NINHO DE PERIQUITOS
Abrandando a canícula pelo virar
da tarde, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola,
após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas
colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
Era pelo domingo, vésperas quase
da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já
pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
Enquanto amolava o ferro, no
propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão
rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno: não se esquecesse, o
papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas
de malícia, num cupim velho do pé da mariapreta. Não esquecesse...
O roceiro andou lá pelos fundos
da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha d'arroz, mais uma vez avaliando com a
vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos
e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do
pedido do pequeno. Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.
Mas aquele dia assentava o Janjão
a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
O caipira pousou a braçada de
lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas
de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão –
nesses dias sem pinga d'água – galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta,
que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, toda tostada desde a época
da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.
Ali mesmo, na bifurcação do
tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o
nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.
O lavrador alçou com cautela a
destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos. Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que
uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
E, enquanto olhava admirado, uma
cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro,
fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
O matuto sentiu uma frialdade
mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.
Era uma urutu, a terrível urutu
do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos possuíam salvação.
Perdido... completamente
perdido...
O réptil, mostrando a língua
bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que
viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou
da bainha o largo jacaré inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
Então, sem vacilar, num movimento
ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe,
cerce quase à juntura do pulso.
E enrolando o punho mutilado na
camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e
altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas
assassina, mas perfidamente traiçoeira...
1915
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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