segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Guimarães Júnior: "A Alma do Outro Mundo"

A ALMA DO OUTRO  MUNDO

CAPÍTULO I

Estamos no Jordão. O Jordão dista do Recife, capital de Pernambuco, quatro  léguas, pouco mais ou menos meia hora de vagão... Que não desencarrilhe antes de  lá chegar; está visto.

É um lugarejo pobre e formoso como as feiticeiras matutas do norte, que  fazem brilhar, através do tosco lenço, a alvura de um seio adorável, e metem em  brutais tamancos um par de pés, dignos de herdar o sapatinho da Borralheira.

O nome não é propriamente do lugar: é do pequeno rio que o atravessa em  parte, um rio cheio de sombras, quietação e aromas selvagens, como aquele de que  o louro S. João tirou as gotas santas com que batizou o Divino Cordeiro.  As casas do Jordão são quase todas humildes, raquíticas, esboroadas; mas  em todas elas a doce miséria espalha um sereno ar de meiguice e pureza, através  do qual a indigência parece resplandecer melhor que o luxo nos salões da cidade  opulenta.

Durante a tarde, as poucas famílias do lugar dirigem-se em graciosas turmas  à beira do rio, e aí esperam os primeiros clarões da estrela, rindo, conversando, e,  nas noites de lua, acordando o sonolento eco ao ruído dos pandeiros, das guitarras  e das vozes felizes que se entrelaçam na pálida e cheirosa atmosfera!

Nada perturba o proverbial sossego daquelas abençoadas terras. De vez em  quando ronca pelas estradas solitárias o monstro do trem de ferro; o penacho  flutuante do vapor enrosca-se no ar; mas, momentos depois, tudo volta ao primitivo  silêncio.

Os habitantes do Jordão assemelham-se aos antigos apóstolos de Jesus. No  meio da sua pobreza, boa e venturosa gente! No meio da sua imensa pobreza eles  conseguem revelar ao mundo, que por acaso os surpreende, o meio de ser feliz nos  mais amargos transes da vida.

Como são formosas aquelas alvas noites à margem do rio, em cuja água, de  uma limpidez fenomenal, cintila o manto erradio das estrelas e a piedosa face da  lua, coroada de névoas e de raios!

As cantigas em desafio amiúdam-se com a rapidez das contas do rosário em  mãos devotas, e, por vezes, o sabiá da mata, escondido na penumbra das árvores,  exala um choroso trilo cuidando que é dia e que o som agudo da guitarra é a voz  penetrante do condiz que saúda a vinda da madrugada!

Belas, belas noites inocentes e puras! Vós sois o consolo, oh, doces amigas!  O consolo dos pobres e a riqueza dos infelizes!

Nas fímbrias de vossos mantos ideais enxugam-se as mais acerbas lágrimas da existência, e a alma atribulada esquece as mágoas que a torturam, embebendo-se como um mergulhador invisível, nas ondas estreladas do firmamento!

Oh! Doces amigas! Vós sois a revelação sublime da meiga e imponente  majestade do Senhor! O dia é cruel, é ardente, é real como o tormento e como a voluptuosidade!

Vós, não! Vós sois a poesia! Sois a cisma, sois a saudade, sois a serenata, sois o  luar sois a tranqüilidade; vós sois a ternura, e o amor!

No Jordão os amores correm com a placidez e a castidade dos santos amores da égloga... Há por lá raparigas lindas, feições artísticas e portes corretos,  que recordam o perfil grego, as grandes figuras — modelos da formosura e das  vitórias da arte suprema!

O meu conto é simples como a narração pastoril das aventuras do bom  tempo, em que a virtude valia mais do que o dinheiro, e a beleza não era ainda  monopólio dos ricos!

Passou-se no Jordão esta história e começa em uma noite de imenso luar,  noite em que, contra o costume da povoação, as margens do rio ficaram desertas,  sombrias, fúnebres até romper o dia.

As casas fechadas e escuras figuravam túmulos.

Apenas em uma, um pouco afastada, um vulto de mulher, destacando-se da  janela meio aberta, parecia interrogar alguma coisa na escuridão da mata.

Soavam nesse momento as 12 pancadas da meia-noite no longínquo  campanário da capelinha de S. Gonçalo.


CAPÍTULO II

Rosinha ia fazer nessa época 22 anos. Estava na plena aurora da sua beleza  e da sua mocidade. Não era das moças frágeis e pálidas dos nossos salões, que  exprimem no sorriso magoado e na fronte abatida o cansaço proveniente das festas  ruidosas em que o viço da mulher mais rápido foge do que o aroma das flores e a  polpa do fruto abandonado.

Rosinha era forte, robusta, formosa, como uma verde floresta em todo o vigor  da primavera.

Os seus olhos, de um negro magnífico, derramavam no mais simples  movimento ondas de luz, e de sua boca, rubra como a pevide da romã, o sorriso  fugia mais meigo e puro do que a espiral do incenso transparente.

Tudo nela valia um tesouro, um tesouro de lei, um tesouro virgem e copioso.

Era alva como o dia, e terna como os hálitos da noite.

Os rapazes do lugar andavam todos às tontas por causa da filha de José Paz.

Ela, porém, meneava a eloqüente cabeça e com um sorriso entre a ironia e o  gracejo, despedia, um por um, os suspiros dos seus inúmeros namorados.

José Paz dissera-lhe um dia:

— Que tal achas o Manuel dos Afogados, hein? Rosinha fitou os olhos rasgados e úmidos na boca entreaberta do rotundo  autor de seus dias.

— Por quê?

— Responde direito, pequena. Isso não é responder ao que te disse!

— Por que me pergunta, meu pai? — repetiu ela tornando-se séria e pensativa.

José Paz era bronco, ótimo homem excelentíssimo cidadão, respeitador do  próximo... Mas bronco. Tem paciência, meu velho! Tu eras redondamente bronco!

Não compreendeu a intenção da filha e quis fazer valer os seus direitos  paternais, sufocando na nédia perna duas volumosas palmadas.

A moça quebrou entre os dedos frenéticos as pétalas de um bogarim, e:

— Faça-se um favor, meu paizinho, um grande favor. Olhe: nunca me fale em  casamento!

— E quem te disse que se tratava de casamento?

— Nada mais simples. O Manuel escreveu-me...

— Oh?!

— É verdade, escreveu-me!

— E o que rezava a carta?

Os olhos de José Paz faiscavam de curiosidade e de cólera.

— Pedia-me permissão para lhe falar nas suas idéias a meu respeito.  Respondi-lhe que não lha dava e acabou-se!

— Toma uma beijoca! Toma!

Rosinha, sorrindo entregou as faces ao pai, que as expôs a um dilúvio de  beijos tempestuosos.

O Manuel dos Afogados recebeu à noite um robusto desengano da boca de  José Paz.

As amigas às vezes falavam-lhe em casamento. Rosinha erguia  desdenhosamente os ombros e olhava com tristeza para o céu.

— Tens alguém de olho, hein! O Chico do Silva? O Clarindo da Eusébia? O  Clarindo! Não se me dá de apostar em como é o Clarindo!

— Nem um, nem outro. o homem que eu hei de estimar um dia...

— Acaba!

— Ainda não nasceu, tola!

E terminava a sessão entre gargalhadas e motejos gerais.

A alma de Rosinha era semelhante a esses jardins agrestes que brotam no  meio das florestas, cheios de plantas e de flores, mas sem o menor cultivo.

Faltava a tesoura do sagaz jardineiro para alinhar os graciosos canteiros e os  selvagens pendões; essa tesoura era o amor que, mais dias menos dias, nos ataca  nas encruzilhadas, altivo e irresistível como os bandidos espanhóis.

O amor, para Rosinha, valia o que vale uma folha seca no mais copado  arvoredo da mata, um fruto mirrado no galho das mangueiras abundantes. Ela ria-se  à idéia de poder amar um dia, o seu espírito brilhante arrufava-se ao simples  pensamento de entregar aquela mão branca e acetinada às mãos absurdas dos  habituais namorados do Jordão.

José Paz era homem de faca e calhau, como se dizia no tempo das frases  sinceras. Adorava a filha e tinha horror aos janotas do Recife.

O caso passou-se da seguinte forma.

A madrinha de Rosinha, senhora de altos haveres e elegante posição  habitava um custoso palacete na capital de Pernambuco. José Paz, que a  conhecera no tempo em que a troca de alguns produtos agrícolas haviam-no  conduzido à cidade convidou-a a ser madrinha da pequena. A mãe da menina  morrera no ato de dar à luz a filha. José Paz, bronco, mas prudente, pusera na  pessoa da comadre todas as suas grandes esperanças para os dias das provações  e das desventuras.

— Eu sou pobre — dissera ele —, porém sou arreconhecido. Vossa mercê  verá. E, depois, a pequenina é uma mangabazinha! É bonita e jeitosa como os  passarinhos do céu!

A ricaça sorrindo respondera à esquisita fraseologia do matuto com a mais  fina e generosa cordialidade.

— Quer fazer o batizado aqui no Recife, ou prefere que eu vá ao Jordão? Estou pronta.

— Muito agradecido a senhora! — acudira o pai vermelho de gratidão e de calor. O batizado há de ser aqui mesmo. Eu trago a filhinha! Não me custa um fio de  cabelo da cabeça!

Realizou-se, pois o batizado de Rosinha no Recife, com todo o aparato e  pompa.

 José Paz abria enormes olhos e desprendia uns suspiros capazes de, em colaboração com a trombeta de Jericó, abalar os alicerces do mundo.

A esplêndida comadre chamou-o à parte, à noite, e:

— Saiba de uma coisa, meu caro senhor — disse ela sorrindo meigamente.

— Esta menina, de hoje em diante, considero-a filha minha!

José Paz cortejou três vezes, puxando os manguitos do casaco.

— Portanto, compadre, hei de ir mais de uma vez vê-los no Jordão, lugar que  adoro, e outras vezes Rosinha virá passar comigo...

— Pouco tempo, sim, comadre? Pouco tempo. Esta menina é a coisa melhor  que eu tenho no mundo e repare! Repare! Nos seus olhinhos parece que eu vejo rir  para mim a alma da defunta!

O pobre do homem idolatrava a criança, como um náufrago o frágil remo que  o ampara do choque horrendo das ondas.

Rosinha cresceu à sombra dos cuidados paternos e dos carinhos de sua  ilustre madrinha. A comadre de José Paz ia de longe em longe ao Jordão, e era sinal  de festa a presença da milionária entre os habitantes do lugarejo.

No tempo em que Rosinha contou 21 anos, a madrinha foi ao Jordão buscá-la com o maior alvoroço.

— Mas no dia dos anos dela! — murmurou José Paz, enfiado com a exigência  da comadre.

— É por isso mesmo, compadre. Hoje à noite dou uma soirée...

O honradíssimo matuto abriu os olhos prodigiosamente.

— Soirée! — articulou ele, trôpego e pasmo.

— Não é caso de morte, não, meu amigo. Uma soirée é uma reunião alegre,  galante com muita música, muitas moças, muitos rapazes distintos.


José Paz escapou de engasgar-se engolindo a frase dos rapazes distintos.

— Minha afilhada é moça de mais ou menos sociedade, e eu quero dá-la por  pronta em pouco tempo.

— Pronta para quê, comadre?

— Santo Deus! O senhor está hoje com a bílis horrivelmente excitada,  compadre! Diga-me uma coisa. Acha que eu estimo sua filha?

— Oh! Muito!

— Bravo; nesse caso deixe-me ser sempre guiá-la no mundo.

— Mas — gaguejou José Paz, esfregando um botão do colete a ponto de  arrancá-lo — a Rosinha pouco pode ser, por mais que vossa mercê deseje! A  pobreza...

— Quem lhe lembrou agora a pobreza, homem?

— Isso não precisa lembrar, comadre — atalhou José Paz com o sorriso  triste; — é o meu pão nosso de cada dia!

— Espero em Deus proteger sua filha sempre — prosseguiu a milionária,  ferindo o chão impacientemente.

José Paz meteu a viola no saco, e pôs-se a contar as tábuas do assoalho.

— Levo-a hoje; o trem de ferro não tarda. Rosinha! — chamou ela com a voz  vibrante e imperiosa.

A menina veio abraçar a madrinha e receber-lhe a bênção, envolta em ondas  de alegria.

A ricaça bateu nas faces da afilhada com um certo ar de importância materna  que lhe ia às mil maravilhas.

— Veste-te depressa, anda.

— Aonde vou eu? — perguntou a menina, fitando os olhos luminosos no rosto  carrancudo do pai.

