sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "Caminho das Tropas"

CAMINHO DAS TROPAS
  
O lote derradeiro desembocou num chouto sopitado do fundo da vargem, e veio a  trouxe-mouxe enfileirar-se, sob o estalo do relho, na outra aba do rancho, poucas braças adiante da barraca do patrão.

O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o piraí na faixa encarnada da cinta,  entre a espera da garrucha e a niquelaria da  franqueira, desatou com presteza as bridas  das cabresteiras, foi prendendo às estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando  abaixo arrochos e ligais, enquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na  descarga dos surrões.

O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu  depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após um couro largo no  terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa  ruminava em embornais a ração daquela tarde. O cabra, atentando na lombeira da  burrada, tirou dum surrãozito de ferramentas, metido nas bruacas da cozinha, o chifre de  tutano de boi, e armado duma dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura  antiga, ali raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio,  aparando além com o gume do freme os rebordos das feridas de mau caráter.

Só então tornou à roda dos camaradas, ao pé do fogo do cozinheiro, no interior do  rancho, onde chiava atupida a chocolateira aromatizada do café.

A tarde morria nuns visos de crepúsculo pelas bandas da baixada. A mulada  remoía nas estacas, e junto ao couro de milho um ou outro animal mais arteiro e  manhoso escoucinhava e mordia os demais no afã do maior quinhão.

Assentados sobre os calcanhares, os primeiros chegados – cujos lotes arraçoados  se coçavam impacientes aos varais – espicaçavam pachorrentamente na concha da mão  o fumo dos cornimboques, picavam miúdo no corte do caxerenguengue as rodelinhas  finas, esfrangalhando entre os dedos os resíduos, palha grossa de cigarro encarapitada  na orelha. O cabra abeirou, apossou-se do cuité fumegante que lhe estendia o  cozinheiro; e, enquanto deglutia a beberagem, ia comentando com os demais, voz  amolengada, a marcha daquele dia.

– O lamedo dera-lhe, no vau do Anicuns, um trabalhão; mal do lote, se não fora o  ramo verde da marmelada que o dianteiro tivera o cuidado de atravessar no caminho, a  burrada embarafustava logo pelo atoleiro e ele não estaria àquela hora no pouso; quando  lá passou, ia bem fresco ainda o rastro da tropa no desvio; mesmo assim, o macho  crioulo que vinha adestro, não duvidara em meter-se naquela perdição...

– Bicho novato, de primeira viagem... – observou o dianteiro, que tocava, como de  direito, o lote mais luzido da tropa.

No gancho da mariquita, especada sobre o brasido, refervia o bom adubo da  feijoada; um bafo grosso, apetecente, daí se evolava, babando a gula de dois  perdigueiros da comitiva, que, assentados sobre as patas traseiras, estendiam para o  borralho o focinho curto, cupidamente...

– Já vem chegando a boquinha da noite, minha gente – avisou o arrieiro saindo da  barraca e chegando até o parapeito do rancho, olha o encosto da tropa. – Uma peia  garantida nesse macho crioulo, ó Joaquim, que não dê outro sumiço; olá, mudem o  polaco da madrinha, bate soturno esse cincerro.

Guiada pelo chocalho da madrinha, levada no cabresto, à mão do dianteiro, a  tropa desatrelada enveredou pela devesa, redambalando por intervalos cada polaco das  cabeças de lote nos torcicolos abrutalhados da vereda, ribanceira abaixo. A noite descia  mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamor longínquo das seriemas da campina  no fundo dos vargedos, e a lua assomava como uma grande moeda de cobre novo por  sobre os descampados, em vago nevoeiro.

À noite, repasto feito, descansava o pessoal recostado sobre as retrancas e pelegos  dos arreios. Pelos cantos, trilavam grilos; e, de fora, vinha o grito dolente dos caburés e  noitibós, agourando a solidão. Um tropeiro sacou do piquá que trouxera a tiracolo, o  pinho companheiro dessas caminhadas no sertão; apertou a chave da prima e pigarreou  pelo cordame um lundu, todo repassado de ais e suspiros.

– Cabra malvado, faz tristeza essa viola – disse alguém, o pensamento longe,  perdido no arraial, onde deixara, certo, saudades e cuidados. – Diga antes um caso,  daqueles que nos contava, quando na boiada do Antão...

