sábado, 21 de setembro de 2013

Lima Barreto: "Boa Medida"

BOA MEDIDA
CONTOS ARGELINOS

O faustoso sultão de Kambalu, Abbas I, que tinha por avós, em linha direta, Manuel José Fernandes, de Trás-os-Montes, reino de Portugal, e Japira, índia de nação potiguara, a qual nação habitou antigamente o império do Brasil e desapareceu, à vista da penúria do seu povo e da fome e da peste que o dizimavam, resolveu certo dia reunir em conclave as pessoas mais gradas do reino, fossem elas de que credo fossem, professassem as teorias que professassem, a fim de se aconselhar e resolver a situação. Vieram um bispo, um mago oriental, um sábio doutor em medicina, uma cartomante, um jurista, um engenheiro e um brâmane.

Abbas I assim falou, abrindo a sessão:

— Meus senhoras: todos sabeis o motivo da nossa reunião. É a dor e a piedade pelo meu querido povo que me movem a pedir-vos conselho para lhe dar lenitivo. Falai com franqueza que vos ouvirei com prazer. Falai!

O bispo levantou-se, fez o sinal-da-cruz, orou durante alguns minutos , contando as contas do rosário e começou:

—  “Ad victum quae flagitat usus —      Omnia jam mortalibus esse parata”. Precisamos de igrejas, conventos, recolhimentos — Majestade!

O Mago — Não concordo. A luz é tudo, de luz é feito o mundo e Deus. Precisamos mais luz elétrica.
O Doutor — Isto tudo é delírio; é pura paranóia, temperada com psicastenia, frenastenia. Na etiologia da peste há duas fases: primeira, a do aparecimento, dúbio, auroral, das auroras claras de maio, que é imperceptível; depois: manifestação ostensiva, horrível, de um belo horrível que só os médicos conhecem. Keats diz: "Our songs are... 
O Engenheiro — Que diabo é isto? Uma encampação é mais útil...
A Cartomante — Vou deitar as cartas...
O Jurista — Cuidado com a polícia! O Código Penal, no seu livro V, art. 1824, parágrafo...
O Brâmane — Tudo o que vem de mim, o boi, a vaca...
Abbas I — Ora bolas! Vocês não me aconselham cousa alguma... São uns tagarelas aborrecidos. Vou decidir por mim; vou construir um palácio magnífico. Vão-se embora, e já!

Abbas I cumpriu a sua palavra. Cobriu o reino de impostos; mandou vir jaspe e ouro e mármore e pórfiro; contratou no estrangeiro hábeis arquitetos e operários e construiu o palácio, para enriquecimento de seu povo e extinção das moléstias que o dizimavam.

Acabada a construção, meteu-se nele. Daí a dias, porém, nem mais um criado tinha para servi-lo. Toda a gente do país havia morrido de fome e de moléstia; e ele veio também a morrer de fome porque não havia mais quem plantasse, quem colhesse, quem criasse, etc., etc.


---
Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)

Nenhum comentário:

Postar um comentário