— Vais ao Recife, vais à minha casa, vais a um baile!

— Vossa mercê — interrompeu José Paz, trêmulo — disse ainda agora que  era uma... Uma...

— Soirée ou baile vem a ser o mesmo, compadre. Uma soirée soberba,  Rosinha! Hás de te recordar ainda dos lanceiros de que tanto gostavas? ... Tra, la,  la, la, la, le, li, la, la!

José Paz estava em brasas; o suor corria-lhe da testa à barba com a rapidez  das enxurradas nas grandes cheias.

A milionária acompanhou Rosinha ao quarto da menina, e enquanto auxiliava-a na simples e graciosa toalete:

— Prepara-te, meu bem que nunca te divertirás como hoje à noite!

— Hoje é o dia dos meus anos — volveu Rosinha enfiando o corpete de lã  salpicada.

— Pois festejaremos o dia dos teus anos às direitas! Toma, toma o alfinete.

— E espera muita gente, minha madrinha?

— Alguma; gente escolhida, já se vê. Amanhã iremos passar o dia em Caxangá!

— Oh! Eu não volto de manhã cedinho?

— Qual!

— Papai maça-se deveras!

— Teu pai é um grosseirão de lei. Se não fosse teu pai e meu compadre, eu o trataria hoje como merece!

— Por que, Virgem do céu?

— Imagina que lhe falei na soirée, e o pobre do homem franziu o nariz, como  se eu te fosse levar à tua perdição e ao teu mal!

— Ah! Ele franziu o nariz?

E Rosinha mirou-se ao espelho, parando por um instante os olhos inteligentes  na sua imagem um pouco desmaiada e pensativa. As mãos que acolchetavam o  vestido caíram frias ao longo do corpo.

As lufadas do vento norte traziam o longínquo uivo do vagão que se aproximava.


CAPÍTULO III

Rosinha entrou, às oito horas da noite, no salão festivo, pela mão de sua  madrinha, agitou-se entre damas e cavalheiros um murmúrio de admiração.

A filha de José Paz estava bela como o amor e irradiante como a estrela da  manhã. Já não trazia sobre o corpo o vestido com que viera do Jordão, mas um fino,  um transparente tule, através do qual os nítidos contornos debuxavam-se com uma  riqueza oriental. Seus longos cabelos negros, enroscados pela artística mão de um  cabeleireiro francês, emolduravam-lhe, mais brilhantes que um diadema, a  expressiva e sentimental cabeça.

De seus olhos, surpresos pela luz e pela harmonia vibrante da orquestra,  escapavam-se doridos e tênues lampejos.

O vestido roçava dois palmos o tapete do salão; e em seu colo abundante,  largo e nu, um fio de pérolas ofegava ao movimento precipite da respiração opressa.

A ricaça apresentou a afilhada a todos os seus convidados.

Cada qual admirava com maior entusiasmo os preciosos dotes da recém-chegada, cabendo às mulheres a parte da inveja na colheita geral de aplausos.

Rosinha nem estava triste, nem satisfeita. Faziam-lhe mal aquelas arandelas fulminantes, a cujo reflexo era o seu perfil representado na limpidez de 20 espelhos  enormes. Por vezes cuidava escorregar na pérfida lanugem do tapete espesso.

Quando a orquestra atacou com brio e delirantes adejos uma valsa de  Schuloff, então muito em moda nos primeiros salões de Pernambuco, a alma da  criatura, habituada a ouvir apenas o sussurro dos rios e a cantiga magoada dos  pássaros, sobressaltou-se e deixou-se voar na correnteza daquelas novas  harmonias, como uma pétala solta é arrebatada na torrente impetuosa da chuva.

O que era aquilo, santo lenho de Cristo? Aquilo que a enleava, que a  perturbava, que a consumia, e ao mesmo tempo fazia derramar ondas de perfume e  de ignotos desejos no seu coração extático?

A valsa reboava, tremenda e voluptuosa confundindo os pares e dobrando a  cabeça das elegantes sobre o ombro trêmulo dos cavalheiros.

Rosinha seguia todo aquele panorama vertiginoso com essa espécie de terror  e de alegria que se experimenta quando se engole um bocado de haxixe. O leque  fechado estremecia no seu regaço, torcido pelos dedos febris e impacientes. Com a pele úmida, a boca entreaberta, o seio convulso, ela acompanhava os compassos delirantes da valsa, agitando sob a fímbria da cambraia o pé sufocado nas dobras do cetim branco.

Terminada a valsa, a milionária acenou-lhe que se aproximasse. A filha de  José Paz caminhou até o divã em que estava a madrinha, aterrorizada e pálida,  como se houvesse cometido um crime.

— Que tens tu?

— Por que, minha madrinha?

— Vejo-te branca que me pareces uma defunta!

— É verdade — acudiu uma senhora presente; — talvez o calor da sala lhe  faça mal!

— Não, não tenho nada respondeu a menina.

E por acaso viu-se retratada no primeiro espelho, sombria e lívida de causar  espanto a si própria.

— Vamos lá dentro. Vem, Rosinha!

A menina aceitou o braço da ricaça, e punha o pé no rendado capacho do  corredor que ia ter à sala do refeitório quando a orquestra deu o sinal de uma  quadrilha francesa.

— Por que tremes Rosinha? Tens alguma coisa por força!

— Tenho medo da música, minha madrinha — volveu ela, abrindo a boca em  um sorriso melancólico.

— Queres dançar esta quadrilha?

— Não.

— Ora!

— Nem sei o que sinto, parece mesmo que não estou boa!

— É o terror pela admiração que causas hoje aqui, faceira!

Rosinha abriu o leque e volveu os olhos para a sala. Os pares da quadrilha  tomavam posição com a disciplina imprescindível que a elegância impõe aos seus  adeptos. Havia falta de uma contrafigura.

Rosinha, silenciosa, deixava o leque pairar sobre o seu seio alvo, como a asa  da borboleta que refresca o cálice de uma rosa.

Um cavalheiro aproximou-se às duas senhoras. Era um rapaz de 25 a 26  anos, de olhar penetrante e semblante enérgico. Dirigiu-se à milionária, beijando-lhe  antes de tudo a mão enluvada, com um aprumo digno de figurar na galeria da  regência francesa.  

— Serei tão feliz que minha tia me aceite para par desta quadrilha? O Couto  está furioso; não tem vis-à-vis. Olhe!

— Ah! Só por isso que você me convida?

— Que idéia, minha tia! Desde o princípio da soirée só pensei em ser seu par  em duas quadrilhas, uma polca e três valsas inglesas.

— Tá, tá, tá!... Pois agradeço-lhe muito a fineza senhor meu sobrinho!

— Não aceita!  

 — Propriamente não; mas resgato a minha recusa oferecendo-lhe coisa melhor.  Por um naturalíssimo movimento encontraram-se os olhos do moço e os olhos da filha de José Paz.

O cavalheiro saudou-a. Rosinha correspondeu ao cumprimento enleada e  confusa.

— Meu sobrinho Adriano Carvalhal! Minha afilhada Rosinha!  Foi a apresentação feita com a mais gentil graça pela dona da casa.

A orquestra deu princípio à quadrilha. O Couto impacientava-se no meio de  uns colarinhos altíssimos, Adriano arqueou cortesmente o braço, onde a mão da   menina descansou timorata como o pé de um pássaro no poleiro de uma armadilha.

Rosinha pouco entendia dos hábitos excepcionais do mundo elegante, o  grande mundo, assim chamado para distinguir-se do... Pequeno, talvez. Ela  freqüentara algum tempo as aulas de um bom e austero colégio de irmãs de  caridade no Recife, bairro da Boa Vista, onde aprendera com extrema finura de  espírito os simples rudimentos da educação feminina. José Paz tanto resmungou,  tanto gesticulou, tantas revoluções proporcionou aos ouvidos e aos olhos da  comadre, que a menina saiu do colégio, e foi esconder a sua formosura nas frescas  paisagens do torrão natal. Ali a vê-la a madrinha; e daí vinha ela raras vezes ao  Recife, acompanhada sempre pelas despedidas casmurras do pai.

— Agora veja lá, comadre, se a acostuma na lordeza um ano inteiro!

— Que quer dizer com isso, compadre?

— Quero dizer, com perdão de V. Mcê., que a pequena nasceu debaixo da  palha, e que a vista da riqueza dos grandes pode tontear-lhe a cabeça!

— Ora, não diga asneiras.

Quando Rosinha estendeu a mão ao cavalheiro na primeira figura da  contradança, sentiu um suor frio orvalhar-lhe a espádua ardente. Há que tempo não  dançava ela!

Muitos meses antes, no Jordão, um tal Chico valente (perdoa-me, valente, se  não te escrevo o apelido com letra maiúscula!) arranjara um baile em casa, para  comemorar não sei que fausto aniversário, que terminou por um rasgadíssimo  samba. Dançou-se quadrilha nessa ocasião. Quadrilha acompanhada a guitarra, a  maracá, a violão e a clarineta! Uma clarineta que teve o estupendo poder de inventar  uma porção de notas desconhecidas, na música, até hoje!

Mas a mulher sabe por instinto dançar, como a ave sabe voar, e o peixe cerzir  a água com as ariscas barbatanas!

Quando o poder criador arrancou da entranha da terra o diamante, ordenou-lhe "Brilha!" À flor: "Perfuma!1' Formando o homem, disse-lhe: "Ama!" Criando a mulher, exclamou: "Dança!"

Rosinha deu por terminado o intróito da quadrilha, respirando sofregamente como alguém que escapou de afogar-se, e que volta à tona da água. No entanto dançava com a mesma ternura e mimo com que o cisne retalha a onda tranqüila, e um casal de andorinhas procura-se, espreita-se, persegue-se, e beija-se no éter transparente.

Um jornalista que estava a um canto da sala tomando notas traçou a seguinte, esmerando-se no corte da letra:

"Toalete branca de tule; pérolas ao pescoço e nos braços; olhos profundos como a noite, graça de Vênus na dança; movendo o talhe e derreando meigamente a eloqüente cabeça".

Salvo o estilo, o jornalista saiu-se perfeitamente no retrato da princesa do  baile. É a frase habitual.

Adriano bebia os perfumes daquela basta e escura cabeleira, estremecendo e aspirando.

Era um rapaz de espírito; falava pelos cotovelos, e tinha uma maneira especial e atraente de interpelar as damas em geral. Ao pé de Rosinha, Adriano  ficou mudo como as esfinges de faraó!

A filha de José Paz pedia aos santos de sua devoção que fizessem o milagre  de encurtar-lhe o suplício da quadrilha. Toda vez que a música forçava-a a sujeitar-se às regras geométricas da dança, a menina cobria-se de uma fugitiva palidez,  substituída imediatamente pelas chamas carmíneas do enleio virginal.

As senhoras que formavam o quadro da quadrilha devoravam-na com olhos  de Juno encolerizada. Nem as via sequer a filha de José Paz!

Afinal Adriano Carvalhal, depois de uma tremenda luta com a consciência,  que o acusava de imbecil, dirigiu a palavra ao seu formoso par:

— É a primeira vez que a vejo aqui — murmurou ele, como um colegial medroso.

— Em soirée — articulou Rosinha, apalpando uma por uma as palavras  indecisas — é a primeira vez que eu venho à casa de minha madrinha. Estive aqui, há dez meses, pouco mais ou menos, no dia em que se casou D. Florinda; mas não  se dançou nessa noite.

— Ah! No dia do casamento de minha tia? Eu também estava longe por esse  tempo. Hoje é que lamento a minha involuntária ausência!

A filha de José Paz aventurou por sua conta e risco algumas perguntas vagas:

— O senhor foi o sobrinho de minha madrinha que fez uma viagem...?

— Ao Ceará? Justamente. Mas por mais que percorresse aquela formosa  província, não me lembra de ter encontrado olhos iguais aos que me deslumbram  hoje!

A filha de José Paz, sem compreender o sentido daquelas artificiosas  palavras, olhou profundamente para Adriano.

O turista mordeu a ponta do bigode, e abaixou os olhos, confuso.

Estava acabada a quadrilha. Rosinha aceitou o braço do cavalheiro e ambos  cruzaram por algum tempo o iluminado salão.

Deram de rosto com a milionária que discutia modas com uma professora das  irmãs de caridade.

— Então? — exclamou a tia de Adriano, sorrindo à afilhada. — Como te  sentes agora, má?

Adriano acudiu imediatamente:

Rosinha estremeceu, e respirando com uma doçura encantadora:

— Incomodada, não; mas não me sentia bem nesta sala. Parecia-me que a  luz incendiava-me, e as flores me sufocavam!

