ALMA DAS AVES
Havia na fazenda uma regular
criação de galinhas. Certo que não abundavam as raridades. Viam-se algumas representantes da brama e
cochinchina, louras como gema d'ovo; carijós, garnisés, arrepiadas, de forma e feitio de
penas arrevesado e raro. Tudo, porém, sem método de seleção, entrecruzando-se com a raça
corriqueira da terra – abundantíssima, onde cores e característicos se baralhavam na mais
inextrincável promiscuidade.
Mas legítimas, descendentes
daquela que tanto pavor causara ao índio de Vaz Caminha, podiam-se contar às dúzias, sobressaindo desde
a boa nanica chocadeira, até às agourentas pescoço-pelado, aliás de mui excelentes
qualidades poedeiras.
No terreiro argiloso e duro, mui
vasto, que se entranhava a princípio num vassoural rasteiro, depois – mais além – no cerrado, e
por fim onde acabava o mato sujo e começavam os morrotes embalsamados de mangabeira e murici,
andavam elas desde o dealbar ciscando e esgravatando,
ou a enfartar-se de jenipapos esborrachados pelo chão, quando não era disputada
a fruta pelos bácoros soltos,
grunhidores que mesmo alta noite, escutando-lhe a queda balofa sobre o solo, saíam de suas camas de palha e
cisco ao pé das cercas e vinham, bufando e farejando, manducar naquela ceia que de
momento a momento lhes mandava a aragem.
E aos bufos da leitoada, era um
cacarejar alerta e impaciente à hora matinal, bater d'asas, corridas aqui sobre esta manga meio roída de periquitos
que despencara, a fuga ali da que, desentranhando
gorda minhoca, se fora num cacarejamento de triunfo, a degluti-la noutro canto,
perseguida das demais; e tal o ruído
que, certo, se não fizesse a roça a todos madrugadores, se se não acostumara antes o ouvido ao mugir do gado
desde as três da manhã, seriam aquelas umas férias mui pouco invejáveis de passar para
gente dorminhoca.
Dês, porém, que a caseira surgia
no limiar, achegando à peitada bamba duas pontas de saia, um palmo de morim da de baixo, encardido
e sujo, colando às canelas luzidias de qüinquagenária
– e um psiu asmático, à direita, à esquerda, se lhe fluía da beiçada murcha –
não se poderia ao certo dizer do
alvoroço havido naquele pequeno mundo, as correrias que do amplo perímetro do pátio convergiam como varetas dum
leque ou raios de semicírculo ao centro magnético,
o açodamento cômico das retardatárias emergindo de touças que pareciam antes desertas, as que dentro do quintal
escarafunchavam a raiz das laranjeiras transpondo céleres as cercas num surto em arco, e mesmo, o
estoufraquear das cocás, ou o gluglu dos patos vorazes acudindo da represa.
E eram punhadas sábias para um
lado, para o outro, de grãos saltitados, rápido estrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro novo,
mais depressa subvertendo-se naquela multidão de mendigos, cada qual apostado em exceder o
vizinho em gula e solércia; o cuidado da mulher em ter uns dos outros afastados os galos de
rinha, de aculeado esporão, ciosos e espancadores; e depois, tufada a paparia fulva, o pedinchar de
quem ainda atende e a sua dispersão final – a custo resolvida – pelo cerrado dos arredores.
Algumas lá pelo mato se deixavam
ficar semanas a fio, ou eriçadas e chocas faziam de quando em vez rápidas escapadas em que vinham
passear pelo pátio a sua turra de enfastiadas.
E quando, dias longos amoitadas,
apareciam de novo, era puxando fieiras intermináveis de pintainhos, onde daí a meses faria mão
baixa o caseiro, enchendo capoeiras que ia levar ao mercado da cidade.
Então, pelo dia andante, uma
quietude monástica, em que o sol tudo amolentava e aquecia naquele seu mormaço de dezembro, vinha mata
abaixo, na bafagem do rio, cousas e entes amodorrando. Lá embaixo, na praia, a eterna
ofuscação de mil chispas de faúlhas, cambiando os seus fogos num ondular crepitante de mica e
saibro descaldado. Cachimbando, batiam roupa as lavadeiras do sítio. Já de há muito
desleitadas, vacas e bezerros pastavam, apartados, no mangueiro. E a antiga casa sertaneja, erigida
a sopapos, ficava assim, dentre o verde ramalhudo dos cercados de pinhão e fruteiras do
quintalejo, como um velho tiú dormido à beira da estrada, no cicio acalentante das cigarras.
***
Ora, uma tarde, após um dia cheio
de caçadas e pescaria, abertas as tarrafas a enxugar no terreiro, tomávamos a fresca à soleira; e
longe, pelas bandas do ocaso, bulcões de nuvens ocorriam, lentas, acolchoando sobre os cerros,
para a encenação costumeira do anoitecer. E o silêncio que em torno se fazia foi de súbito
cortado, dum modo estranho e grotesco, pelo grito dum volátil numa das touceiras em frente à
estrada. O caseiro, que no momento examinava os sacos duma nossa rede, onde as matrinchãs
tinham feito esse dia largo rombo, volveu o ouvido experimentado, olhou-nos com inteligência,
sondando depois os ares cuidadosamente.
– Algum gavião? – indagou a
mulher.
Mas não. Não havia ali por perto
ninhada fresca de pintainhos, além de que o céu, parado e límpido, nenhum indício d'asas do plumátil
rapace assinalava que levasse em roda alarma à criação.
Entanto, fez-se logo ouvir,
insistente, o cacarejo no vassouredo. Para lá nos fomos todos curiosos.
Minúscula tragédia, espetáculo
extraordinário e grandioso aquele, em sua estranha singeleza!
No aceiro, uma ninhada d'ovos em
véspera de abrir. Sobre ela, armada para o bote, uma cascavel batia enfurecida o chocalho. Mais
terrível porém era o aspecto ouriçado duma galinha da terra, o papo pelado já, gotejando pelos
sucessivos arremessos. Numa de suas breves sortidas à cata de que entreter uma fome de semanas,
topara de retorno com aquela intrusa sobre a sua postura tépida, ali teimando em permanecer,
malgrado o alarde com que nos atraíra a nós, e as heróicas e reiteradas arremetidas com que
procurava, em vão, enxotá-la.
Ficamos ali parados, a olhar
perplexos.
A ave, nuns pulos bruscos,
bizarros, de batráquio em fúria, acossava de perto o reptil aos esporeios e bicadas. Este, a cada novo assomo,
mordia-a desapiedado, chocalhando incessantemente.
De novo, voltava à riça o animal, arremetendo corajosamente de unhas e bicos. Novamente sibilava a cobra, ferindo-o,
injetando-lhe o pescoço, as asas, o peito incidente e agudo, da mortal peçonha.
E o nosso pasmo era tal, que
ainda assim permaneceríamos, a ver em que dava a singular briga, se o caseiro, pondo termo à luta
desigual, não arrancasse uma estaca, abatendo a cascavel em duas certeiras pauladas.
Lanhosa e escamada, ficou-se ela
por ali a enrodilhar, enquanto lhe esmagávamos a cabeça. Arrastada para o terreiro, medimo-la
com cuidado, achando-se seis palmos e tanto de comprimento, fora a cauda, cujo crótalo dizia
oito anos de idade.
Voltamos depressa à ave.
Deitada sobre o ninho, dormia já,
mais negra que o carvão.
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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)
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