CAMINHO DAS TROPAS
O lote derradeiro desembocou num
chouto sopitado do fundo da vargem, e veio a trouxe-mouxe enfileirar-se, sob o estalo do
relho, na outra aba do rancho, poucas braças adiante da barraca do patrão.
O Joaquim Culatreiro, atravessando
sem parar o piraí na faixa encarnada da cinta, entre a espera da garrucha e a niquelaria da franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às estacas a
mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligais, enquanto um camarada
serviçal dava a mão de ajuda na descarga
dos surrões.
O tropeiro empilhou a carregação
fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao
alpendre. Abriu após um couro largo no terreiro,
despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela tarde. O
cabra, atentando na lombeira da burrada,
tirou dum surrãozito de ferramentas, metido nas bruacas da cozinha, o chifre de
tutano de boi, e armado duma dedada
percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura antiga, ali raspando, com a aspereza dum
sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio, aparando além com o gume do freme os rebordos
das feridas de mau caráter.
Só então tornou à roda dos camaradas,
ao pé do fogo do cozinheiro, no interior do rancho, onde chiava atupida a chocolateira
aromatizada do café.
A tarde morria nuns visos de
crepúsculo pelas bandas da baixada. A mulada remoía nas estacas, e junto ao couro de milho
um ou outro animal mais arteiro e manhoso
escoucinhava e mordia os demais no afã do maior quinhão.
Assentados sobre os calcanhares,
os primeiros chegados – cujos lotes arraçoados se coçavam impacientes aos varais –
espicaçavam pachorrentamente na concha da mão o fumo dos cornimboques, picavam miúdo no
corte do caxerenguengue as rodelinhas finas,
esfrangalhando entre os dedos os resíduos, palha grossa de cigarro encarapitada
na orelha. O cabra abeirou, apossou-se
do cuité fumegante que lhe estendia o cozinheiro;
e, enquanto deglutia a beberagem, ia comentando com os demais, voz amolengada, a marcha daquele dia.
– O lamedo dera-lhe, no vau do
Anicuns, um trabalhão; mal do lote, se não fora o ramo verde da marmelada que o dianteiro tivera
o cuidado de atravessar no caminho, a burrada
embarafustava logo pelo atoleiro e ele não estaria àquela hora no pouso; quando
lá passou, ia bem fresco ainda o rastro
da tropa no desvio; mesmo assim, o macho crioulo que vinha adestro, não duvidara em
meter-se naquela perdição...
– Bicho novato, de primeira
viagem... – observou o dianteiro, que tocava, como de direito, o lote mais luzido da tropa.
No gancho da mariquita, especada
sobre o brasido, refervia o bom adubo da feijoada; um bafo grosso, apetecente, daí se
evolava, babando a gula de dois perdigueiros
da comitiva, que, assentados sobre as patas traseiras, estendiam para o borralho o focinho curto, cupidamente...
– Já vem chegando a boquinha da
noite, minha gente – avisou o arrieiro saindo da barraca e chegando até o parapeito do rancho,
olha o encosto da tropa. – Uma peia garantida
nesse macho crioulo, ó Joaquim, que não dê outro sumiço; olá, mudem o polaco da madrinha, bate soturno esse
cincerro.
Guiada pelo chocalho da madrinha,
levada no cabresto, à mão do dianteiro, a tropa desatrelada enveredou pela devesa,
redambalando por intervalos cada polaco das cabeças de lote nos torcicolos abrutalhados da
vereda, ribanceira abaixo. A noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo
clamor longínquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua assomava como
uma grande moeda de cobre novo por sobre
os descampados, em vago nevoeiro.
À noite, repasto feito,
descansava o pessoal recostado sobre as retrancas e pelegos dos arreios. Pelos cantos, trilavam grilos; e,
de fora, vinha o grito dolente dos caburés e noitibós, agourando a solidão. Um tropeiro
sacou do piquá que trouxera a tiracolo, o pinho companheiro dessas caminhadas no sertão;
apertou a chave da prima e pigarreou pelo
cordame um lundu, todo repassado de ais e suspiros.
– Cabra malvado, faz tristeza
essa viola – disse alguém, o pensamento longe, perdido no arraial, onde deixara, certo,
saudades e cuidados. – Diga antes um caso, daqueles que nos contava, quando na boiada do
Antão...