— Oh! Mocidade! — interrompeu a milionária, batendo com o leque no ombro  nu da afilhada. — Caprichos que passam!

— Realmente — volveu Adriano Carvalhal —, faz nesta sala um calor  insuportável. Não será possível, minha tia, darmos um passeio pelo terraço?

— Tanto é possível, que quase todas as senhoras lá estão. Leve a Rosinha; leve-a. Vá, minha flor! Reparem no efeito das arandelas de cor sobre o jardim!

— A senhora é uma fada, minha tia!

— E tu és um lisonjeiro, meu sobrinho. Que queres? É o privilégio da velhice:  encantar por intermédio de fantasmagorias, já que a realidade afasta do rosto o  encanto verdadeiro!

— Queixa-se por ter hoje 20 minutos mais de idade?

— Bom, bom, deixemo-nos de denguices. Mal sabe você que o elegante par  que lhe dei conta na presente hora... Oh! Acertei: são dez horas e meia, justamente  a hora em que ela nasceu!

— Minha madrinha! — exclamou a menina, acesa em rubores.

Adriano Carvalhal embebeu a vista ansiosa nos olhos trêmulos de Rosinha.  Estava formosa a filha de José Paz, formosa e suave, como um raio de lua no seio  de uma rosa.

Foram ao terraço. O terraço dava sobre o sítio, em cujas árvores ondulavam  aos afagos do vento noturno miríades de lampiões furta-cores. O céu, recamado de  estrelas, estendia-se como um tapete ideal aos soberanos passos da lua serena e  melancólica.

Várias senhoras e cavalheiros, de bruços no encosto de pedra, conversavam  entre risos, adejos de leques e momos graciosos.

Adriano Carvalhal conduziu Rosinha a uma parte mais solada do terraço, e aí ficaram ambos por alguns momentos a contemplar as irradiações da noite.

Adriano sentia-se fascinado. O poder daquela ingênua formosura, meio  selvagem e meio civilizada, saqueava-o por todos os lados.

Onde estava o dândi dos salões, o elegante dos passeios, o turista corajoso e insaciável! Chegara a sua vez de compreender o símbolo de Hércules fiando aos  pés tentadores de Onfália.

A noite entornava entre ambos o seu tesouro de harmonias, de provocações,  de delírios magos e insensatos. Ouvia-se perto do terraço suspirar a água do  repuxo, e na escuridão das moitas os grilos chilreavam monótonos e tristes. Rosinha  lembrou-se do Jordão, de seu pai, do seu quartinho alvo e pobre, de suas  camaradas da margem do rio, e debruçando-se no paredão, embebeu os olhos  aclarados pela lua no mistério que cercava os tranqüilos arvoredos.

— Que bela noite! — dizia Adriano com a voz lenta e inspirada. — Noite da  poesia! Noite do amor! Noite da mocidade! Dir-se-ia que as almas dos que amaram  em vida transformaram-se em raios de estrelas e raios de lua, para ensinarem aos  que vivem o sagrado romance do amor!

Rosinha pendeu para o lado de Adriano Carvalhal o ouvido atencioso, e  começou a embalar-se, como uma garça, nas vagas melodiosas das palavras dele.  O moço prosseguiu:

— Não sei se todos sentem o que eu sinto nestas noites tranqüilas e luminosas. A noite é para mim um livro encantado, onde minha alma aprende a ler  os mistérios do mundo desconhecido. Que voz humana reproduz os sons magoados  do vento nas ramas espalmadas do arvoredo? E o murmúrio da água? Não se  assemelha ao rumor indizível de palavras celestes, que nos convidam a amar e crer   na ventura, embora fugitiva, da existência?

Os olhos de Rosinha banharam-se em clarões ideais; todo o seu ser tremia  subjugado por um peso doloroso e doce ao mesmo tempo. A lua derramava ondas  de leite e de luz no regaço da noite amorosa.

Ressoou no salão da festa o clamor apaixonado de uma valsa.

Rosinha ergueu a fronte, como se fora livre de um pesadelo cruel! Estava  pálida, e de sua pupila negra jorravam deslumbrantes raios.

— Não valsa? — perguntou ela a Adriano.

— Impacienta-a a minha companhia?

— Oh! Não! Não é por isso!

— Gosta da valsa?

— Eu? Muito; mas não sei valsar.

— Impossível!

— Pergunte a minha madrinha. Se o senhor soubesse o que eu senti, assim  que ouvi tocar aquela música, ainda agora!

— Diga-me!

— Nem eu sei explicar a mim mesma! Parece que criei outra vida, e que ao mesmo tempo a morte agarrou em minhas mãos. Veja.  Adriano Carvalhal escondeu entre as suas a mãozinha da menina, palpitante  e fria como o gelo.

— Que bonita noite! — acrescentou ela afastando as mãos e voltando-se para  o céu.

— Noite para o amor

— Noite para a saudade!

— Tem saudades?

— Que quer que lhe responda, Deus de misericórdia, se eu mesma pergunto  ao meu coração o que isto é!

E ocultou o rosto na seda entreaberta do leque.

A milionária entrou no terraço nesse momento

Rosinha mudou bruscamente de posição, sentindo no ombro a mão de sua  madrinha.

— Que tens, Rosinha?

— Dores de cabeça minha madrinha, Más isto passa!

E estremeceu, recebendo o choque elétrico da vista de Adriano Carvalhal.

— Venham para a sala. Não tarda a ser servido o chá.

Adriano disse a Rosinha perto da sala:

— Volta amanhã para o Jordão?

— Volto.

— De manhã ou à tarde?

A dona da casa acudiu a estas últimas palavras:

— Que é lá isso, minha rica? Amanhã passamos juntas o dia em Caxangá!  Adriano teve um lampejo de alegria.

— E papai, minha madrinha?

— Pois eu não o preveni? Só no trem das oito horas, depois de amanhã, é  que partes. Irei contigo.

Durante o resto da noite, Rosinha não dançou mais uma quadrilha. Adriano  Carvalhal imitou-a, apesar dos rogos e das maliciosas ameaças da tia.

No dia seguinte, em Caxangá, correu tudo às mil maravilhas. Rosinha, porém  conservou-se triste, sem saber por quê, triste como se o luto houvesse invadido os  límpidos domínios de sua alma.

A madrinha indagou curiosa da causa daquela tristeza.

A menina sorriu melancolicamente, e respondeu ao acaso:

— Lembranças do Jordão! A noite, igual à da véspera, desceu cheia de  aromas, de estrelas e de encantadores mistérios.

Adriano Carvalhal perguntou-lhe se estava arrependida de ter vindo ao Recife.

— Estou.

O moço contemplou-a surpreendido.

— A sua história de ontem me fez mal. A história das almas que voltam para  ensinarem a gente a amar e a crer na felicidade!

Quando Rosinha chegou ao Jordão, José Paz já ardia de impaciência.

Recebeu a comadre e a filha com ar carrancudo e porte brutal.

— Aqui lha trago. Fez figurão!

— Faço idéia!

— Dançamos toda a noite!

— Pois tu também dançaste?!

— Uma quadrilha só, meu pai, para fazer a vontade a minha madrinha,  A fronte de José Paz desenrugou-se um pouco, e das narinas empoladas  saiu-lhe a respiração ofegante e larga.

A tarde a milionária despediu-se da afilhada e do compadre:

— Adeus, Rosinha. Adeus, compadre!

— Até, comadre, até!

— Até breve, se Deus quiser!

— Com a ajuda de Maria Santíssima!

Quando o comboio partiu era ave-maria. O céu argenteava-se aos primeiros  clarões da lua.

Rosinha estava pensativa e muda, José Paz olhou-a entre as duas pupilas, e:  

— Tiveste uma saudadezinha do teu velho, lá naquelas festanças da cidade,  minha filha?

Rosinha abriu-lhe os braços, e atirou-se-lhe ao peito chorando convulsivamente.  José Paz, admirado, levantou a cabeça da filha e quis certificar-se de que  realmente eram lágrimas que lhe banhavam o rosto.

— Mas tu nunca choraste assim, menina! Que diabo de feitiço é este?!

Os soluços e as lágrimas redobraram de intensidade. José Paz carregou o  sobrolho e dirigindo os olhos para as bandas do Recife:

— Ah! Senhora comadre! — disse ele consigo. — Parece-me que você já está me começando a perder a pequena!


CAPÍTULO IV
A alma de Rosinha sobressaltou-se daí por diante, mais de uma vez, com a  lembrança da noite da festa. Os rumores da música, o cheiro das flores e o cheiro  das cambraias roçagantes, o fulgor vertiginoso das luzes, todo o romance  provocador do baile e dos salões abria-se de par em par ante os olhos estáticos do  seu coração virginal.

No recato sossego do humilde quarto do Jordão ela procurava debalde  sufocar os gritos da recordação pungente e deliciosa que a atormentava sem cessar.  Era uma luta tremenda em que o seu espírito estorcia-se ofegante.

Os luminosos fantasmas daquela noite do delírio e do prazer vinham reclamar  à cabeceira da menina uma lágrima ou um sorriso de sincera reminiscência.

Ela abria a janela da alcova, debruçava-se febril, como se quisesse atirar-se à  estrada deserta, e embebia os olhos abrasados nos nevoeiros esparsos.

— Meu Deus! — exclamava, unindo ao seio as mãos palpitantes. Isto não  acabará nunca?

José Paz recebeu em sua alma, como um choque imediato, a melancolia da  filha. Ficou sombrio, mudo, intratável, ele que era a tagarelice em carne e osso!

Foi aos Prazeres onde tinha negócio a tratar, e quando passava em frente à capela, viu no adro o vigário da freguesia.

José Paz cortejou-o humildemente.

— Por aqui, sr. José? Isto é volta de negócio, hein?

— É verdade, sr. vigário. Vendo falar com o Manuel do Ó a respeito de umas  tábuas de pinho que me encomendaram dos Duros.

— Chegue-se, homem, chegue-se. Que cara é essa? Pareces-me  assombrado! Tem te ido mal a vida?

O vigário era um homem repolhudo, sincero e de excelentes qualidades  intelectuais. O povo dos arredores e da freguesia adorava-o e recebia-lhe as  palavras como bálsamo para todas as dores.

É fora das cidades que ainda se pode encontrar hoje o verdadeiro culto e o   sagrado respeito que o povo consagra aos sacerdotes de Cristo.

Em abono da verdade, declare-se já que o padre da roça, ou cingindo-nos à gíria do norte, o padre do mato, com dificuldade poderá conseguir ser mau entre as  ovelhas do seu rebanho. Dir-se-ia que a solidão e os costumes inocentes desses  lugarejos são incentivo profundo para a religião e para o comércio espiritual dos  pastores da Igreja com os sentimentos de caridade, pobreza e santidade, impostos  pela doutrina de Jesus.

Fiéis vivem ali em face da natureza brutal, virgem, robusta, cheia de divinos  murmúrios e lampejos misteriosos, como os primitivos anacoretas no oásis do seu   deserto, com a alma aberta às irradiações do céu e aos saborosos favos da  meditação.

O crime refugiado nos centros das faustosas capitais deixou em invulnerável  tranqüilidade o campo, onde se manifesta a plena luz a onipotência da virtude e a  virtude da religião.

E, depois, tudo por lá explica a harmonia desse calmo poder, que faz girar a  Terra tumultuosa, que acende o facho eterno dos astros, e derrama no cálice das  flores a gota de orvalho e a gota de ambrosia.

Crescem as árvores sem tropeços nem estufas, salta do botão a rosa livre do  monstruoso enxerto, deslizam as fontes, à vontade, entre as gramas verdes e por  baixo das lianas virgens que se entrelaçam, jorram as cachoeiras, espalmam-se as  ramas, suspiram as aves e cruzam-se no ar as borboletas de ouro, sem que a mão  do botânico, a sanha do naturalista assassino, estorve-lhes o caminho, mude-lhes o  rumo, corte-lhes as raízes, arranque-lhes as penas e cosa-lhes as asas  independentes!

Como não ser religioso, não ser bom, não ser puro e nobre, cercado de tanta  pureza e de tanta liberdade?

José Paz aproximou-se ao vigário, descobrindo-se com o mais infantil respeito.

— Então? Não me respondes, homem? Estás com a cara amarrotada hoje!

— Nem sempre a gente é feliz, sr. vigário!

— Conta-me lá as tuas infelicidades, anda. Senta-te aqui.

Acondicionou-se o padre sobre o musgoso paredão que rodeava o adro, e  acenou a José Paz que fizesse o mesmo.

