ELKAZENADJI
CONTOS ARGELINOS
O reinado de Abu-Al-Dhudut foi
curto, mas cheio de episódios interessantes que o cronista argelino cide
Mohâmmed Ben-Alá conta do modo mais ingênuo ao mesmo tempo florido, capaz de
fazer o delicioso encanto dos mais habituados à literatura árabe.
A tradução que vamos dando, além
da resumida, fana muito o viço da luxuriante floração do original; mas, se
tempo houver e editor, havemos de dar uma completa, respeitando o mais possível
as palavras do autor argelino, assim como o seu rendilhado pensamento.
Contemos.
Escolheu Abu-Al-Dhudut, nos
últimos dias de seu reinado, para ser o seu kazenadji (ministro dos negócios
internos do reino), um levantino de nome cide Ércu Ben-Lânod muito estimado
pelas suas letras e sabido nelas como o mais douto ulemá.
Cide Ércu Ben-Lânod tinha vivido
muito tempo em Marselha, como cônsul de Abu-Al-Dhudut; e, fosse pela sua origem
infiel, fosse pelo tempo que levou naquela cidade de França, o certo é que
contraiu todos os vícios dos cristãos, especialmente dos francos. Feito kazenadji, ganhando muitos presentes e
dispondo do tesouro do sultão, era de esperar que cide Ercu Ben-Lânod
aumentasse as mulheres do seu harém e vivesse sabiamente entre elas, como
mandam o Profeta e os livros sagrados. Não tinha em grande conta os preceitos
do Corão e, apesar dos conselhos de um dos seus sogros, cide Glei Ben-Sério,
continuou nos seus sacrílegos hábitos de passar as noites fora de sua casa, em
visitas amaldiçoadas a certos lugares da feitoria francesa que ficava perto da
capital de Al-Patak. Não contente com ir ele a tão daninhos lugares, seduziu
muitos bons muçulmanos a fazer o mesmo. Um destes era o kaïa, Pessh Ben-Hoa, que vem a ser entre nós o chefe da polícia
militar. Não deixava este funcionário de, todas as noites, acompanhar cide Ércu
Ben-Lânod nas suas profanações às regras e preceitos do Profeta.
Ambos, chegados que eram à
feitoria, logo se encaminhavam para uma grande casa de uma velha francesa, de
nome Susah-Hana, a que chamavam — Cidade das Flores; e entregavam-se a todos os
pecados que a religião proíbe.
Deixavam-se arrastar pelo vício
de beber licores espirituosos, coisa que mais depressa faz com que entreguemos
as nossas almas aos espíritos malfazejos; e cercavam-se de mulheres infiéis,
mediante alguns cequins de ouro, com as quais tinham propósitos mais próprios
de se os ter com as verdadeiras esposas.
A religião do Profeta dá a tal
respeito tão grande liberdade que não se podia acreditar que aqueles fiéis
tivessem prazer em fazer semelhante cousa, fora da comunhão dos crentes.
Mas cide Ercu Ben-Lânod tinha tomado tal gosto por aquele vinho dos
francos que borbulha e ferve como os gases danados das entranhas da terra, que
não havia meio de deixar de ir uma noite à casa da velha Susah-Hana.
O kaïa (o chefe da polícia militar) também se havia habituado e não
deixava de acompanhar o kazenadji.
Certa noite, em que eles tinham
bebido bem doze odres do tal vinho, estando, como de costume, na Cidade das
Flores, cide Ercu Ben-Lânod deu em
altercar com o seu companheiro:
— Tua tropa não presta pra nada!
Os franceses sim é que têm tropa.
O kaïa, que era um chefe orgulhoso e patriota, ficou indignado com o despropósito
do ministro e respondeu:
— Se tu queres ver, cide Ercu Ben-Lânod, vou agora mesmo
formá-la e cercar o palácio de Abu-AI-Dhudut.
— O kaïa, meio trôpego e balançando-se que nem uma fragata franca no porto
de Argel, levantou-se, veio até à porta, chamou um spahi (soldado de cavalaria) e deu as suas ordens.
Os dois ficaram dormindo e a
força do kaïa cercou o casbá (palácio
do sultão), como lhe tinha sido ordenado.
Foi um espanto geral e as tropas
do agha (ministro da Guerra) acudiram; houve combate, morrendo de parte a parte
cerca de dois mil homens.
Cide Ércu Ben-Lânod e o kaïa
Sirdar Pessh Ben-Hoa despertaram na
tarde seguinte e nunca a cidade pôde saber por que motivo as tropas do último
tinham cercado o casbá e guarnecido as estradas que iam ter a ele.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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