdidos logo no berço, a verdade desse verso eterno de Virgílio:
Est mihi pater domi et injusta noverca
tornaram-me taciturno, incrédulo
antes de tempo.
Ás vezes obrigavam-me a brincar
com ela. Uma vez fomos todos banhar-nos no Atlântico. A pobre criança também
foi. As marés eram gigantescas; era dia para mim de um orgulho imenso, gostava
que me vissem nadar; mostrava uma superioridade minha. O acaso seguia-me o
desejo. Uma onda envolveu no seu marulho a infeliz Branca; no refluxo levou-a
consigo. Desfaleceu de susto e foi levada pela vaga, como Ofélia na corrente.
Quem sabe se ela no seu coração tecia alguma coroa para mim.
«Abracei-a pela primeira vez,
impelido por uma força interior; sustive-a nos braços, estava fria, pálida.
Quando abriu os olhos teve vergonha de mim; era já o pudor de senhora. Trouxe-a
sem custo para a praia, e continuei em carreiras no dorso da vaga, que se
encapelava. Fora o meu primeiro passo para homem.
«Nesse mesmo dia brincamos,
jogando o anel, um divertimento infantil, de que ainda guardo saudades. Neste
folguedo de crianças o que tem o anel é sentenciado pelos demais a levar beijos
e abraços, ou a dá-los, segundo o capricho. Tinha o anel a filha do feitor que
brincava conosco, Anita, uma rapariga de uma candura estreme. Branca pediu-lhe
em segredo que ao percorrer a roda deixasse cair o anel entre as minhas mãos. Assim
se deu. Um perguntava o que prometiam a quem tivesse o anel. Cada qual se
lembrou de uma prenda inocente e insignificativa; Branca prometeu um beijo e um
abraço muito apertado.
«Eu não devia contar-te mais,
porque me sinto infame! Este beijo perdeu-a para sempre, como o beijo de Paulo
e Francesca di Rimini. Branca foi crescendo, tornou-se formosa á luz de uma
esperança fugitiva, como a flor de um vaso, quando recebe, ao estiolar-se, o
calor efêmero do ultimo raio do sol da tarde. Quando ela me sorriu com
amargura, e corou de sua queda, sorri também por compaixão, iludi-la Que fazer,
se eu era tão novo, inconsciente, e queria divertir-me, gozar o mundo?
«Uma vez tinha eu voltado pela
ante-manhã de uma festa louca. Dormia a sono solto, prostrado pela fadiga,
esgotado da orgia desenfreada. Senti uma mão fria passar-me de leve nas faces,
acordei.
«Era ela! Apareceu desmaiada,
como a vi uma vez ao luar silencioso, com uma cor que lhe realçava a candidez,
e disse-me:
—«Vim ver-te na despedida do
tumulo. Desde que adoeci nunca mais me apareceste. O esquecimento é frio e
pesado como a lajem sepulcral. Eu não queria dizer-te isto, não quero
magoar-te; perdoa. Olha, hoje acordei de um sonho tão lindo! deu-me forças para
levantar-me do leito e vestir-me de branco para vir contá-lo a ti só. Como não
choraria minha mãe que me vela se o soubesse! Não sei se velava, se dormia;
minha alma parecia voar, suspensa numa como cadencia, vaga, quase
imperceptível, confundia-se com ela até perder-se no céu. Acordei de súbito; restava-me
só a ilusão. Olhei em roda; a alampadazinha tornava a solidão pungente,
augusta; pavoroso o silencio do meu quarto. Comecei a lembrar-me de ti, dos
passados tempos; estava já na terra. Foi quando descobri a meu lado uma
aparência angelical, a falar-me de mansinho uma linguagem que eu mal entendia:
que o Senhor o enviara para chamar-me. Eu não pude voar, voar com ele, e sinto
agora que a alma me foge; venho dizer-te adeus.
—E o que lhe respondeste?
—Ele continuou:
«Disse-lhe que os sonhos mentiam
sempre, que eles a matavam.—«Não são os sonhos que me matam, gemeu a
desgraçada, é a realidade, a realidade. Bem o sabes, e esse que tudo vê. As
recordações são para mim como um remorso. Que noites, que vigílias inteiras a
pensar em ti! cada palavra tua, que eu decorava, era um poema de amor e
esperança; ao repeti-las na mente diziam-me quanto a alma ansiava, e mais
ainda, mas enganaram-me sempre. Lembras-te daquela noite? Oh! meu Deus, meu
Deus. Não sabes quanto me fizeste sofrer! Não conheceste a profundidade do
golpe quando o descarregaste! Disseste-me essas palavras só para perder-me. É
impossível que isto te não doa? Quando me apareceste naquela noite era o luar
tão sereno, tudo confidenciava conosco. Estava adormecida quando chegaste.
Depois de me estreitares nos braços e beijares as faces geladas pelo rociar da
noite, porque sorriste de um modo incompreensível? Descobriste-me que não
casavas comigo, que outro havia poluído a minha candura! Era uma blasfêmia
brutal. Deixei-me cair em teus braços, sacrificando-te a virgindade para que a
reconhecesses. Desde essa noite não me tornaste mais a amar. Iludi-te? Porque
assim me fugiste? Uma lagrima só reabilitava-te diante de Deus. É tarde, muito
tarde. Vim só para despedir-me e perdoar-te. Adeus.»
—E tu que lhe respondeste?
«Voltei-me sobre o outro lado, e
continuei a dormir.
—Prossegue.