— Obrigado a Vossa Reverendíssima. Eu pouco me posso demorar. Ainda quero voltar com dia ao Jordão.

— A propósito, e tua filha?

José Paz devorou um retumbante suspiro.

— Vai de boa saúde, graças a Maria Santíssima.

O padre fitou lentamente o semblante carrancudo do matuto.

— Ora vamos, sr. José; você alguma tem que me esconde.

— Eu!

— Sim, você. Suspirou falando em sua filha de maneira a fazer-me acreditar  em alguma coisa má que lhe tenha acontecido.

— Pois aí vai, sr. vigário. Pão, pão, queijo, queijo.

— Desembucha, homem!

— A pequena foi há poucos dias a uma... Uma, não sei o que, um baile,  parece-me que se chama também baile, no Recife, em casa da madrinha.

— A tal senhora rica?

— Isso mesmo. Eu teimei em não deixá-la arredar pé de minha companhia;  mas Deus quer, Deus manda, o depois eu devo favores a comadre!

— Sê grato que o céu te agradecerá.

— Foi-se ao tal baile a menina, e voltou-me triste, que é mesmo de espantar a  gente. Leva as tardes inteiras sem tugir nem mugir, ora lendo em um livro, ora  revirando os olhos para o céu.

— Que lê ela com tanto interesse?

— Disso não entendo eu, sr. vigário. Mas a pequena foi sempre amiga de  livros, e me parece a mim...

— Parece-te a ti, toleirão, que deverias ter proibido essas leituras, que nunca  trazem ventura aos espíritos fracos e às almas vacilantes. Queima-lhe todos os  livros.

— Oh! Sr. vigário!

— Queima-lhe os livros; é o primeiro passo para a salvação dela, e em  seguida... Mas tu não o farás!

— O quê?

— Não a deixes passear muito pelo Recife, nem figurar em casa de gente  rica. A moça pobre, José, só possui a sua virtude que é o seu dote e a sua  salvaguarda. Os bailes quase sempre são os inimigos da virtude!  José Paz deu um salto mortal, e fez-se da cor da cera.

— Não me compreendeste, homem. Tua filha é menina inteligente sagaz e  delicada; conheço-a perfeitamente, e mais de uma vez lhe ministrei com as minhas  mãos o doce corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se ela fosse uma brutinha, eu  nada te diria; porém as relações com a madrinha, o tempo de colégio, e mais do que  tudo, a sua finura de inteligência, ser-lhe-ão de pouco amparo, desde a hora em que  o inimigo começar a fazer das suas!

— Vou queimar os livros todos!

— Estas tristezas dela têm por origem a idade e o melindre de sua natureza  especial.

— Oh!

— Que é lá?

José Paz ia dar saída à palavra, e estacou de súbito.

— Fale! Fale, sr. José Paz, que fala com um amigo.

O matuto abaixou a voz:

— Rosinha trouxe uns vestidos, que a madrinha lhe deu, e umas bugigangas  esquisitas.

— Incomoda-te isso?

Os olhos de José Paz fulguraram como as asas de um vaga-lume.

— Vou queimar tudo! Exclamou ele vitoriosamente.

— Nada de bestidades, José!

— Nem bestidade, nem meia bestidade, sr. vigário! Ainda ontem estava a  pequena a botar uns olhos tristes por cima do vestido estendido na cama, que fazia  dó, O tal vestido cheio de requififes e trapalhadas com que ela foi ao baile da  madrinha!

— Isso é próprio da idade, homem! Deixa a pequena. Em se tirando à mulher  o vestido, é o mesmo que aparar as asas de um curió! O vestido é a asa dela!

— Por isso — replicou José Paz sentenciosamente — não é preciso que ela  voe!

O vigário riu-se da saída do matuto, e pondo os olhos no horizonte, onde se  aglomeravam com instantânea rapidez nuvens sobre nuvens:

— Vá tratar dos seus negócios, vá, José, que não tarda por aí algum chuvisco  forte. Deus o guarde, e também à pequena.

— Amém, sr. vigário, e a Vossa Reverendíssima por muitos anos.

José Paz despediu-se do padre e já distava uns 20 passos do adro, quando o  vigário o chamou de novo.

— Não faça asneiras José! Com bons conselhos e carinhos é que se levam as almas delicadas. Se tu entornas o caldo!

— Vossa Reverendíssima sabe quanto eu quero àquela filha; é a menina dos  meus olhos e o sangue de minhas veias. Mas...

— Mas o quê? Acaba!

— Mas queimo-lhe os vestidos! Lá isso queimo!

E dobrou a encruzilhada que o conduzia à casa do Manuel do Ó.  

O vigário gastou alguns momentos a contemplar a viagem ondulante das  nuvens, que corriam para o poente.

José Paz chegou ao Jordão pela volta das sete horas; era noite fechada e a tempestade, que de todo havia desaparecido, fora substituída pelos meigos suspiros  da aragem noturna e pelo revérbero dos astros no firmamento tranqüilo.

Rosinha estava à janela do seu quarto quando o pai bateu à porta.

José Paz entrou pensativo na pequena e pobre casa de sua residência. Deu a  mão a beijar à filha e sentou-se com estrondo em um velho banco, que gemeu  amedrontado.

— Falou com o Manuel?

— Falei, mas não se arranjou nada. Ando agora na maré das caiporas!

— Por que diz assim meu paizinho?

A menina enrolou os braços no pescoço do matuto, e encostou-lhe à barba hirsuta o rosto perfumado.

José Paz estremeceu, vítima de um ataque de ternura e com a mão livre  acariciou a onda dos cabelos negros da menina, desmanchados sobre as costas  virginais.

Imediatamente, porém como se fora mordido por uma cobra traidora, ele  afastou de si Rosinha, e levantando-se de repente:


— Tu me queres fazer uma coisa que vou pedir?

A menina contemplou-o pasma.

— O que é?

— Está uma noite que faz gosto, e na porta do Chico há gente muita. Eu vou  lá dizer que te venham buscar para um passeio.

— Mas meu pai...

— Vives aqui metida agora, que é um agouro tal e qual! É bom saíres, tomar  ar, respirar à farta o próprio sr. vigário...

— Que tem o sr. vigário? — acudiu Rosinha de minuto em minuto mais  admirada.

— Nada; com o sr. vigário a coisa é outra. Fazes-me a vontade, não fazes?

— E vosmicê também vem?

José Paz recuou dois passos como se o apanhassem em flagrante delito.

— Eu não! Eu fico! Preciso ficar mesmo!

— Para quê?

— Ai! Ai! Isto é muito perguntar, minha dona.

— Só, não o deixo.

— Para ir ao Recife com tua madrinha me deixaste!

— Papai!

— Para ir ao baile da madrinha também me deixaste!

— Mas...

— Para dançar com o diabo também me deixaste!

— Não fale assim, meu Deus!

José Paz estremecia vivamente e o suor gotejava-lhe da cabeça descoberta.

— Portanto — terminou ele com voz firme e as sobrancelhas torcidas -, hás  de fazer-me o favor de me deixar agora também!

E saiu arrebatadamente de casa.

Duas ou três raparigas do lugar, que estavam à porta do Chico valente,  vieram buscar Rosinha.

A menina envolvera-se em um xale e esperava o resultado das   extravagâncias paternas. O que seria aquilo? Por que motivo José Paz teimava em  ficar só em casa naquela noite? Rosinha perdia-se em um dédalo de suposições  impossíveis. Quando ela saía no grupo das raparigas, José Paz entrava em casa e  fechava-se hermeticamente por dentro.

O matuto não dava para ladrão, decididamente.

Ao penetrar no quarto da filha as pernas oscilavam-lhe, como um mato de  bambus fustigados pelo vento norte. Os olhos mexiam-se-lhe nas órbitas, à  semelhança de duas quase extintas brasas, que de vez em quando desprendem um  fugitivo clarão sanguinolento. Parou, prestando ouvido aos rumores suspeitos. Mas  apenas a aragem nas árvores e o som flébil das vozes afastadas turbavam o  repouso da noite. José Paz criou coragem, e abriu com a mão febril o baú da filha.  

O quarto estava às escuras; por precaução o matuto apagara o candeeiro e o  velho lampião, únicas luminárias dos seus domínios. Foi pelo tato que ele se  aventurou entre as cassas, crivos e chitas do pobre guarda-roupa da menina.  Apalpou nos cantos do baú, e seus dedos curvos arranharam a capa de cinco ou  seis livros. Era a biblioteca de Rosinha: o Simão de Nantua, o Tesouro de Meninas,  Paulo e Virgínia e outras produções da musa inocente e simples. O larápio, que  descobre um saco de moedas, não exala suspiro de maior satisfação do que o que  rugiu nas cavernas do peito de José Paz. Apertou nas mãos frenéticas os livros e  uniu-os ao seio úmido e agitado.

Com a outra mão pôs-se a reconhecer de um a um os vestidos da filha.

O primeiro que caiu-lhe nas garras foi o da soirée do Recife. Era ele, era ele  com toda a certeza! Aquela doçura da cambraia, as rendas e o perfume, até o  perfume guardado nas flácidas dobras, como uma pura recordação!...

Os dedos nervosos fizeram do vestido uma trouxa brutal e o arrancaram do  baú violentamente, enquanto um grito de prazer voava da garganta de José Paz.  Depois do vestido, o lenço bordado, os laços da cintura e dos ombros, as botinas de  cetim e o leque tiveram o mesmo destino impiedoso.

José Paz fechou cautelosamente o baú, e dirigiu os passos trôpegos para fora do quarto. O latido de um cão na vizinhança fê-lo parar trêmulo no limiar como um  malfeitor surpreendido A respiração assoviava-lhe através das úmidas narinas.

Carregado com o leve fardo, chegou à pequena cozinha e tirou da janela uma  acha de lenha inflamada. Sacudiu-a no ar, e as chamas estalando com a resina do  graveto aclararam o compartimento. A porta da cozinha dava para uma espécie de  quintal, um terreiro despido de árvores, em cujo fundo corria uma parte da mata  espessa.

Lançando ao meio do terreiro os vestidos e os livros José Paz tornou à cozinha e arrebanhou uma multidão de galhos secos e rolhas de cajueiro. Voltou de  novo ao lugar onde deixara a pilhagem e, ajuntando em um molho compacto os  galhos e as folhas, aproximou-lhes a chama do graveto. Repentinamente as  labaredas da fogueira contorceram-se na pálida escuridão.

De joelhos, defronte das chamas, José Paz quis saborear por partes distintas,  como um bom bebedor, gole a gole, a sua vingança e os resultados agradáveis de  sua desafronta paternal. Lançou nesse novo auto-de-fé os livros em primeiro lugar,  um por um, rasgando-os as folhas purificadas pelos olhos da ingênua leitora.

Quando se faziam em cinzas os volumes do Tesouro de Meninas, ele  exclamava, batendo palmas e soltando uns uivos de alegria lupina:

— Queima-te, diabo! Queima-te, cão! Arde p'raí, tinhoso de uma figa!

Sucedeu ao Tesouro de Meninas o proverbial Simão de Nantua, a este o  mimo de Bernardino de Saint-Pierre, e assim por diante. José Paz saboreava o  estrago com o entusiasmo dos inquisidores espanhóis nas suas piedosas vinganças.

Chegou a vez do vestido e das restantes vítimas.

O leque abriu o caminho. As elegantes varetas de sândalo racharam-se ao  primeiro contato do fogo.

Um meigo perfume elevou-se em espiral da chama azulada, como o incenso  da formosura, o incenso do amor, o incenso da mocidade!

As botinas arderam com uma velocidade espantosa, José Paz, alegríssimo,  alegríssimo e rubicundo, ia lançar à fogueira o vestido quando bateram repetidas  vezes à porta da casa.

A mão erguida continuou a sustentar longe da chama a alva túnica, que o vento afagava como afaga a nuvem e as espumas.

As pancadas na porta reproduziram-se com mais vivacidade. José Paz,  atordoado e confuso lançou à fogueira o vestido e correu à casa, Sem pensar  sequer em desmanchar os vestígios do seu crime, o matuto puxou os ferrolhos da  porta.

Era Rosinha.

— Que escuridão! — disse ela.

José Paz conservava-se calado.

Nesse momento abriu-se na fogueira mais larga labareda que refletiu até a  estrada.

— Que luz é esta?! — exclamou Rosinha admirada. — Que vem a ser este fogo?

E correu à cozinha. José Paz seguiu-a como o perdigueiro segue as pistas do  caçador precipitado.

