MÁGOA DE VAQUEIRO
A Eduardo Tourinho
Como os galos viessem amiudando e
fora andasse a garoa fria de inverno que precede as primeiras horas do amanhecer, o Zeca Menino,
largando num tamborete o par com quem dera a última volta da catira, esgueirou-se pelo
corredor, atravessou sorrateiramente a varanda de terra batida, onde a mesa posta ostentava ainda os
sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti
esparramando-se na toalha
besuntada – e saiu pelos fundos da casa.
No terreiro, encolhido ao
aconchego da fogueira, gemia ainda àquela hora o tio Ambrosino, viola ao peito, respontando na
prima:
A florzinha do pau-d'arco
É da cor do entardecer,
Traz tristeza, traz quebranto,
Tu, que não hás de trazer...
Em pontas de pé, dissimulando o
tilintar das rosetas no cachorro das esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou
a mula estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril duma janela,
que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira. Os tampos descerraram-se sem rumor; um vulto
esquivo deixou-se escorregar para a garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do
animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerração, misturou-se perdido aos zangarreios da
sanfona, reavivando dentro a animação dos comparsas.
Junto ao fogo semi-extinto,
cabeceando de sono, farto da queimada engolida aos gorgolões, o tio Ambrosino interrompera o
curso de suas divagações e cachimbava distraído:
– Homem, a modo que já vão
andando... Ah, meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol com a mão!...
E caducou em solilóquio, levado
de novo pelo curso da borracheira:
Lá na serra dos Angicos
Quanta flor anda a brotar!
Assim também são teus olhos
Quando pões-me a namorar...
Despertado, um galo cacarejou no
poleiro ao pé, num grande grito de alarma.
– Carijó que assim canta, é que
fugiu moça de casa.
Mas o frio apertava, a lua ia a
perder-se por detrás das serranias; e tio Ambrosino recolheu-se tropeçando ao abrigo da varanda, a
espertar o corpo perrengue num último gargarejo
da queimada.
E só quando as barras vinham
quebrando e era manhã feita nas morrarias do nascente e o último convidado, que morava mais chegado, se
despedia do festeiro – num salamaleque derreado
onde havia ainda bifadas de cachaça e licor de jenipapo – que este deu pela
ausência da filha, chamando-a para a
bênção do padrinho.
Houve um rebuliço. O vaqueiro
gritava para dentro, supondo-a recolhida; e o Ambrosino, escarranchado na pileca manca, atalhou com voz
pachorrenta:
– Ora, não se afobe, compadre, a
afilhada já dorme, moída da festança; também, requebrou-se a noite toda com o manhoso do
Zeca Menino, agora dorme...
E partiu, no passo ronceiro da
mula cambeta, pendependendo no arção, as pálpebras inchadas, num sono invencível de sapo
borracho.
O outro, porém, mal o viu
desaparecer no cotovelo do atalho, embarafustou pelo rancho, andou lá por dentro remexendo, repondo os
trastes em seus lugares; e, num pressentimento, chamou junto ao quarto da filha:
– Ó Maria!...
Mas um silêncio angustioso pairou
após o brado do velho; e ele, resoluto, meteu ombros à porta, cuja tranca cedeu sem dificuldade.
A cama estava como na véspera a
vira, quando lá entrara para apanhar a bandeira do santo; a colcha de chita bem esticada, fronhas
dos travesseiros intactas, sem vinco ou ruga duma cabeça que ali repousasse alguns instantes; e
o rosário das orações como sempre, dependurado na cabeceira. Da Mariazinha, porém, nem
vestígio.
Ele olhava apatetado, sem
compreender; foi à cozinha, na esperança de encontrá-la dobrada sobre o jirau de mantimentos, quando
lá fora talvez buscar a candeia de azeite e se deixara ficar, vencida do sono; foi, e apenas
o bichano, mui gordo e ronronento, abriu para ele da trempe do borralho onde se aboletara, uns
grandes olhos deslavados de espanto e ronronando ficara de novo a dormitar, no calor brando das
cinzas.
O velho Tonico percorreu todas as
dependências daquele pobre rancho de vaqueiro, a sala, a varanda e sua própria divisão; saiu,
foi ao alpendre e até o chiqueiro e o fundo do quintal inquiriu ansiosa, inutilmente.
