O POLDRO PICAÇO
A Cláudio S. Ganns
As vaquejadas estavam a terminar.
No curral da fazenda apressava-se a ferra duma última partida de bezerrotes trazidos da Boca da
Mata, gado espantadiço e artificioso, que tanta atrapalhação dera aos campeiros para reunir e
trazer arrebanhado à porteira. De envolta, vieram também daquelas bandas uns poldros cardões,
sangue azougado, crescidos às soltas por ali mesmo, em furados de papuã e jaraguá, à lei da
natureza.
Como a neta do patrão se
encantasse da estampa escorreita dum pingo picaço, estrelo de testa e olho em brasa – que só fizera até
então fitar orelhas e coçar-se aos varais do cercado ao mínimo rumor estranho – patrão interpelou-me:
– Ó Antônio, olha que a Guiomar
se engraçou do picaço; vamos ver se mo pões manso como um sendeiro velho, para o silhão da
menina.
– O patrão mandando, hoje mesmo
tiro as tretas do bicho.
– É o que quero ver.
Eu era nesse tempo o peão mais
afiançado da fazenda. Nas redondezas destes Guaiais – e o meu companheiro fez um gesto largo,
abarcando céu e terras com a mão – não havia quem fosse mais maneiro de juntas e seguro nos
arreios, que este seu criado. Não é por querer gabar, mas no lombo dum malcriado, estribos bem
justos, o que prometia, fazia mesmo!
Ainda duma feita, quando o patrão
andava ajuntando nas invernadas umas tropas que fomos depois vender ao Mato Grosso, muita
gente pasmou para as tropelias puxadas à sustância que fui cometendo com quanto burro brabo e
redomão aparecia nos lotes.
– Criação da Boca da Mata tem
fama, não é caçoada – avisou um vaqueiro velho experimentado. – Se não fizer finca-pé nos
loros e pressão dos joelhos, está por terra, tão certo como esse sol que nos alumia.
– Não meta medo ao rapaz, tio
Pedro – chacoteou outro peão do sítio, o Mateus; e riu, sustentado na galhofa por um cabra arribadiço,
bela peitaça, que também trazia fama de montador,
segundo ouvira dizer, lá dos sertões donde viera.
– Êh, gente! – defendeu alguém. –
Tanto foguetório e pabulagem para aquele picaço; o Antônio é cabra matreiro, aposto o meu
ponche-pala contra a tua franqueira, Mateus, como em menos duma hora o poldro é matungo de longa
serventia.
Não conversei. Amofinava minhas
prosápias de montador aquela pacholice da camaradagem. Levantei-me da roda em que
estava, no puxado dos bezerros; passei a perna por cima da cerca e endireitei para o paiol de
milho, onde tinha os arreios. O dia começava a esfriar, a sombra das gameleiras alongava no terreiro.
Logo no princípio, deu pancas o
animal para deitar-lhe em riba os baixeiros da cutuca. Com uma laçada mestra, amarrei-o à argola do
moirão; mesmo assim, preciso foi uma faixa escura na vista, peia de pernas e torniquete
nas orelhas, bem torcido pelo cabra da peitaça, para que conseguisse apertar a barrigueira e
abotoar freio de barbicacho sobre o pêlo virgem do danado.
Ele ia aceitando os arreios
desconfiado, a fugir de corpo, sonegando, tremelicante a beiçama, a mostrar uma dentuça mui alva de
dous anos e meio, contido nos jarretes e a mão de ferro de todo o pessoal interessado naquele
feito.
Quando ia a trepar, chilenas bem
arrochadas no calcanhar e perneiras com guarda-peito para livrar das garrancheiras e espinhedo por
onde o acaso levasse, senti, vez primeira no arriscado ofício, um estremeção desagradável
pelo fio das costas e o coração bacorejando. Não duvidei, porém, em afastar o pessoal, afrouxar
os atilhos, bambear a laçada.
Ao momento que o picaço hesitava
ainda ante a súbita claridade que se fizera, botei-me acima da cutuca.
Ah, meu patrão! Só tive tempo de
gritar:
– Abram a porteira!
O endemoninhado recuava sobre os
cascos, refugando, encolhendo a lombeira, como que a experimentar, admirado, o estorvo que trazia
por cima. Súbito arremeteu.
Nem tempo tiveram de tirar os
últimos paus. Passou por cima da porteira num salto breve, nervoso, ganhou o campo aberto, e espalhou.