Rosinha viu a fogueira no terreiro e dirigiu-se para lá. Voavam lutando com o  incêndio alguns pedaços da cambraia e das rendas. Duas ou três capas de livros,  torcidas e negras, feriram os olhos da menina que duvidou do que via.

— O que é isto, meu pai?

— Queimei tudo! Tudo! — bradou José Paz, com um grito de entusiasmo... —  O teu vestido, a ventarola, os livros, os sapatos, tudo o que te estava tirando o sono  e fazendo-te ficar triste à toa!

— Mas está doido, Deus do céu!

José Paz ria-se freneticamente e agarrando nas mãos geladas da filha:

— Já o demônio não te há de tentar mais, nunca mais, nunca mais! Foi o  vigário quem me ensinou o remédio!

Os negros olhos de Rosinha acompanharam os derradeiros fragmentos de  cambraia, que a aragem roubava ao fogo e perdiam-se na escuridão da noite.


CAPÍTULO V

A milionária não pôde suportar por muito tempo a ausência da afilhada.  Grande amor que lhe tinha? Sinceros desejos de fazer venturosa aquela gentil  menina, tão digna de pisar as sodas da opulência e sentar-se aos fartos banquetes  da felicidade?

Não sei, nem é da minha competência entrar nesses labirintos femininos de  onde raramente consegue o curioso salvar-se com munições e bagagens. A alma  humana é enigmática, e a alma da mulher é incompreensível. Um capricho, um  simples capricho, às vezes, decide do futuro dessas criaturas adoráveis e adoradas,  a cujos pés espalhamos com o mesmo sorriso, a mesma crença, as mesmas  aspirações, as flores da mocidade e os tesouros da velhice.

A comadre de José Paz já não pertencia à elegante falange das rainhas da  sociedade, cujo leque tem mais força e soberania do que os cetros reais.

Ela ia declinando como um belo dia de verão, e por seu rosto, outrora  encantador, estendiam-se lugubremente as névoas do crepúsculo e o frio da noite.

Passara essa senhora a sua mocidade derramando com prodigalidade  espantosa pelos salões e pelas festas inebriantes todos os momos da faceirice e  todas as gentilezas da mais tentadora filha de Eva.

No Recife era altamente considerada, e o seu nome ocupava um dos  primeiros lugares nos arquivos da sociedade do fino tom.

Ninguém melhor do que ela passeava sobre o tapete das salas as  deslumbrantes toaletes, e Celimena invejar-lhe-ia o manejo do leque palpitante.

Foi a dama, a princesa. a leoa dos bailes pernambucanos. Reservo o seu nome na mais secreta página da minha carteira, por não me ser dado estampá-lo  em um escrito que será lido com certeza por... 15 a 16 pessoas!

A milionária amava Rosinha. Por impulso espontâneo de coração, por  originalidade, por excentricidade, por extravagância mesmo, se admitirmos a  palavra, mas amava sobejamente a formosa filha de José Paz.

Rosinha fazia-lhe o efeito das flores franzinas e débeis que crescem à sombra  da árvore protetora.

Ela sentia um certo orgulho, uma louvável vaidade em amparar aquele meigo  fruto do mato, que veio por acaso medrar à sombra de sua fortuna. Não era  unicamente a amizade que a impelia aos braços de Rosinha; era, mais do que tudo, o desvanecimento, o entusiasmo promovido pela prática das ações generosas.  Este é o segredo da alma da mulher; a mulher ama ou odeia; não há meio  termo. Dentro desses dois sentimentos transparece por vezes a vaidade, espécie da  meia tinta, meio clarão e meia sombra para a harmonia do quadro.

Rosinha tornou-se necessária à existência da milionária, como o cold-cream,  o pó de arroz à la maréchale, a pedra transparente e o perfume do frangipane e do  feno.

Era um fragmento de sua vida, de seus gozos, de seus devaneios, de sua  personalidade até. Se lhe faltasse, a ela, à opulenta dama, aquele meio de expandir  os seus recursos morais e monetários, morreria decerto.

Contam por aí as crônicas galantes a delirante afeição de senhoras de  elevado merecimento social por coisas de pouco apreço. Uma expira vendo agonizar  o seu king-charles predileto; outra encerra-se na mais profunda hipocondria pelo  simples fato de ter o seu namorado extraído do rosto um par de suíças flamejantes;  outra perde-se, porque através de sua vida futura distinguiu as fímbrias felpudas de  um xale de casimira inglesa; outra, finalmente, engole duas colheradas de arsênico  porque, no último baile a que esteve presente, sua rival granjeou maiores ovações  do que ela, e foi geralmente considerada senhora de mais apurado gosto na toalete.  Era naturalíssimo, portanto, o amor da milionária pela afilhada; pelo menos  mais simpático e honesto aos olhos do mundo superior.

Depois da soirée, várias amigas da ricaça perguntaram-lhe pela menina do  Jordão.

— É bem bonita! — dizia uma.

— Não parece do mato! Tem um dégagé!

— Ela aproveitou-se um pouco das minhas lições — acudia a milionária  orgulhosamente. — O que lhe posso garantir é que Rosinha é um anjo!

— Ou um demônio!

— Que diz?

— E então, minha amiga? As mulheres formosas são em geral a tentação da  humanidade. Não me consta que os serafins tentem ninguém!

— Deixe-se de graças!

— Onde mora ela, mesmo? Em um arrabalde, não?

— Meia hora de viagem pela estrada de ferro. Sabe onde é os Prazeres?

— Seja onde for. É perto daí a casa de sua afilhada?

— É. Mora no Jordão.

— Bonito lugar?

— Qual! Uma miséria! Lugar de pobres!

— Logo, a sua Rosinha é a feiticeira do Jordão?

— Justamente, é uma feiticeira virtuosa, o que vem a ser raro. A senhora  nunca foi por aqueles lados?

— Nunca. De Pernambuco só conheço o Recife, Olinda, e um ou outro  arrabalde!

— Para uma elegante é quanto basta.

— Quando veremos de novo a sua afilhada?

— A todo momento. O pai é uma onça. Espuma de cólera quando lhe roubo  por algumas horas a menina. Mas jurei aos meus santos fazer de Rosinha uma  perfeita moça!

— Com tal mestra, nada é impossível.

— Ao menos no futuro dirão que eu servi para alguma coisa!

E a milionária sorriu com os seus 32 dentes cintilantes.

Era, pois, Rosinha, tema de diálogos espirituosos em plena capital. Ela, a flor  do mato, o lírio escuso e recatado, a branda açucena do sertão, sujeita às analises  picantes de um mundo artificial e hipócrita! Mas, desde a hora em que o pé da moça  calca o tapete de um baile e volteia aos pérfidos afagos da orquestra, a sociedade  apodera-se dela como a multidão de um livro impresso, que, embora traçado entre  lágrimas, serve de tema, tanto ao estudo dos sábios como ao idiotismo dos imbecis.

Às nove e meia horas da manhã, a milionária chegava à porta da casa de  José Paz. O matuto estava fora; Rosinha, que nessas ocasiões ficava sempre em  companhia de uma velha mulher da vizinhança, correu a abrir a porta, conhecendo  as pancadas, como o maçom as simbólicas palmas do templo.

A ricaça, rubra e abrasada, gotejava por todos os poros. A seda roçagante do  seu vestido amoldava-se ao corpo em vastas nódoas, produzidas pelo suor e pelo  cansaço.

Atravessou como uma avalancha o limiar da casa da afilhada, e caiu, antes  deitada que sentada, em uma espécie de sofá ou jirau que havia na saleta.

— Minha madrinha!

— Ah! Minha filha! Ah! Minha filha! Que sacrifício! Que horror! Que calor  desesperado! Eu morro!

— Venha para o meu quarto.

— Não; espera um pouco. Deixa-me respirar o ar fresco. Decididamente, se  eu andasse um quarto de hora mais, morria!

— Que prazer me deu em vir cá! Tenho estado tão aborrecida!

— Vamos para o Recife. Queres?

Rosinha sorriu com ternura:

— Se eu pudesse!

— Ora essa! Quem te proíbe?

— Papai!

— Sempre queria ver isso!

— Olhe, minha madrinha — replicou Rosinha abaixando a voz —, há coisas  que a gente custa a acreditar, mas... Acontecem.

— Por exemplo?

— Meu pai ficou furioso desde o dia em que eu vim do Recife.

— Hei de perguntar-lhe! Deixa estar!

— Pelo amor de Deus, nada lhe diga. Aí está dindinha Paula que é capaz de  contar tudo, quando ele chegar. Fale baixo!

— Vamos ao teu quarto então. Sinto-me mais aliviada. Safa! Que calor!

A distância da estação da Boa-Viagem ao Jordão é sofrível; uns 20 minutos  de passo regular.

Habitualmente a milionária tomava um cavalo na estação, ou fazia o itinerário  a pé com a fresca da tarde.

Naquele dia o ar abrasado acometera-a com toda a arrogância, e ela por  infelicidade não pôde encontrar condução possível até a casa de José Paz. Por um  capricho naturalíssimo afrontando o sol, a poeira e a fadiga, a milionária atravessara o espaço que a separava do Jordão, como se estivesse na Boa-Vista saboreando o  panorama que da rua da Aurora se desenrola sobre o rio e sobre o mar.  Rosinha conduziu-a ao seu quarto, nu dos ornatos e galanterias, que formam o bem-estar das alcovas das moças em geral. Apenas na parede, mal caiada, viam-se duas imagens emolduradas toscamente: Maria Madalena e o Nascimento de  Jesus.

Os lençóis da cama da menina é que luziam como corolas de lírio ou pendões  de jasmins.

Um brando aroma de inocência, de malvas e de boninas enchia o  compartimento. Sobre o lustroso tijolo do assoalho espalhavam-se pétalas de uma  flor dourada.

— Andaste despencando flores, menina?

Rosinha sorriu docemente, cobrindo-se de um rubor ideal.

— Foi uma malmequer — disse ela, desviando os olhos. — Eu quis saber se  seria feliz neste mundo!

— E então? — continuou a milionária excitando com delícias o enleio da gentil  criança.

— Não hei de ser, não, minha madrinha. A última folha disse que não.

— Vem cá. Abraça-me. Quero-te cada vez mais e, com toda a certeza, hás de  ser alguma coisa para o futuro!

Rosinha beijou a mão da milionária, e pendeu o ouvido para a janela  escancarada do quarto. Chorava sobre uma pitombeira um sabiá da serra.

A menina pôs o dedo sobre o lábio, reclamando silêncio. Depois, cravou os  risonhos olhos nos olhos da madrinha, e:

— Aquele sabiá — disse ela — cantava esta manhã quando eu desfolhei o  malmequer, pensando em minha vida.

— Bom agouro então! Repara como ele dobra O canto! Olha! Olha! Bravo!

Parece que estão derramando moedas de ouro dentro de um prato!

O sabiá terminou o melodioso gorjeio por uns trilos penosos e ternos.

— E agora! Veja, minha madrinha, veja agora! Este choro tão triste não será a  imagem do meu futuro?

O sabiá abriu as asas e perdeu-se entre os galhos da mata obscura.

A milionária falou em teatros, bailes, toucados, e outras banalidades  graciosas de seu mundo oficial. Rosinha escutava-a como um pássaro escuta as  variações do Carnaval de Veneza em uma flauta saltitante. Eram harmonias novas  para o seu coração ainda puro e ignorante; segredos e mistérios encantadores que a  assaltavam, sem turbarem sequer o remanso angélico de sua alma peregrina!

O nome de Adriano Carvalhal entrou no diálogo.

— Ele fala-me de ti 24 vezes por dia.

— É um moço simpático — disse Rosinha, corando de leve —, o único —  prosseguiu ela, para disfarçar o seu enleio — que eu conheci naquela noite.

— Posso-te garantir que é um rapaz distinto na extensão da palavra — volveu  a milionária. — A propósito: o que dirá teu pai se ele cá vier?

— Aqui, ao Jordão?

— Sim.

— Oh! Minha madrinha, não caçoe!

— Por quê? Achas que isto é pior que a fortaleza das Cinco Pontas?

— Não, mas um moço do Recife pisar a cabana de um pobre! Nossa Senhora  nos  efenda!

— Pois ele pediu-me que eu o trouxesse. Até quis vir hoje mesmo!

— Oh!

— Pareces-me tola, Rosinha! Deixa as outras serem matutas; faz-te uma  moça da cidade, que para isso te eduquei eu! Ora, não se viram! Esta senhora comvergonha de receber em sua casa um moço com quem dançou toda a noite! É falta  de delicadeza, minha filha.

— Minha madrinha está me experimentando!

