O CAÇADOR DOMÉSTICO
O Simões era descendente de uma
famosa família dos Feitais, do estado do Rio, de que o 13 de maio arrebatou
mais de mil escravos. Uma verdadeira
fortuna, porque escravo, naquelas épocas, apesar da agitação abolicionista, era
mercadoria valorizada. Valia bem um conto de réis a cabeça, portanto os tais de
Feitais perderam cerca ou mais de mil contos.
De resto, era mercadoria que não
precisava muitos cuidados. Antes da lei do Ventre Livre, a sua multiplicação
ficava aos cuidados dos senhoras e depois... também.
Esses Feitais eram célebre pelo
sadio tratamento de gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela
sua teimosia escravagista.
Se não eram requintadamente
cruéis para com os seus cativos, tinham, em oposição, um horror extraordinário
à carta de alforria.
Não davam uma, fosse por que
pretexto fosse.
Conta-se até que o velho Feital,
tendo um escravo mais claro que mostrava aptidões para os estudos, dera-lhe
professores e o matriculara na Faculdade de Medicina.
Quando o rapaz ia terminar o
curso, retirara-o dela, trouxera-o para a fazenda, da qual o fizera médico, mas
nunca lhe dera carta de liberdade, embora o tratasse como homem livre e o
fizesse tratar assim por todos.
Simões vinha dessa gente que
empobrecera de uma hora para a outra.
Muito tapado, não soubera
aproveitar as relações de família, para formar-se em qualquer cousa e arranjar
boas sinecuras, entre as quais a de deputado, para a qual estava a calhar, pois
de família do partido escravagista-conservador, tinha o mais lindo estofo para
ser um republicano do mais puro quilate brasileiro.
Fez-se burocrata; e, logo que os
vencimentos deram para a cousa, casou com uma Magalhães Borromeu, de Santa
Maria Madalena, cuja família também se havia arruinado com a Abolição.
Na repartição, o Simões não se
fez de trouxa. Aproveitou as relações e amizades de família, para promoções,
preterindo toda a gente.
Quando chegou, aí, por chefe de
seção, lembrou-se que descendia de gente de lavoura e mudou-se para os
subúrbios, onde teria alguma idéia da
roça, onde nascera.
Os restos de matas que há por
aquelas paragens deram-lhe lembranças saudosas da sua mocidade nas fazendas de
seus tios. Lembrou-se que caçava; lembrou-se da sua matilha para caititus e
pacas; e deu em criar cachorros que adestrava para a caça, como se tivesse de
fazer alguma.
No lugar em que morava, só havia
uma espécie de caça rasteira: eram preás porém nos capinzais; mas, Simões, que
era da nobre família dos Feitais de Pati e adjacências, não podia entregar-se a
torneio tão vagabundo.
Como havia de empregar a sua
gloriosa matilha?
À sua perversidade inata
acudiu-lhe logo um alvitre: caçar os frangos e outros galináceos da vizinhança
que, fortuitamente, lhe iam ter no quintal.
Era ver um frango de qualquer
vizinho, imediatamente estumava a cachorrada que estraçalhava em três tempos o
bicharoco.
Os vizinhos, acostumados com os
pacatos moradores antigos, estranharam a maldade de semelhante imbecil que se
fazia mudo às reclamações da pobre gente que lhe morava em torno.
Cansados com as proezas do
caçador doméstico de frangos e patos, resolveram pôr termo a elas.
Trataram de mal-assombrar a casa.
Contrataram um moleque jeitoso que se metia no forro da casa, à noite, e lá
arrastava correntes.
Simões lembrou-se dos escravos
dos seus parentes Feitais e teve remorsos. Um dia assustou-se tanto que correu
espavorido para o quintal, alta noite,
em trajes menores, com o falar transtornado. Os seus molossos não o conheceram
e o puseram no estado em que punham os incautos frangos da vizinhança: estraçalharam-no.
Tal foi o fim de um dos últimos
rebentos dos poderosos Feitais de Barra Mansa.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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