«Foi um pesadelo atroz aquele
sono. Julgava-me em uma orgia imensa, na hora ominosa do sabbat noturno. Um bando de mulheres volteava reunido em uma corêa
desenvolta, num tripudio infernal, ao redor de um carvalho lascado pelos raios
que se cruzavam a espaços na solidão e escuridade absoluta da noite. Dançavam
como possuídas do mesmo furor que inspirava a corneta de Oberon. Quando eu ia
mais arrebatado pelos requebros voluptuosos, enlaçado a um par ligeiro e
flexível, senti um leve suspiro a meu lado, que se perdeu nos ares. Era como o
segredo de uma magoa que eu bem conhecia. Parei. Adormecera a ler uma balada
dos peregrinos do Rheno contada por Bulwer. Junto a mim descobri uma figura de
mulher linda, etérea; o semblante tinha a serenidade de uma grande agonia que
cauteriza, uma tristeza mais vaga do que a impressão de saudade que a lua
desperta quando se reflete numa lagoa quieta. Era como um serafim quando chora.
Não pude olhá-la; a candura do seu antigo amor exprobrava-me o cinismo. A
viração que ciciava não repetiria tão brandamente o que ela disse:
—«Não sabes como te amo ainda
além da campa! o gelo do sepulcro não pôde apagar o fogo em que os teus olhos
me atrasaram. Esqueci o teu desprezo para perdoar-te. Para que havia ter mais
esse flagicio na eternidade? Que destino, que felicidade a nossa, que regozijo
no céu se não houvesses ludibriado este amor! Nossas almas absorver-se-iam na
essência de um anjo, enlevadas num sonho de harmonia, até despertarmos no
empíreo. Assim precipitaste-me na mansão das penas e sofrimentos, onde o meu
espírito se apura. O amor terreno tenho-o expiado no fogo. Vês este cendal de
alvura transparente? estava quase a tornar-se brilhante de gloria! Pedi a Deus
este momento tão breve para poder agora ver-te; o gozo fugitivo de
contemplar-te, a esperança de te achar triste, cismando em mim com pesar e
saudade, a troco de mais cem anos de novos sofrimentos! Cem anos mais, depois
de te encontrar nos braços de outras descuidado, rindo desvairado numa orgia
dissoluta. Oh, mas eu não sei senão perdoar-lhe.»—E desapareceu-me, continuou
ele, como um meteoro fugaz, quando passa nos céus, e deixa após si um rasto
luminoso. Acordei.
«Em casa ouviam-se gritos,
alaridos, como de um sucesso repentino e funesto. Fui a ver. Disseram-me que
Branca desaparecera. Cheguei a convencer-me da realidade do sonho, que um anjo
a levara consigo. Perguntei debalde. Passou-me pela mente um pressentimento
horrível. Branca costumava ir sentar-se sobre uma rocha que se debruça sobre o
mar, e em cujas furnas as vagas restrugem com um estridor surdo, como o anseio
do ultimo esforço numa luta desigual. Protegida pelo nevoeiro da madrugada,
mais veloz que a ondina da mitologia eslava, a pobre fora saciar os pulmões
ralados da febre lenta que a devorava. Houve quem a visse dependurada na aresta
dos fraguedos, o véu branco que levava flutuar ao vento, como num adeus de
despedida. Ela sentira nesse instante a atração do abismo, lembrou-se daquela
tarde de agosto, em que eu a salvara, trazendo-a com um abraço á vida; quis
morrer com a recordação mais doce que levava do mundo. Precipitou-se. E o mar
murmurava sereno e manso, como a embalar-lhe o seu ultimo sono.
«Comecei então a sentir uma
paixão por ela, depois de morta; se a terra a tivesse escondido, eu a iria
arrancar ao repouso sagrado da sepultura, beijá-la, animá-la com o fogo do meu
delírio, despedaçá-la nestes braços convulsos, e cair também inânime. Queria
sentir bem junto do peito o contato gélido de um corpo que eu tantas vezes
apertei, das faces que eu devorava, quando ela se dava aos caprichos da minha
vertigem. Havia neste amor um pensamento de alucinado, um tanto de selvagem, de
monstruoso; impelia-me uma inquietação continua, sentia em mim um como ranger
de puas do remorso, a voz que interroga Caim. Fugia, não queria consolações. Eu
ia sentar-me também na rocha escarpada, a ver o mar, procurando a serenidade
que me inspirava a contemplação do sepulcro da minha amada. Vinha visitá-lo, á
busca desse alívio de que fala o poeta do Oriente.
«Eram decorridos já três dias,
não se vira mais o corpo de Branca; o mar queria-o para si, mas eu tinha uma
vontade fervente, absoluta, o desespero de torná-la ver linda, roxa, nua, desfigurada.
Era o mais que podia sofrer. Ia a maré na vazante, no fim da tarde, as ondas
gemiam brandamente no areal deserto, as virações da noite sopravam frias,
úmidas das bandas do poente. Quando desci da rocha escarpada, encontrei
inesperadamente o corpo de Branca estendido na área. Era uma criança
descuidada, adormecida; a onda que a tinha despido para namorar-lhe a alvura do
corpo, viera depositá-la na praia. Ia a precipitar-me para ela, uni-la a mim no
frenesi dessa loucura. Tive medo! recuei sem encará-la. Temi profaná-la com a
vista; estava quase nua, de costas, com os olhos no céu, como pedindo á noite
que viesse recatá-la no seu manto de
trevas. Quando tornei junto dela com o lençol para a envolver, senti uma ânsia
de passamento, a lucidez de quem entrevê a eternidade: conheci que o cadáver de
Branca se voltara de bruços, furtando á vista profanadora o verticelo pudibundo
da flor que eu fizera pender sobre o caule e cair emurchecida. O inexplicável
deixou-me um terror que ainda me dura...»
Não tive animo para lhe pedir que
continuasse.
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Nota:
Teófilo Braga: "Contos Fantásticos" (1865)
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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