– Homem, inda agorinha – atalhou
o Manuel, o dianteiro – relembrava um fato que me sucedeu duma feita, quando viajava
escoteiro, às ordens do major Matos, pr'essas
bandas. O caso é que era então acostado, e de fiança, daqueles de pouca conversa e de grande estadão. Na quinta-feira
das Dores, o sol ia descambando, o patrão manda-me chamar, passar a cutuca no lombilho
do matungo, e partir sem detença para o povoado,
uns papéis de eleição bem arrumadinhos na patrona. Mecês devem estar lembrados que na altura dos Marinhos, num
estirão de meia légua de tabatinga e terra puba, fica um cemitério abandonado, há muito
toca de tatus e camundongos-do-campo. Semana
atrás, numa rusga de cachaça e mulheres, esticara a canela ali perto o Bentinho
Baiano, um cafuzo intrometidiço, baleado
por dois tiraços de rifle na volta esquerda da pá. Para poupar maior trabalho, aproveitaram a
serventia antiga do terreno, sepultando por
ali mesmo o assassinado. Fora eu até quem, de passagem, cedera a mortalha de ocasião com que o embrulharam, uma larga pala
branca, enfeitada de bambolins, que me
presenteara alguém que não tem a ver cá com a questão.
“Viajava distraído, esquecido de
tudo, na marcha a furta-passo do matungo, perrengueando, a pitar o meu cigarro, quando
num repente, estaca de supetão o animal. Assuntei. A noite estava turva, o céu sem lua,
aqui e ali picado de estrelinhas. O sítio não me pareceu estranho; atentei com mais
justeza, – umas cruzes apodrecidas pendiam, no escuro, desconjuntadas, à beira do caminho,
sobre cômoros malfeitos de terra... Era o cemitério velho do povoado. Apertei as
chilenas no pangaré; ele andou alguns passos e depois emperrou de novo no meio da estrada,
orelhas entesouradas, espreitando a escuridão.
Adiante, não via nem ouvia movimento ou tropel algum; o bicho nunca fora empacador ou passarinheiro, tentação do capeta
devia de andar ali por perto. Um homem
é homem, mecês bem sabem; atravessei o punga no caminho, encurtei as rédeas e escrutei melhor a vista, já acostumado à
escuridão. À minha frente, roçando o chão, brancacento, ia um lençol aberto. O matungo
refugava arreliado, bufava pelas ventas, uma vontade danada de voltar atrás e
desembestar pelo chapadão afora. Senti, benza-me o Santíssimo, u'a mão de ferro, no coração, triturando...
Mas, como lhes dizia, em qualquer
aperto, pr'este mundo de Cristo, um homem é homem, e o que tem de acontecer, tem força, acontece mesmo!
“Desviei o meu bicho para uma
pequena macega de sapé, pus-me abaixo da sela, amarrei seguro as bridas a um tronco de
imbiruçu e voltei atrás, decidido, franqueira atravessada na boca como era de preceito, mão
sobre os gatilhos escancarados da garrucha.
Parecera, a este pobre cristão, melhor observado, que era a mesma franja de bambolins, o lençol que seguia estendido à
minha frente – aquela mesmíssima mortalha com que dias antes enroláramos o corpo do
mal-aventurado Bentinho...”
Parou, gozando a expectativa
angustiosa que errava derredor, entre os parceiros. Bebeu uma última golada de congonha, que lhe
servira atencioso o cozinheiro; bateu fogo
na pedra do isqueiro, acendeu o cigarrão e olhou para fora, vagamente,
meneando.
– A gente, quanto mais vive, mais
aprende, já dizia minha avó. Assombramento, tenho ouvido casos, verdade seja, mas as mais das
vezes falta de coragem, turvação do medo
e da bebida... Maluquice, anda à toa pelo mundo da Virgem; não fora o meu ânimo, hoje zanzaria por aí, nessas bamburras,
gira varrido. Cheguei solerte, pé ante pé, negaceando, pronto a queimar as escorvas na cabeça
do Mal-Encarado ou o quer que fosse que
impedia a passagem. O lusco-fusco ia menos cerrado, o lençol prosseguia estrada afora, muito branco, desdobrado,
largando felpas alvadias pela garrancheira e vassouredo da beirada. Sofreei o baque de meu
peito e acheguei-me para mais perto da assombração;
bati fogo na binga, soprei um chumaço, e agachado sobre o estorvo, pesquisei com cuidado.
“Era... mas devia ter logo visto,
um tatupeba, que se fartara no corpo do infeliz ali enterrado e que se retirava, empanturrado,
para o seu coito. A imundície, na gana do festim, enrodilhara-se na mortalha do
desgraçado, varando-a com a cabeça, e de lá se retirava, certamente bem atrapalhado,
arrastando após si o trambolho... Devia ter logo visto; na pressa do enterramento, a cova tinha
ficado um tanto rasa, a terra fofa, sem cerca
nem revestimento para impedir aquela profanação... Enfim, creiam mecês, é ter sempre desapego ao perigo...”
Calara. Cincerros distantes
chocalhavam, longe, pelo encosto da devesa.
A lua nos aceiros era toda branca
como geada de inverno.
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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