SUA ALTEZA IMPERIAL JAN-GHOTHE
CONTOS ARGELINOS
Abu-Al-Dhudut gozava placidamente
o trono do país de AlPatak, que ele tinha usurpado da maneira mais
inconcebível.
Sabia que era impopular, que o
povo ridicularizava com canções satíricas a sua pessoa desgraciosa e proclamava
também os seus méritos intelectuais com anedotas hilariantes.
Isto, porém, não o aborrecia,
porque, tendo a mesa farta, um harém sortido e sobretudo honras das tropas, dos
caids e presentes dos príncipes estrangeiros, ele se satisfazia e se julgava um
grande sultão igual àqueles que ilustraram o trono de Al-Patak.
De quando em quando, tinha
desejos de se fazer notável e tomava alvitres singulares. Certa vez quis ser
protetor das letras e fundou uma academia no seu palácio. Nem de propósito:
Dhudut juntou nela tudo quanto foi mau rimador na cidade.
Em outra, entendeu em dar casas
baratas a toda gente e gastou na construção delas tanto dinheiro que foi
preciso lançar pesados impostos para que o tesouro não ficasse vazio. Tal cousa
veio redundar no seguinte: o artífice pagava mais barata a casa, mas comprava
pelo dobro a passagem e os alimentos. Assim mesmo, os engrossadores
proclamaram-no él-mézuar, que quer dizer, segundo alguns — o pai dos operários.
Para uma única cousa ele tinha
jeito: era para criar aduladores. Calcularam os sábios que cada adulador
custava, uns pelos outros, ao tesouro público cinco libras por dia e que, com
eles, Abu-Al-Dhudut gastou no seu curto reinado cerca de vinte mil contos na
nossa moeda.
Impopular e odiado, por causa de
suas vexações e crueldades, quis ter dedicações; e, para isso, abriu as portas
das prisões aos criminosos condenados e não prendia os que eram apanhados em
flagrante.
A capital do Estado ficou assim
entregue aos malfeitores que, não contentes com a espórtula que recebiam do
chefe de polícia — kaïa — extorquiam, sob ameaça, dinheiro aos mercadores.
Para os cargos do governo, para
os principados vassalos, ele nomeava parentes obscuros e sem saber, chegando
até a fazer ulemá do Beit-El-Mal, juiz das heranças, um seu primo que não sabia
ler o Corão.
O povo de Al-Patak é manso e
ordeiro, por isso ele vivia sossegado, tramando violências com o seu vizir
Pkent-Phin', um homem cruel e violento, que fora na sua mocidade criador e
castrador de cavalos.
Não contava, portanto, com nenhum
levante do povo e passava a vida na mesa e no harém, em passeio e festas, sem
cuidados nem incômodos.
Os seus parentes também levavam a
vida da mesma forma, tanto mais que haviam ficado ricos com as riquezas do
Estado e com os presentes que recebiam em troca de proteção a este ou àquele.
Um dia veio, porém, que, não se
sabe como, o povo se levantou, levou a tropa de vencida, varou as muralhas que
cercavam o palácio de Abu-AI-Dhudut e tratou de pô-lo na rua.
Embora o sultão tivesse ficado
com muito medo, não quis logo sair pelo caminho escuso que lhe ensinava haver o
seu fiel eunuco Brederodes. Quis ainda carregar algumas riquezas e correu aos
subterrâneos do palácio.
Esperava encontrar lá cequins de
ouro, aos sacos; diamantes, pérolas, rubis, topázios, safiras, barras de ouro,
enfim, riquezas sem número que haviam sido amontoadas pela longa geração de
vinte sultões.
Desceu escadas secretas, sempre
acompanhado do seu fiel Brederodes, enquanto o povo ululava diante das portas
do palácio e as mulheres do harém ganiam e soltavam gritos estridentes, os
quais não lhe davam nenhuma pena. Descia
com febre e obsedado.
Chegado que foi ao tesouro, o
guarda veio abrir-lhe a porta chapeada, couraçada e lenta de mover nos gonzos.
O sultão logo perguntou:
— Onde estão os diamantes,
escravo?
O guarda respondeu:
— Saberá Vossa Majestade que o
Vosso sublime irmão, sua Alteza Imperial Jan-Ghothe, levou-os todos?
— E os cequins? e a prata? e as
pedrarias?
O guarda, com todo o respeito e
muita calma, respondeu:
— Saberá Vossa Majestade que o
vosso sublime irmão, sua Alteza Imperial Jan-Ghothe, levou tudo.
Abu-AI-Dhudut quase desmaiou; e,
chorando, disse para o eunuco:
— Brederodes, como sou
desgraçado! Não ficou nada para mim!
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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