Veio ao terreiro da frente, o sol
já nado; e só então a dor expluiu, numa crise de lágrimas e recriminações.
Fugira, a malvada! E com quem,
Santa Maria, com o Zeca Menino certamente, um perdido de pagodeiras e do truque, brigão
vezeiro nas redondezas, sujeito que além da garrucha e da besta de sela, só tinha por si essa
estampa escorreita de mestiço madraço e preguiçoso! E por que, Virgem Maria, se ele nunca se
intrometera no namoro, até satisfaria a vontade de ambos, dando o consentimento; ele que, mal da
idade, com tão pouco se contentava – vê-la sempre de sorriso à boca ao batente da porta,
quando viesse das malhadas, e a tigelinha de café bem requentada, quando partisse pela manhã
para as labutas do campo! Ele que, bom Deus dos fracos, só tinha aquele mimo na sua velhice
desamparada e solitária de viúvo, à beira dum atalho sempre deserto e cujo vizinho mais
próximo, o Ambrosino, ficava a duas léguas de distância!
E arrepelava a grenha, num pasmo
mudo agora, como se nem pensar naquilo valesse mais a pena, tão absurda parecia a desgraça que se
lhe abatera sobre o casebre.
Ah! não ter dez anos para menos,
não virasse já os sessenta bem puxados, tivesse o pulso a rijeza de outrora e
partiria sem detença, no rosilho troncho, pronto a tirar a desforra merecida da afronta!
Mas o corpo já não dava de si e
ele bem sabia quão boa estradeira era a mula ruana em que haviam partido. Àquela hora, já
transpunham a mata funda, rumo do Paranaíba e talvez das terras mineiras do Triângulo, bem longe da
sanha e da ojeriza impotente de seu amor paterno ludibriado.
E num dasalento, amparou-se ao cupinzeiro
que erguia o seu cone crivado à frente da palhoça, a olhar emudecido, em desespero.
O sertão abria-se naquela manhã
de junho festivo, na glória fecunda das ondulações verdes, sombreado aqui pelas restingas das
matas, escalonado mais além pelas colinas aprumadas, a varar o céu azul com suas
aguilhadas de ouro; batuíras e xenxéns chalravam nas embaúbas digitadas dos grotões; e um sorvo
longo de vida e contentamento errava derredor, no catingueiro roxo dos serrotes, emperolado da
orvalhada, a recender acre, e nas abas dos montes e encruzilhadas, onde preás minúsculos e
calangos esverdinhados retouçavam familiares, ao esplendor crescente do dia.
Ele ficara mudo, olhos
apalermados, virado o rosto para a volta da estrada, de cuja orla subia um nevoeiro luminoso, que o mormaço
solar irisava.
Ali permaneceu horas a fio, o sol
já dardejando a prumo, indiferente à canícula, mãos túrgidas engalfinhadas na barba intonsa, boca
contorcida numa visagem estranha de mágoa, a olhar longe, muito longe, para além das
colinas longínquas e do céu anilado.
À tarde, o eco dum aboiado rolou
pelo fundo da várzea, ondulando dolentemente de quebrada em quebrada, num despertar intenso de
saudade...
Eram boiadeiros que lá passavam,
na estrada batida.
O vaqueiro velho não saiu então
como de costume, ferrão em punho, perneiras e guardapeito, escorreito e desempenado, no rosilho
campeador, a dar a mão de ajuda àqueles forasteiros que lá iam, demanda das terras distantes e das
feiras ruidosas dos sertões mineiros d'além- Paranaíba.
Continuava recostado no cômoro
dos cupins, mão no queixo, olhando extático; somente, agora, a cabeça bronzeada pendia mais
flacidamente sobre o peito de vaqueano, e o olhar com que via, era inexpressivo e desvidrado,
desmedidamente aberto, estampando na retina empanada a visão pungente do sertão em festa, todo
verde, e a orelha à escuta, longe, das notas derradeiras da canção nativa.
Morrera, ouvindo os ecos que lá
iam do aboiado, a rolar, magoadamente, de quebrada em quebrada...
Ao pé, na roupeta singela de
algodão em que se enfatiotara, nas axilas, nos braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas
em rasgar, picar, cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo por
cima da casa...
1914
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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