Que bicho, meu menino! Sete vezes
fui ao céu e sete desci às profundas dos infernos! Mas agüentei firme. Cabriolou aos pinotes, no
estradão; andou de banda, por instantes, arreliado, procurando morder; atirou dous
pares de couces para o ar, e como se fosse só então principiar, disparou noutro arremesso.
Engolimos num trago aquele chão.
No valado das divisas, a
distância era respeitada; e ele, sem detença, precipitou-se num arrancão. Cuidei ficar daquela feita no fundo
do barranco, estive mesmo, vai não vai, por abandonar as estribeiras. Ganhamos o outro
lado. Atravessamos num relance o sarobal que lá havia e ensaiei, atendo-me ao governo,
encaminhá-lo para o pontilhão e voltar ao terreiro, onde todo o mundo andava atarantado.
Mais por inclinação própria, que
obedecendo às rédeas, ele desembestou por ali e veio num fechar d'olhos, aos pulos e aos trancos,
jogando de popa, esbarrar ao pé das cercas, pinoteando.
Não lhe conto nada, meu patrão, o
certo é que não sei por que artes e manhas do tinhoso, quando supunha já ser ocasião de sujigá-lo nas
esporas e tacadas de rabo-de-tatu aplicadas a preceito, o malvado, num solavanco, empinando
sobre as patas traseiras, acachapou-se no terreiro, sacudindo-me com violência do lombo.
Agüentaria firme ainda, não fora
a traição da barrigueira e sobrechincha, que arrebentaram no esforço...
A sela fugiu sob os joelhos,
perdi a firmeza e pareceu-me que mergulhava de ponta numas raízes da gameleira que assombreava o
terreno.
Quando dei acordo, estava
estirado no banco da varanda, sobre o joelho da menina, que me banhava a cabeça num lenço ensopado, todo
besuntado da sangueira que me saía duma brecha
funda do cocuruto, esta mesma cicatriz que aí vê...
(Tirou fora o chapelão de feltro,
d'abas largas, acampado à banda pela presilha dum botão, desengonçou-se no arção do selim, e,
afastando o cabelo corredio, apontou.)
O sangue estancado, ela atou-me o
lenço à ferida, embebeu-o de bálsamo e esteve muito tempo a olhar, compadecida...
Mais tarde, quando quis restituir
aquele pedacinho rendado de batista – que trazia um G arabescado tão perfeito, bordadura de seus
dedos, recusou.
Trago-o aqui desde então, sobre o
peito, bem dobradinho, como um breve.
Amofinado, abandonei aquele ofício
de peão, trocando-o por este de condutor, mais pacífico e sossegado, como me convinha.
Também, desde o acontecido, senti-me mal, umas tonturas, turvação na vista, sei lá... O certo
é que, sarado, nunca mais tornei à fazenda.
Uma vez, viajando, quis queimar
essa prenda. Estive muito tempo a olhar, meneando, indeciso, mas não tive coragem. Que fazer,
cousas do coração...
E como visse, na encosta da
várzea por onde trilhávamos agora, uns coqueiros de indaiá em cujas palmas salmodiavam, àquela hora do
entardecer, as inhumas do sertão, improvisou alto, alheado:
Passo'-preto cantador
Que canta no buriti,
Vai dizer ao meu amor
Que de pesares parti...
A noite ia avolumando do fundo
das baixadas. O crescente transmontava, muito branco, alagando os escampados de sua grande luz
merencória.
– E o poldro picaço?
– No dia seguinte, tentou também
o cabra da peitaça quebrar-lhe as tretas, não obstante a proibição da patroa, que não queria ver mais
sangueiras em casa; foi mais caipora, na força do tombo ficou com o braço na tipóia, partido em
dois lugares. O Mateus desistiu por sua vez da experiência. Também o bicho, atido preso,
desandou de emagrecer, rejeitando a ração. Toparam-no uma daquelas manhãs arrebentado no
curral, onde lhe andavam a curar com salmoura
a esporeação do vazio.
– A patroazinha...
– Essa, creio, andou uns tempos
entristecida com o sucedido; casou, segundo ouvi, há cousa de ano e meio, com um moço da
vizinhança.
(Acendeu o cigarro,
desengonçou-se de novo no selim, e até o pouso próximo não lhe arranquei mais uma única palavra.)
1914
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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