— Estou sim! Tens razão, estou te experimentando. Preciso indagar do que  se passa por aqui, e eis o motivo por que falei em Adriano. Nem ele me disse nada!  

Rosinha mordeu levemente o lábio.

— Ah! Não disse nada?

— Nada.

— Melhor. Que vergonha, meu Deus! Se seu sobrinho entrasse nesta casa!

— As melhores flores, meu bem, nascem nos mais rudes canteiros. Tu,

Rosinha, és o bogarim do mato!

— Pobre de mim!

— Hei de trazer o Adriano um dia, ao Jordão!

— Pelo amor de Deus, minha madrinha!

— Ele é poeta e gosta dessas paisagens agrestes! Tu lhe aparecerás tal qual  como estás  agora; de cabelo solto e vestidinho de chita azul! A propósito: e o vestido  que te dei?

Rosinha perturbou-se e volveu os olhos em redor de si. Tinha medo de mentir, a pobre rapariga! E ao mesmo tempo medo de denunciar as horrorosas  sanhas de seu pai.

— Dei, minha madrinha.

— Hein?!

— Perdoa-me, sim? — acrescentou a menina beijando as duas mãos da  velha elegante. — Foi um caso de esmola!

— De esmola!

— Uma menina dos Duros com quem me dou muito casou-se antes de  ontem, e não tinha enxoval... A senhora não faria o mesmo?

— Tu és um anjo, mas um anjo que não deve viver no meio deste horroroso  mato... Eu não dormiria descansada uma noite aqui!

— Com efeito!

Ouviram-se vozes na estrada. Rosinha reconheceu a de José Paz.

— Aí vem papai. Trate-o bem, sim, minha madrinha?

— Por que me pedes isso? Há alguma coisa contra mim?

— Esquisitices dele! Diz que minha madrinha só quer tirar-me de sua companhia!

— Toleirão!

— Quem lhe pede sou eu!

— Está bem. Não há remédio! O teu sorriso e os teus olhos, feiticeira,  conquistam tudo!

José Paz não sentiu grande entusiasmo com a presença da comadre.

Quando soube que ela viera apenas vê-lo e não roubar-lhe a filha, o matuto  desenrugou a testa e desfranziu o sobrolho.

À tarde a milionária despediu-se, e foi, acompanhada por José Paz, esperar  na estação a passagem do trem.

— Só muito amor por sua filha, compadre, me faz dar estes passeios!

— Eu sou um homem arreconhecido, comadre.

Chegando a casa, o matuto perguntou ansiosamente à filha se se tratara do  vestido, do leque, e dos livros queimados.

— Eu disse — respondeu Rosinha, com certa impaciência — que tinha dado  o vestido a uma noiva da minha amizade.

— Fizeste bem, filhinha. Dá cá um abraço!

As impertinências do matuto já atormentavam a menina. Mais de uma vez ela  recebera o grunhido paterno com uma espécie de aborrecimento visível. Olhava  para o céu e perguntava a Deus o motivo por que ele havia semeado tanta  formosura e tanta pobreza, tanta falsidade e tanta fortuna no mundo.

Um dia recebeu Rosinha das mãos do criado da madrinha uma carta, em cujo  sobrescrito lera o seu nome traçado por pena desconhecida.

O crioulo retirou-se, anunciando-lhe que viria buscar a resposta meia hora  depois.

José Paz não estava em casa, e a velha companheira, a dindinha Paula,  aproximou-se cambaleando.

— É uma carta de minha madrinha. Quer que eu vá ao Recife, mas vou  responder-lhe que não posso!

Ela mentia a si própria, e o coração acusava-a pela primeira vez na sua vida,  pulsando vivamente, a ponto de atordoá-la. Correu ao quarto; fechou a porta e abriu  com as mãos vacilantes e geladas a carta misteriosa. Assinava-a o nome de Adriano  Carvalhal.

Tremo, escrevendo-lhe esta carta. Desde aquela noite da soirée, Rosinha  (perdoe-me tratá-la assim), sua imagem me segue como a luz, como o ar, como o  sangue, como a existência. Amo-a de toda minha alma; idolatro-a com todas as  minhas crenças de mocidade.

Nunca mais se lembrou, não é verdade? Nunca mais se lembrou daqueles  momentos venturosos que o céu me concedeu com uma prodigalidade indigna de  mim.

As minhas palavras, o meu sentimento, as minhas aspirações, doce criança,  correram sobre o seu coração límpido como as asas negras de um agouro, ou as  negras asas de um crime.

Recorda-se da música, recorda-se dos vestidos, dos perfumes, das estrelas daquela noite, mas de mim? De mim é impossível que conserve uma lembrança,  anjo da beleza e da virtude!

Mas eu adoro-te, Rosinha! Rosinha, eu te amo! Eu te amo! Eu te amo!

Rosinha! Desfolho o teu nome na minha boca, e, sílaba por sílaba, o decoro  como o faminto ou o sequioso de morte.

Quero ir lá vê-la um momento, um minuto, um segundo, um pensamento.

Responda-me uma palavra: diga-me: 'sim' e far-me-á feliz como se pode ser  debaixo da misericórdia de Deus. Se não me escrever pronuncie a palavra, faça um  simples aceno ao portador, e isso me bastará.

Creia que eu a amo, amo! Nem sei o que escrevo! Onde está a eloquência do  amor, senão no fogo dos seus olhos, Rosinha, e na perturbação invencível de meu  espírito?

Responda-me, alivie-me, salve-me! Eu aqui fico, trêmulo e assustado, como um malfeitor que espera a sua condenação ou a sua liberdade. Seja boa, tanto  quanto é formosa.

De joelhos lhe peço: ampare-me e creia no meu amor.

Adriano Carvalhal.”

O portador veio pedir a resposta. A menina lutou por alguns momentos, mas,  enchendo-se de uma força heróica, exclamou:

— Resposta! Não tem resposta esta carta!

E; fechando-se no seu quarto, desatou em prantos e soluços com o rosto  afogado nos travesseiros.


CAPÍTULO VI

Adriano Carvalhal amava a filha de José Paz.

Era amor profundo o que ele sentia? Amor capaz de todos os sacrifícios, de  todos os martírios e de todas as lágrimas de sua vida?

Adriano percorria nessa época a encantada floresta dos 25 anos, de cujas  árvores transparentes rolam os pomos de ouro, e em cujos bosques sombrios e  suaves a brisa desperta as notas da esplêndida sinfonia do amor.

A mulher começa a fruir os primeiros delírios da existência aos 15 anos; o homem aos 25. Balzac, que entendia catedraticamente dessas coisas, deu ao  homem até a idade de Cristo os sabores da primeira mocidade, simples esboço do  quadro futuro que representa a vida, e que não é mais do que o sintoma de uma  vida posterior, denominada a experiência!

Adriano estava, portanto, na primeira mocidade: respirava a plenos pulmões o  ar doidejante das quimeras e das ilusões robustas, em cujos braços fascinadores o  espírito embala-se contente, e o coração adormece feliz como as gaivotas no selo  esmeraldino das ondas.

Oh! Doce quartel da vida! Oh! Como tu passas ligeiro, ligeiro, deixando-nos  apenas por lembrança as rolhas inúteis de alguma ilusão desfolhada! Com pouco  satisfaz-se a alma aos 20 anos! Um olhar, um sorriso, uma promessa, e eis repleta a  bagagem do coração viajante! A ventura nesse tempo cifra-se em se receber um  perfume em troca de um desejo! Um juramento por uma lágrima! Uma lágrima por  um sorriso! Um beijo, rápido e misterioso, por 20 horas de perigos, de tentações e  de loucuras! Oh! Doce quartel da vida! Como tu passas!

Quando Adriano sentiu espelhar-se a princípio a imagem de Rosinha em sua  alma, cuidou que aquilo era unicamente a recordação da formosura, leve e sutil  como o reflexo dos astros e a facha do relâmpago! Meteu-se no turbilhão elegante e  procurou desvanecer as torturas da sua memória, atordoando-se com o rumor das  danças e a provocação das belezas.

Por toda a parte, porém, seguia-o, fiel como uma sombra, a deslumbrante  imagem da menina, e dentro do seu coração turbado os olhos negros de Rosinha  fulguravam como duas estrelas fatais!

Pediu uma vez à tia noticias da afilhada.

— Interessa-te muito, pelo que vejo! — disse a milionária deixando cintilar no  sorriso a cauda serpentina da malícia.

Adriano perturbou-se um pouco.

— Interessa-me decerto. É uma menina graciosa na extensão da palavra.

— Sim! Só por isso?

— Ora, minha tia! Que pergunta!

— Nada mais natural, meu caro. Vocês são poetas, e os poetas não perdem o  tempo em explorações...

— Termine a frase!

— Científicas. Tu ainda és poeta, parece-me! Li ontem no Diário uns versos  assinados por teu nome. E diga-se logo: — que de uma paixão!...

Adriano sacrificou-se ao gracejo, manejando entre os dedos impacientes o  castão de sua flexível bengala.

A milionária não dava tréguas nem quartel ao inimigo.

— É um anjo a Rosinha — começou ela, cravando os olhos em Adriano. — Se eu pudesse arrancá-la do seu maldito Jordão!

— Faça isso, minha tia — exclamou Adriano sem poder sufocar um ímpeto de  prazer.

— Bravo, sim, senhor, muito bem! Estou vendo que a matutinha encheu-lhe o  olho!

— Não torça os meus sentimentos, minha tiazinha. É a coisa mais natural do  mundo simpatizar-se com aquela criatura tímida e deslumbrante como o raio do sol!

— Poeta! Poeta!

— E cabe à senhora, grande parte nos sucessos que sua afilhada adquiriu  durante a noite! Só estas mágicas mãos, minha tia, transformariam a flor agreste em  peregrina rosa!

— Com que trabalho, Adriano! — acudiu a milionária banhando-se nos  êxtases da sua vaidade satisfeita. — Não imaginas sequer a luta que tenho travado  com o Paz! É um homem de bons instintos, mas estúpido como um abacaxi! Adora a  filha como o negro Otelo adorava a pobre Desdêmona. Amor furioso, cheio de  ciúmes e de cóleras horríveis! A menina é um serafim do Senhor! Aquilo dobra-se a  tudo, para tudo tem um sorriso e uma alegria. Suporta as sanhas do pai sem se  queixar nem revelar no rosto o menor sinal de tristeza!

— O tal Paz é um monstro, pouco mais ou menos?

— É um esquisitão apenas. Cria aquela filha como o hortelão cria a couve-manteiga; o que ele deseja acima de tudo, é que não transformem o seu legume em  flor delicada. Cada vez que Rosinha vem ao Recife, entra-lhe um espinho no  coração. Ora vê lá como tenho sofrido — eu que sou essencialmente nervosa —  com as extravagâncias desse lorpa!

— Infeliz menina! Tão digna de ser admirada pelo grande mundo!

— E nota uma coisa, meu sobrinho: Rosinha tem uma inteligência prodigiosa  e um espírito raro!

— Infeliz menina!

— Sabes o que deves fazer em vez de estares ai a lastimar a sorte de minha  afilhada como um novo Jeremias? Acompanhar-me ao Jordão!

— Pronto, minha tia! — exclamou Adriano imediatamente.

— Deixa-me primeiro sondar o terreno, meu caro. Pelo menos livrar-te de  alguma carga de chumbo com que te pretenda mimosear o homem!

— Que idéia! — volveu Adriano Carvalhal, desprendendo uma estrepitosa  gargalhada.

No dia em que a milionária apresentou-se no Jordão, em companhia de  Adriano, já a menina havia lido e relido as frases apaixonadas daquela carta que não  merecera resposta. Rosinha, dando com os olhos no moço, fez-se vermelha como  uma papoula e em seguida de uma palidez sepulcral.

Adriano apertou-lhe a mão fria, e teve implacáveis desejos de cobri-la de  beijos, a essa mão aveludada como a pétala das boninas!

— Não me foi possível resistir por mais tempo disse a milionária mostrando o  sobrinho; — creio que, se ele cá não viesse hoje, sacramentava-se amanhã!  Chegou a vez de Adriano envolver-se na nuvem do rubor, que, apesar do bigode, ia-lhe a pintar.

Rosinha riu-se entregando o rosto às carícias de sua madrinha.

Eram cinco horas da tarde; o dia mergulhava-se no ocidente, e as longas  auras do crepúsculo sopravam, ébrias de perfumes. Adriano e Rosinha mal se viam;  evitavam-se como dois cúmplices à barra do tribunal.

A milionária fez as despesas da conversação; falou de bailes, toaletes,  poesia, versos, modistas e processos romanescos.

