sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "O Poldro Picaço"

O POLDRO PICAÇO
A Cláudio S. Ganns  

As vaquejadas estavam a terminar. No curral da fazenda apressava-se a ferra duma última  partida de bezerrotes trazidos da Boca da Mata, gado espantadiço e artificioso, que tanta  atrapalhação dera aos campeiros para reunir e trazer arrebanhado à porteira. De envolta, vieram  também daquelas bandas uns poldros cardões, sangue azougado, crescidos às soltas por ali  mesmo, em furados de papuã e jaraguá, à lei da natureza.

Como a neta do patrão se encantasse da estampa escorreita dum pingo picaço, estrelo de  testa e olho em brasa – que só fizera até então fitar orelhas e coçar-se aos varais do cercado ao  mínimo rumor estranho – patrão interpelou-me:

– Ó Antônio, olha que a Guiomar se engraçou do picaço; vamos ver se mo pões manso  como um sendeiro velho, para o silhão da menina.

– O patrão mandando, hoje mesmo tiro as tretas do bicho.

– É o que quero ver.

Eu era nesse tempo o peão mais afiançado da fazenda. Nas redondezas destes Guaiais – e  o meu companheiro fez um gesto largo, abarcando céu e terras com a mão – não havia quem  fosse mais maneiro de juntas e seguro nos arreios, que este seu criado. Não é por querer gabar,  mas no lombo dum malcriado, estribos bem justos, o que prometia, fazia mesmo!

Ainda duma feita, quando o patrão andava ajuntando nas invernadas umas tropas que  fomos depois vender ao Mato Grosso, muita gente pasmou para as tropelias puxadas à sustância  que fui cometendo com quanto burro brabo e redomão aparecia nos lotes.

– Criação da Boca da Mata tem fama, não é caçoada – avisou um vaqueiro velho  experimentado. – Se não fizer finca-pé nos loros e pressão dos joelhos, está por terra, tão certo  como esse sol que nos alumia.

– Não meta medo ao rapaz, tio Pedro – chacoteou outro peão do sítio, o Mateus; e riu,  sustentado na galhofa por um cabra arribadiço, bela peitaça, que também trazia fama de  montador, segundo ouvira dizer, lá dos sertões donde viera.

– Êh, gente! – defendeu alguém. – Tanto foguetório e pabulagem para aquele picaço; o  Antônio é cabra matreiro, aposto o meu ponche-pala contra a tua franqueira, Mateus, como em  menos duma hora o poldro é matungo de longa serventia.

Não conversei. Amofinava minhas prosápias de montador aquela pacholice da  camaradagem. Levantei-me da roda em que estava, no puxado dos bezerros; passei a perna por  cima da cerca e endireitei para o paiol de milho, onde tinha os arreios. O dia começava a esfriar,  a sombra das gameleiras alongava no terreiro.

Logo no princípio, deu pancas o animal para deitar-lhe em riba os baixeiros da cutuca.  Com uma laçada mestra, amarrei-o à argola do moirão; mesmo assim, preciso foi uma faixa  escura na vista, peia de pernas e torniquete nas orelhas, bem torcido pelo cabra da peitaça, para  que conseguisse apertar a barrigueira e abotoar freio de barbicacho sobre o pêlo virgem do  danado.

Ele ia aceitando os arreios desconfiado, a fugir de corpo, sonegando, tremelicante a  beiçama, a mostrar uma dentuça mui alva de dous anos e meio, contido nos jarretes e a mão de  ferro de todo o pessoal interessado naquele feito.

Quando ia a trepar, chilenas bem arrochadas no calcanhar e perneiras com guarda-peito  para livrar das garrancheiras e espinhedo por onde o acaso levasse, senti, vez primeira no  arriscado ofício, um estremeção desagradável pelo fio das costas e o coração bacorejando. Não  duvidei, porém, em afastar o pessoal, afrouxar os atilhos, bambear a laçada.

Ao momento que o picaço hesitava ainda ante a súbita claridade que se fizera, botei-me  acima da cutuca.

Ah, meu patrão! Só tive tempo de gritar:

– Abram a porteira!

O endemoninhado recuava sobre os cascos, refugando, encolhendo a lombeira, como que  a experimentar, admirado, o estorvo que trazia por cima. Súbito arremeteu.

Nem tempo tiveram de tirar os últimos paus. Passou por cima da porteira num salto breve,  nervoso, ganhou o campo aberto, e espalhou.

