À BEIRA DO POUSO
A Mário de Alencar
Contavam casos. Histórias
deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de inverno, envolta em brumas, lá do céu triste e
carregado, insuflava perfeita verossimilhança e vida animada.
Pela maioria, contos lúgubres e
sanguinolentos, eivados de superstições e terrores, passados sob o clarão embaçado daquela mesma
lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio aspérrimo das solidões goianas.
Acocorados à sertaneja sob a copa
desfolhada do pouso – um jatobá gigantesco – aquentavam fogo, a petiscar baforadas grossas
dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao narrador.
A cangalhada, vermelha à luz da
fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-se em forma de toca ao pé da árvore, resguardando o carregamento,
e, na necessidade, dado o mau tempo, todo
o pessoal. Uma neblina leve e hibernal, esgarçada e refeita aos raios mortos da
lua, embuçava ao fundo a campina, onde
cincerros de tropa badalavam intermitentes.
E, sob aquele céu frio e austral
de maio, estiolava-se ressequida a vegetação tenra e rasteira dos campos goianos.
O arrieiro, mestiço traquejado e
serviçal, na sua voz grossa e arrastada de cuiabano, arrematava o final dum conto de lobisome.
O silêncio – pesado –
restabelecera-se debaixo da impressão sinistra daquela narrativa; e o Aleixo – um caburé truculento amigo da boa
pinga e freqüentemente mudando de patrão pelo seu gênio teimoso e arreliado, – puxando para
si o cuité fumegante de congonha e chupitando uma golada, começou então assim:
– Naquele tempo viajava eu
escoteiro, no meu jaguané de fama, por estas estradas da minha terra; isso, noitão cerrado e vésperas
da Paixão. Manhãzinha, Deus servido, devia bater em Santa Rita pra negócio de precisão e a lua
só pela madrugada despontaria. Marchava apressado,
tendo a cortar todo um estirão de oito léguas bem puxadas para alcançar o
arraial. Vai senão, ali nas alturas do
Bugre, ouço passos cadenciados à minha frente. Olhei, o lugar era ensombrado, o caminho muito estreito e solapado
não tinha desvio; e, como lhes dizia, não havia luar. Assim na sombra, assemelhou-se-me
a dois homens baixos, conduzindo qualquer cousa, a modo de trouxa, num varão.
“– Naturalmente soldados em
diligência para Santa Leopoldina –, calculei. Num claro de mato, achegando o animal, vi perfeitamente:
eram dois negros acurvados, num andar ora lento, ora apressado, que levavam ao ombro uma rede
de defunto. Cravei as esporas no meu bicho pra ganhar a dianteira – que eu não arreceio um
cabra de maus fígados, mas tenho uma ojeriza dos diabos a tudo que me cheira defunto; e isso,
desde aquela estopada onde o Policarpo viu que um jacaré não sai à toa da bainha e que eu,
apesar de simples camarada, não guardo desfeita para depois. O bicho fiel certamente estranhou as
rosetas, tanto que meteu num trote bruto de pôr tripas pela boca afora do peão mais
desabusado. Os pretos excomungados, sacolejando a rede, começaram a trotar lá adiante.
“– Olá – gritei. – Param vocês aí
com o defunto e abram-me passagem. – Os carregadores nem pio, antes continuaram, arremedando, a
correr duro, vergados sob o varão, cabisbaixos e macambúzios. Achei esquisito. Joguei o jaguané
a galope: galoparam também, ganhando distância,
a desaparecer no sombreado espesso das árvores. Qual, isso é ainda efeito da
beijoca que dei ali atrás ao frasco de
cachaça, ia pensando. Noutro claro, porém, lá tornei a enxergar os dois pretos condutores, arqueados e
silenciosos debaixo da carga maldita. Iam depressa, tanto como o meu punga. O carreiro apertava,
aprofundando-se; não tinha por onde atalhar. Demais, um travo de zanga subia-me à garganta.
“– Eu lhes amostrarei, canalhas;
estão caçoando comigo, seus bêbados, pois esperam aí. – Varei o meu bicho nas chilenas e ele disparou
à toda, que o terreno era um seu tico movediço, mas o animal, apesar de cansado, era de
fiança.”
– E pegou-os?
– Qual o quê, seu Zé; os demônios
abriram numa carreira de curupira, a fazer mais estrépito que o casco do meu bicho! Assim
andamos bom pedaço, o carreiro mais estreito e solapado, o arvoredo mais fechado e
carrancudo, o sítio mais escuro. Afinal, não ganhava nem perdia, e o pingo a resfolegar já bambo.
Sofreei a marcha. Os pretos, bufando alto debaixo da carga, regularam logo a sua andadura pela minha.
Pus o sendeiro a passo: eles, do mesmo modo, pausados, em cadência, recomeçaram o movimento
primitivo, a passo, desocupados. Decididamente
esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam. Fiquei ali imóvel longo tempo, os olhos neles
grudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a tingir de açafrão a copa folhuda
das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro. Acoroçoado,
reencetei a marcha; eles fizeram o mesmo, e assim continuamos por mais de hora, eu calado,
apertando nos dedos o cabo encerado do jacaré, eles arcados, pausados, o fardo ao ombro, em
cadência de soldados. De supetão – desfiava eu o creio-em-deus-padre de trás para diante mais
uma vez – o carreiro desembocou num campo largo, coalhado de luar. A lua deu de chapa
nos dous carregadores. Adivinham, se podem, o que vi então, todo apalermado, assombrado mesmo.
– O cuca – aventurou tímido um.
– Qual! Uma vaca.
E perante o assombro descomedido
daquelas feições rústicas e encardidas de sol, o Aleixo arrematou com pachorra:
– Pois isso mesmo, os dois pretos
arcados, eram seus quartos escuros e a rede de defunto, a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e
apertado, ela não tivera por onde torcer; o escuro, a solidão daqueles lugares e – pra
tudo dizer – o medo, fizeram o resto.
A companhia respirava aliviada.
O plenilúnio acinzentado e
friorento de inverno, envolto em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava vida e animação às
personagens fantasmagóricas daquelas histórias primitivas.
Cincerros badalavam intermitentes
e sonoros na campina ao fundo, onde a neblina hibernal do sertão, esgarçada e refeita aos
raios mortos da lua, abafava o horizonte.
Fumegando, a chocolateira
fuliginosa e aromatizada de congonha passou de mão em mão, transbordando os cuités.
A fogueira – em brasa –
tremeluzia.
Um outro tomou a palavra.
Janeiro – 1912
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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