Pela janela aberta viam-se adejar bandos e bandos de andorinhas; as  mangabeiras suspiravam com o vento, e o canavial movia ao longe os penachos  flutuantes.

Quando José Paz chegou, esteve a ponto de desmaiar, descobrindo um  estranho em sua casa, um estranho! Um moço de bigode luzidio e atitude pretensiosa!

A milionária incumbiu-se da apresentação.

O matuto abaixou a cabeça, tanto por delicadeza como por impotência;  também o elefante suporta o selim e o boi a canga, sem exalarem um gemido.

Adriano Carvalhal conseguiu ter espírito, apesar de sofrer as torturas do  supliciado junto ao cepo fatal.

À espera do trem, vieram todos para a estrada quase deserta. Pouco distante  havia uma tasca coberta de sapé, e uma grande cerca onde pousavam os anus  desprendendo uns pios prolongados e tristes.

No céu azul cruzavam-se as aves, que fugiam da noite.

Adriano cravou os olhos em Rosinha; Rosinha por acaso olhou, e deixou-se ir  naquele embriagante êxtase, incompreensível para a sua alma ignorante e pura.

José Paz não arredava a vista dos dois. Mas o matuto esquecia-se de que o  amor fala mais alto no silêncio do que no ruído. Os olhos são os lábios da criatura  que ama.

José Paz não dormiu a noite inteira, lembrando-se da nova visita. Despertou  rubro e terrível como o símbolo da vingança.

Rosinha até romper o dia pensou em Adriano, e, quando beijou a mão do pai,  ao erguer-se da cama, estava bela e sombria como a estátua do amor.

A milionária, durante a viagem, perguntara ao sobrinho;

— Gostaste?

— Muito.

— E voltarás?

— Nunca!

— Oh!

— Não se admire, minha tia. A felicidade é um mar de diamantes que afoga  quem mergulha nele!

A milionária admirou-se da resposta. Adriano não deu por isso; seguia,  através da vidraça do vagão, as rápidas nuvens do vapor, que obscureciam o ar.

Dois dias depois, o criado da ricaça foi ao Jordão com um recado da senhora.

À noite, Adriano Carvalhal esteve em casa da tia, jovial, bulhento, espirituoso,  insuportável.

— Nunca te vi assim! — observou-lhe a milionária.

— Que quer, minha tia, a alma humana é uma charada que ninguém  compreende!

— Faço idéia! Teus olhos estão te atraiçoando, meu filho!

O mistério era de facílima decifração. Adriano Carvalhal recebera do Jordão  um bilhete, banhado em perfumes e talvez em lágrimas, quase roto, dobrado,  torcido, amarrotado, contendo esta única palavra: "Sim."


CAPÍTULO VII

Havia festa no Jordâo. Era domingo.

O dia amanhecera risonho, azul, resplandecente e tentador como as primeiras  alvoradas do paraíso perdido. As jandaias em grupos compactos voavam sobre a  estrada e perdiam-se pelas matas sussurrantes, desprendendo gritos de felicidade e  de alegria!

O sol dardejava raios de fogo, e as patativas, entre os ramos floridos do  cajueiro, desfiavam o seu rosário de melodias fugazes e pérolas cristalinas!

O domingo em todas as aldeias do mundo é o dia por excelência, o grande dia,

o dia da roupa nova é das gargalhadas expansivas! Os braços, habituados ao rude  trabalho, descansam em redor da franzina cintura de um filhinho que sorri, e enquanto  o lavrador desenrola ao companheiro o rol das suas íntimas esperanças, com o rosto  alegre e os olhos cheios de saúde e de fé, as raparigas de vestidinho enfeitado  espiam o janota da aldeia que passa orgulhoso à sombra de um chapéu cor de cinza,  o chapéu dos domingos, o chapéu falado! Ou escutam embebidas em casto arroubo,  a melancólica toada da viola que parece desfazer-se no ar em rios de lágrimas!  Santo dia do domingo! O roceiro adora-te como a elegante a noite do baile, e

o político a desejada hora das eleições! Em cada murmúrio das tuas brisas, oh!  Mimo da primavera! Em cada uma das tuas brisas ondula a nota celeste de uma  canção desconhecida, e o sol que te anuncia encontra sempre abertos, para recebê-lo, o cálice palpitante das flores, os lábios vermelhos da infância e o coração  enternecido dos pobres!

Quase à beira do rio estavam os habitantes do lugar empenhados em levantar  um alpendre, largo, coberto de folhas secas, e sustentado por umas enormes  estacas adornadas de folhas e ramas frescas! As pilhérias, as farsolas, as graças  trocavam-se vivamente entre os trabalhadores folgazões com uma prodigalidade  excessiva. Que seria aquilo? Alta novidade! Alta novidade no Jordão! O Pedro  Cambraia tirara em um quarto da loteria a sorte grande! Nada mais, nem menos do  que um conto e não sei quantos mil-réis!

O Pedro Cambraia era um sujeito de 42 anos, baixinho, nédio, luzidio como  uma moeda de cobre novo! Não era nem feio nem bonito, engraçado nem tolo; mas  possuía uns olhos esverdeados de faiscantes malícias, e dançava o samba com tal  método e brilhantismo, que fazia dizer aos companheiros:

— Cambraia, esse, antes de nascer, já sabia o passo do caranguejo! — (O  caranguejo é uma das variantes mais distintas do samba do norte).  Veio-lhe o apelido de Cambraia por um fato excêntrico que se deu em sua  vida. Pedro Gonçalo, que assim se chamava o sambista, em se lhe devendo alguma  coisa, tornava-se uma legítima praga em couro e cabelo! Atormentava o devedor,  perseguia-o, achincalhava, atordoava, e chegava até a provocá-lo às vezes. Como  atestado de seu caráter bulhento, a ponta de uma faca inimiga deixara-lhe no meio  do rosto um valente talho, que se transformara em eterna cicatriz. Havia um único  meio de se não brigar com o Cambraia: era não lhe dever nada.

\ Maria Escolástica, uma donzela do lugar, pedira-lhe emprestada certa quantia  para comprar nas mãos de um mascate aventureiro um corte de cambraia.

Dizia a pobre da rapariga que aquela fazenda havia de servir-lhe no dia do  noivado. Pedro Gonçalo emprestou o dinheiro com pequeno prazo e... sem juros!  Mas desse momento por diante, a incauta Escolástica ficou hipotecada ao insaciável  credor.

Cansado de esperar, Pedro dirigiu-se sem mais cerimônia à rapariga. Maria  Escolástica tremeu quando pôs os olhos na cara do Cambraia. A cicatriz rubra e  coruscante saltava-lhe à flor do rosto. Era esse o prenúncio de tempestade iminente!

— Maria Escolástica, você paga ou não paga o cobre?

— Ouve cá, Pedro.

— Já há um mês e 18 dias que me andas prometendo, e nada, minha dona! Isso  não tem cabimento. Você me conhece! Você sabe quem eu sou, Maria Escolástica!  Pedro Cambraia estalou com a língua e arqueou o braço, firmando os dedos  na cintura.

— Mas, se eu não tenho dinheiro, filho de Deus!

— Por que pediu emprestado, então? É botar já para aqui os cobrinhos,  minha tafulona, que eu hoje não estou bom!

A Maria Escolástica via-se em apuros, e, por mais tratos que desse ao juízo,  não achava meio de desvencilhar-se da teia.

Pedro Gonçalo repetiu três ou quatro frases mais, carrancudo e mastigando  as palavras surdamente.

— Ah! Não me pagas? Não me pagas? Pois passe-me o corte de cambraia!

— Quê!

— Dá cá a cambraia, Maria Escolástica! Vou mandar fazer roupa para mim!

— Você anda mal da bola!

— Dá cá a cambraia, mulher!

A rapariga, atemorizada por um gesto furibundo do implacável credor,  entregou-lhe a fazenda que compunha as delícias de uma velha caixa de pinho.

No primeiro dia de festa, Pedro Gonçalo apareceu à porta de casa com um largo chambre de cambraia, através do qual viam-se-lhe os suspensórios  flamejantes como dois raios cruzados!

Os habitantes do lugarejo, prevenidos por Maria Escolástica, receberam o  vestuário original do sambista com uma homérica risada e uma palmaria digna da  claque do mais turbulento teatro.

Desse dia em diante, Pedro Gonçalo ficou sendo Pedro Cambraia para os  amigos e desconhecidos.

O apelido agarrou-se-lhe à pele como uma nova túnica de Nessus.

Às duas horas da tarde deu-se por pronto o alpendre, subindo ao ar uma  ruidosa girândola no meio de gritos, ovações e vivas entusiásticos. O Pedro  Cambraia não estava em si de contente; esfregava as mãos, esfregava os pés,  esfregava o nariz com crescentes sinais de incomparável prazer.

José Paz aproximou-se ao grupo.

— Olá, Sr. Paz! Veja se falta logo com a Rosinha! — bradou o Cambraia.

— Nem pensar nisso é bom. A Rosinha diz que está um bocadinho  incomodada, mas vem para a festa!

Várias vozes interpelaram o anfitrião:

— Você não deve se esquecer da gente dos Duros, Cambraia! Se a Rosinha  viesse, o negócio cheirava melhor!

— Há de vir; por que não? Daqui a pouco vou convidar o Cosme Ribeirão.

— De Olinda, quem vem?

— O Teto...

— Viva! Ferve o samba hoje!

— Eustáquio, o Leopoldo, a Rita dos Prazeres.

— E a Justina miudinha?

— Diabo! Eu não posso me partir em cinco pedaços! Quem quer ir em um  pulo aos Prazeres chamar o Manuel do Ó?

— Eu vou, so Cambraia!

— Assim, rapaz; serve para alguma coisa.

— A Fortuna disse-me que não faltava!

Chegava azafamado neste momento o Chico valente.

— O homem do violão já está falado, só Pedro! — disse ele sacudindo a  cabeça donde jorrava o suor em bicas. — As duas guitarras também vêem; eu cá  por mim já afinei as cordas e comprei outras no Ramos dos Duros! Flauta, nicles!

— Não faz mal. Em havendo guitarras, violão, maracás e botija. O filho do  Neco toca botija!

O pequeno aludido conchegou-se ao bando, luzindo de felicidade. Um foguete  esquecido subiu aos ares, estrondando majestosamente.

— Viva o Pedro Cambraia!

— Viva o Pedro Cambraia!

— Viva, minha gente, e viva Nosso Senhor Jesus Cristo também, que não se  esquece dos pobres.

— Amém!

Rosinha, sentada na humilde cama, onde à noite invocara debalde as  sombras protetoras do sono, deixava-se ir na torrente insondável dos seus desejos,  das suas lembranças e das suas virgens aspirações, como um pássaro que  abandona à correnteza da água as penas, uma por uma. A imagem de Adriano  erguia-se adiante dela e abria-lhe os braços apaixonados; as últimas palavras dele  soavam-lhe ainda aos ouvidos como os ecos de uma música terrível e meiga.

Estava jogada a principal carta de sua vida! Ela amava, a pobre rapariga!  Amava com todos os sonhos e todas as ilusões de sua alma deslumbrada!

O ruído da bomba e os gritos festivos em honra a Pedro Cambraia  despertaram-na de súbito e a conduziram à porta de casa. José Paz, de volta,  dirigiu-se-lhe com um enorme sorriso na boca colossal.

— O Cambraia não quer razões, nem meias razões. Tu hás de ir à noite!

— Mas, meu paizinho...

— Está uma festa arrojada que faz gosto. Gente muita, e o Teto vem para o  sanha. Ora, o Cambraia! Sempre acontecem coisas que fazem pasmar um homem!  Quem lhe diria a ele, que havia de tirar a sorte!

— Não é essa a felicidade! — murmurou Rosinha, como se repetisse as palavras de uma voz íntima e misteriosa.

Ouviam-se em repiques vibrantes os sinos da capela dos Prazeres.

— Sabes que há hoje um casamento nos Prazeres?

— Ah!

— A filha do Cândido ferrador com o José grande. Aquela há de ser sempre  uma pequena de boa cabeça. O pai quis o casamento e ela zás! Não disse nem que  sim nem que não!

Os olhos de Rosinha seguiram docemente o vôo dos coleiros, que se  beijavam entre as louras espigas de milho, através da cerca.

Os repiques sucediam-se sem tréguas, e com uma energia miraculosa da  parte do sacristão.

— A filha do Cândido nunca pôs pé no Recife, graças a Deus! — continuou  José Paz, mirando de esguelha a filha. — O pai dela teve juízo, fazendo Nossa  Senhora madrinha da moça! Por isso é que ela há de ser sempre abençoada pelo  céu!