Que bicho, meu menino! Sete vezes fui ao céu e sete desci às profundas dos infernos!  Mas agüentei firme. Cabriolou aos pinotes, no estradão; andou de banda, por instantes,  arreliado, procurando morder; atirou dous pares de couces para o ar, e como se fosse só então  principiar, disparou noutro arremesso.

Engolimos num trago aquele chão.

No valado das divisas, a distância era respeitada; e ele, sem detença, precipitou-se num  arrancão. Cuidei ficar daquela feita no fundo do barranco, estive mesmo, vai não vai, por  abandonar as estribeiras. Ganhamos o outro lado. Atravessamos num relance o sarobal que lá  havia e ensaiei, atendo-me ao governo, encaminhá-lo para o pontilhão e voltar ao terreiro, onde  todo o mundo andava atarantado.

Mais por inclinação própria, que obedecendo às rédeas, ele desembestou por ali e veio  num fechar d'olhos, aos pulos e aos trancos, jogando de popa, esbarrar ao pé das cercas,  pinoteando.

Não lhe conto nada, meu patrão, o certo é que não sei por que artes e manhas do tinhoso,  quando supunha já ser ocasião de sujigá-lo nas esporas e tacadas de rabo-de-tatu aplicadas a  preceito, o malvado, num solavanco, empinando sobre as patas traseiras, acachapou-se no  terreiro, sacudindo-me com violência do lombo.

Agüentaria firme ainda, não fora a traição da barrigueira e sobrechincha, que  arrebentaram no esforço...

A sela fugiu sob os joelhos, perdi a firmeza e pareceu-me que mergulhava de ponta  numas raízes da gameleira que assombreava o terreno.

Quando dei acordo, estava estirado no banco da varanda, sobre o joelho da menina, que  me banhava a cabeça num lenço ensopado, todo besuntado da sangueira que me saía duma  brecha funda do cocuruto, esta mesma cicatriz que aí vê...

(Tirou fora o chapelão de feltro, d'abas largas, acampado à banda pela presilha dum  botão, desengonçou-se no arção do selim, e, afastando o cabelo corredio, apontou.)

O sangue estancado, ela atou-me o lenço à ferida, embebeu-o de bálsamo e esteve muito  tempo a olhar, compadecida...

Mais tarde, quando quis restituir aquele pedacinho rendado de batista – que trazia um G  arabescado tão perfeito, bordadura de seus dedos, recusou.

Trago-o aqui desde então, sobre o peito, bem dobradinho, como um breve.

Amofinado, abandonei aquele ofício de peão, trocando-o por este de condutor, mais  pacífico e sossegado, como me convinha. Também, desde o acontecido, senti-me mal, umas  tonturas, turvação na vista, sei lá... O certo é que, sarado, nunca mais tornei à fazenda.

Uma vez, viajando, quis queimar essa prenda. Estive muito tempo a olhar, meneando,  indeciso, mas não tive coragem. Que fazer, cousas do coração...

E como visse, na encosta da várzea por onde trilhávamos agora, uns coqueiros de indaiá  em cujas palmas salmodiavam, àquela hora do entardecer, as inhumas do sertão, improvisou  alto, alheado:

Passo'-preto cantador
Que canta no buriti,
Vai dizer ao meu amor
Que de pesares parti...

A noite ia avolumando do fundo das baixadas. O crescente transmontava, muito branco,  alagando os escampados de sua grande luz merencória.

– E o poldro picaço?

– No dia seguinte, tentou também o cabra da peitaça quebrar-lhe as tretas, não obstante a  proibição da patroa, que não queria ver mais sangueiras em casa; foi mais caipora, na força do  tombo ficou com o braço na tipóia, partido em dois lugares. O Mateus desistiu por sua vez da  experiência. Também o bicho, atido preso, desandou de emagrecer, rejeitando a ração.  Toparam-no uma daquelas manhãs arrebentado no curral, onde lhe andavam a curar com  salmoura a esporeação do vazio.

– A patroazinha...

– Essa, creio, andou uns tempos entristecida com o sucedido; casou, segundo ouvi, há  cousa de ano e meio, com um moço da vizinhança.

(Acendeu o cigarro, desengonçou-se de novo no selim, e até o pouso próximo não lhe  arranquei mais uma única palavra.)

1914

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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)   

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