– Homem, inda agorinha – atalhou o Manuel, o dianteiro – relembrava um fato  que me sucedeu duma feita, quando viajava escoteiro, às ordens do major Matos,  pr'essas bandas. O caso é que era então acostado, e de fiança, daqueles de pouca  conversa e de grande estadão. Na quinta-feira das Dores, o sol ia descambando, o patrão  manda-me chamar, passar a cutuca no lombilho do matungo, e partir sem detença para o  povoado, uns papéis de eleição bem arrumadinhos na patrona. Mecês devem estar  lembrados que na altura dos Marinhos, num estirão de meia légua de tabatinga e terra  puba, fica um cemitério abandonado, há muito toca de tatus e camundongos-do-campo.  Semana atrás, numa rusga de cachaça e mulheres, esticara a canela ali perto o Bentinho  Baiano, um cafuzo intrometidiço, baleado por dois tiraços de rifle na volta esquerda da  pá. Para poupar maior trabalho, aproveitaram a serventia antiga do terreno, sepultando  por ali mesmo o assassinado. Fora eu até quem, de passagem, cedera a mortalha de  ocasião com que o embrulharam, uma larga pala branca, enfeitada de bambolins, que  me presenteara alguém que não tem a ver cá com a questão.

“Viajava distraído, esquecido de tudo, na marcha a furta-passo do matungo,  perrengueando, a pitar o meu cigarro, quando num repente, estaca de supetão o animal.  Assuntei. A noite estava turva, o céu sem lua, aqui e ali picado de estrelinhas. O sítio  não me pareceu estranho; atentei com mais justeza, – umas cruzes apodrecidas pendiam,  no escuro, desconjuntadas, à beira do caminho, sobre cômoros malfeitos de terra... Era o  cemitério velho do povoado. Apertei as chilenas no pangaré; ele andou alguns passos e  depois emperrou de novo no meio da estrada, orelhas entesouradas, espreitando a  escuridão. Adiante, não via nem ouvia movimento ou tropel algum; o bicho nunca fora  empacador ou passarinheiro, tentação do capeta devia de andar ali por perto. Um   homem é homem, mecês bem sabem; atravessei o punga no caminho, encurtei as rédeas  e escrutei melhor a vista, já acostumado à escuridão. À minha frente, roçando o chão,  brancacento, ia um lençol aberto. O matungo refugava arreliado, bufava pelas ventas,  uma vontade danada de voltar atrás e desembestar pelo chapadão afora. Senti, benza-me  o Santíssimo, u'a mão de ferro, no coração, triturando... Mas, como lhes dizia, em  qualquer aperto, pr'este mundo de Cristo, um homem é homem, e o que tem de  acontecer, tem força, acontece mesmo!

“Desviei o meu bicho para uma pequena macega de sapé, pus-me abaixo da sela,  amarrei seguro as bridas a um tronco de imbiruçu e voltei atrás, decidido, franqueira  atravessada na boca como era de preceito, mão sobre os gatilhos escancarados da  garrucha. Parecera, a este pobre cristão, melhor observado, que era a mesma franja de  bambolins, o lençol que seguia estendido à minha frente – aquela mesmíssima mortalha  com que dias antes enroláramos o corpo do mal-aventurado Bentinho...”

Parou, gozando a expectativa angustiosa que errava derredor, entre os parceiros.  Bebeu uma última golada de congonha, que lhe servira atencioso o cozinheiro; bateu  fogo na pedra do isqueiro, acendeu o cigarrão e olhou para fora, vagamente, meneando.

– A gente, quanto mais vive, mais aprende, já dizia minha avó. Assombramento,  tenho ouvido casos, verdade seja, mas as mais das vezes falta de coragem, turvação do  medo e da bebida... Maluquice, anda à toa pelo mundo da Virgem; não fora o meu  ânimo, hoje zanzaria por aí, nessas bamburras, gira varrido. Cheguei solerte, pé ante pé,  negaceando, pronto a queimar as escorvas na cabeça do Mal-Encarado ou o quer que  fosse que impedia a passagem. O lusco-fusco ia menos cerrado, o lençol prosseguia  estrada afora, muito branco, desdobrado, largando felpas alvadias pela garrancheira e  vassouredo da beirada. Sofreei o baque de meu peito e acheguei-me para mais perto da  assombração; bati fogo na binga, soprei um chumaço, e agachado sobre o estorvo,  pesquisei com cuidado.

“Era... mas devia ter logo visto, um tatupeba, que se fartara no corpo do infeliz ali  enterrado e que se retirava, empanturrado, para o seu coito. A imundície, na gana do  festim, enrodilhara-se na mortalha do desgraçado, varando-a com a cabeça, e de lá se  retirava, certamente bem atrapalhado, arrastando após si o trambolho... Devia ter logo  visto; na pressa do enterramento, a cova tinha ficado um tanto rasa, a terra fofa, sem  cerca nem revestimento para impedir aquela profanação... Enfim, creiam mecês, é ter  sempre desapego ao perigo...”

Calara. Cincerros distantes chocalhavam, longe, pelo encosto da devesa.

A lua nos aceiros era toda branca como geada de inverno.

 1914


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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917) 

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