Rosinha ergueu os olhos úmidos e sorriu com a mesma dor com que os  outros costumam chorar.

O matuto arrependeu-se e prendendo entre as suas a mão alva da menina.

— Estas tristezas todas hão de acabar um dia; não hão de, minha filha? Eu,  palavra de honra, dava metade da perna direita só para não te ver mais aborrecida  como andas!

— É meu gênio!

— Não é teu gênio, não! Foi aquela maldita!

E José Paz fechou a boca com a mão, sufocando o resto da frase imprudente.

— Sabes — prosseguiu ele — qual é o meio de te fazer alegre?

Rosinha olhou-o serena e terna.

— É seguires o caminho da filha do Cândido. Ainda ontem me disseram que as meninas tristes em solteiras mudam logo quando se casam.

A afilhada da milionária ergueu quase imperceptivelmente os ombros.

José Paz deu largas ao seu honesto pensamento:

— Eu cá por mim não era capaz de ir contra os teus gostos. Um rapaz trabalhador, honrado e bom que te pedisse...

— Deixe-se disso, meu paizinho.

— Era melhor — acudiu José Paz, ferindo intencionalmente as palavras — do  que esses pelintras da cidade que procuram as moças pobres para desonrá-las e  atirar com elas depois na estrada como um cachorro morto!

Rosinha cobriu-se de uma lividez mortuária e apoiou-se, para não cair, ao  peitoril da janela.

Às sete horas da noite estava o alpendre ornado de lanternas de papel multicores e cheio  e povo: velhos, velhas, rapazes, raparigas e meninos de toda a  idade e feitio.

Afinavam-se as guitarras, afinavam-se os violões, as violas, as vozes e os  pandeiros. Quatro ou cinco pequenos de botija em punho e faca erguida esperavam o sinal para acompanhar o fado.

O samba no norte é uma coisa digna de se ver. As toadas das cantigas em  desafio prendem a alma e provocam os sentidos. Há certa poesia irresistível  naquelas danças características entrecortadas de modas e trovas, que revela  exuberantemente o mundo de sentimento da alma rude e ingênua do povo!

Minha gente venham ver
Minha prima o que me fez;
Trazia dois enganados
Comigo faziam três.

A pombinha vai voando
Com penas que Deus lhe deu:
Contando pena por pena
Mais penas padeço eu.

E lá vem, de vez em quando, uma quadra meter-se na harmonia geral como  Pilatos no credo:

Plantei o roxo n'água
O encarnado na areia,
O amor que não é firme
Com qualquer coisa vareia.

Pedro Cambraia repartia-se pelos convidados com uma verdadeira elegância  grotesca. Era para este um copinho de aguardente, para aquele um gole de zurrapa,  para aqui um aperto de mão, um abraço para acolá etc. etc.

— Teto! Teto! — gritaram várias vozes enternecidas com a tintura da cana  nacional.

— Ferva o samba, minha gente! Entra na roda, Teto!

Tertuliano ou Teto era um rapaz magro amorenado, como por lá diziam, de  olhos vivos e cintura delgada. Morava em Olinda; mas na redondeza de 40 léguas  não se começava um samba sem ele chegar. Dançava como um corisco, e pulava  como uma cobra.

— Corta jaca, Teto!

— O passo da tesoura! O passo da tesoura!

— O caranguejo!

Teto entrou e lançou ao chão com uma agilidade graciosa e chapelinho de  palha. Estava em mangas de camisa e trazia uma gravata de seda vermelha, que  ondulava-lhe ao pescoço, como a bandeira inglesa no mastro grande de uma  fragata! As guitarras gemeram; as facas atacaram as botijas, os violões e as violas  uniram-se ao ruidoso concerto com as suas longas e plangentes notas:

Batam bem nessa viola,
Deixem as cordas quebrar
Que eu quero espalhar saudades
Quero penas espalhar!


— Canta, Justina miudinha!

A Justina fez um amuo, e um tenor de primo cartello, um tal Leopoldo,  ofereceu o concurso de sua voz à empresa lírica:

Meu bem, não fujas de mim,
Repara bem que sou eu;
Eu sou aquele amorzinho
Por quem você já morreu!

— Justina! Justina miudinha!

Uma fresca voz de mulher respondeu ao Leopoldo:

Meu coração é fechado
Como a flor da mangabeira,
Ninguém conhece os segredos
Desta flor, desta trigueira.


— A parelha! A parelha, gente boa!

Formou-se a parelha em um abrir e fechar de olhos.

Quem perdeu o anel
Do dedo mindinho
Passe a mão pelo chão
Bem agachadinho.

Minha parelha é boa
Lá se vai!
Fecha o tempo, gente,
Deixa, vai!

José Paz perdera de vista a filha na confusão do povo. Os curiosos cercavam  o alpendre  e modo a tornar impossível qualquer movimento além da dança, para a  qual se formara um circulo especial.

Rosinha abria em vão a alma àquela onda de harmonias selvagens, em que se embalaram felizes os seus primeiros anos. Nada a atraía já aos costumes de sua  terra e às lembranças do seu inocente passado!

Os instrumentos calaram-se por alguns instantes. Pedro Cambraia bateu  palmas e atirou-se à roda sapateando como um possesso.

— Bravo o Pedro!

— Viva Pedro Cambraia!

As guitarras, as botijas, os violões, os maracás e as violas começaram de  novo com um ardor estupendo. Empenhou-se a dança em todas as fileiras; algumas  raparigas gentis e formosas, convidadas urgentemente pelo anfitrião, moveram o  talhe e amiudaram os passinhos como os jururutis na grama orvalhada do mato.

A noite estava tranqüila, estrelada e tépida que era um regalo. A lua  derramava sobre os vales e sobre os campos o vasto lençol, úmido e transparente.

Os vaga-lumes abriam a asa na doce escuridão, e o vento bulia na copa  frondosa das mangueiras, de cujas folhas curvas pingava, baga a baga o consolador  orvalho da noite!

Pouco distante do alpendre, à sombra de uma copada aroeira, conversava  duas criaturas: uma mulher e um homem, como criminosos que evitam a presença  de alguém.

A voz do homem dizia tímida e apaixonada:

— E que me importa a mim, santa do meu coração, que me importa o mundo,  a vida, o futuro longe de ti!

— Este amor há de perder-me! — suspirava ela.

— Este amor é o sangue do meu corpo e a luz do meu espírito. Olha para  mim; assim. Como tu és bela Deus do céu! Parece que eu vejo nos teus olhos luzir a  minha esperança tentadora e pura!

— Vai-te, vai-te! Podem ouvir-nos e encontrarem-te aqui!

— Não: ninguém me ouve, ninguém me vê, ninguém nos surpreenderá.

Cantava uma voz no samba:

Como correm sobre as águas
As penas do bem-te-vi,
Vôo minhas horas correndo,
Morena, por'mor de ti.

Este amor que me atormenta
Este amor que me consola,
Deixa cantá-lo meu bem,
Nas cordas desta viola.

Nas cordas desta viola
Hei de meu peito ferir,
Quando tu já não me amares
Posso deixar de existir

— Deus me castigou no dia em que comecei a te amar. O que será de mim?

O que será de mim, Virgem Santissíma, se tu me abandonares!

— Oh! Não fales assim, meu doce amor; o céu castiga se o repetires, porque  é uma blasfêmia o que estás pensando! Eu nunca deixarei de te amar, e até, quem  sabe se o destino me fará morrer a teus pés!

— Pelo amor de Deus, cala-te.

Este amor que me atormenta.
Este amor que me consola,
Deixa cantá-lo, meu bem,
Nas cordas desta viola.

A mais segura montanha,
Pode o tempo derribar,
Mas teu nome no meu peito
Não é capaz de apagar.


— Nunca farás isso! — murmurou a voz, suplicante e débil.

— Por quê? Encontras no mundo sacrifício maior que o teu amor?

— Mas é uma traição! Um crime contra meu pai, contra minha vida e contra  Deus!

— E poderei suportar a ausência por tanto tempo? Ah! Mal compreendes os  desesperos da minha saudade e os martírios do meu amor!

— Vem gente! — articulou ela, puxando-o vivamente para a sombra.

Não era ninguém; fora o ruído causado pelas asas de um bacurau medroso,  que roçara na passagem os galhos da aroeira.

Ele prosseguiu dando à voz as modulações chorosas de um segredo ou de  uma prece:

— Deixa-me, deixa-me ser feliz, um minuto, um segundo, um instante rápido  como o pensamento ao menos! Não imaginas quanto minha alma precisa ser  aliviada; como é digno de amparo este coração que agoniza por ti! Repara nas  estrelas, na lua; bebe os aromas da noite amorosa e casta! Tudo ama, tudo crê, tudo  espera, e tu fechas o ouvido à voz da minha paixão!

— Fala-me sempre! Sempre! Que esta boca perigosa e querida entre em toda  a minha alma e mate-me enlouquecendo-me!

— Forma a roda, minha gente! — gritavam no samba. — lula, Teto!  Eustáquio, então? Oh! Rita! Dindinha Rosa!

— Eu? — exclamou a velha assombrada. — Maiores são os poderes de Deus!

— Canta pr'aí, Fortuna! Raspa na botija, Catita! É lá, José Paz! Estás com  cara de mal-assombrado!

— Rosinha! Rosinha!

Não te vás para tão longe,
Menina do meu pensar,
Que um cego de amor não pode
De tão longe te enxergar.

Respondeu a Justina miudinha:

Se para longe me vou,
É que vou atrás de alguém;
Vou seguindo a minha sombra,
Vou nos braços de meu bem.
  
— Rosinha! — chamava José Faz.

As raparigas procuravam-na arredando-se os grupos e apalpando-se todos os  cantos.

— Ainda agora estava aqui! — observou uma delas.

Nesse momento apareceu a um lado, afastando a multidão, a pálida cabeça  da filha de José Paz.

Os instrumentos atraíram de novo as danças e os cantos entusiásticos.

Os olhos de Rosinha febris volviam-se em torno de si.

Ao longe vibrava o surdo e fugitivo galope de um cavalo.

A voz de Leopoldo cantava:

 Caiam flores uma a uma,
Seque o rio, acabe o mar,
Que eu não hei de te esquecer,
E nem deixar de te amar!
  
O galope do cavalo perdeu-se de todo, na distância.


CAPÍTULO VIII

Atasca era situada à beira da estrada e pertencia a uma Maricas Guandu,  mulher de ventas arrebitadas e pulso vigoroso.

São talhadas pelo mesmo molde as vendolas, tendas e em geral as quitandas  dos pobres lugarejos do norte; uma mesa de pinho trôpega e roída serve de balcão  com os pés fisgados na terra esburacada.

Na parede sem cal, de cujas ripas entrelaçadas o barro cal aos bocados, e  por onde entram com idêntica familiaridade a chuva, o vento e os raios do sol,  estendem-se dois a três registros de santos, quase sempre Santo Antônio e o  crucificado, ornados de folhas de mangueira, bogarins e rosas bravas. São as  égides protetoras da casa, e, na inabalável opinião dos devotos, o infalível chamariz  da freguesia.

A tasca da Maricas Guandu corria parelhas com as suas companheiras dos  Douros, Prazeres, Boa-viagem e as demais povoações da vizinhança.  

A tendeira era mulher da pele do diabo; atrevida, corajosa, de sobrolho  carregado e fala grossa. Dizia o Chico valente que a Guandu já havia cumprido  sentença na ilha de Fernando, em virtude de uns arranhões profundos, que em má  hora de rixa ela esculpira no pescoço de um pobre imbecil com quem vivia.

O certo é que todos a respeitavam na povoação e fora dela.

Além disso constava que a mulher tinha dinheiro guardado, segundo uns, nos  bancos do Recife; segundo outros, na cacimba do quintal.
  
Fosse por que fosse, para as altas questões da terra servia de campo de  peleja a taberna da Maricas Guandu.

Uma semana depois do samba promovido pela rara ventura de Pedro  Cambraia, soavam lentamente as badaladas do meio-dia em S. Gonçalo, e o Chico  valente, o Brás, o próprio Cambraia e outros da povoação estavam ainda de  conferência na tasca da Maricas Guandu.

Alguma poderosíssima causa os arredara do trabalho até essa hora, e um  certo ar de mistério envolvia as suas palavras, que eram geralmente trocadas em  voz baixa e surda.

A tendeira, com os cotovelos escuros cravados na mesa cheia de talhadas de  melancia, cajus e jerimuns, entre os quais erguia-se o imponente vulto de uma velha  botija de aguardente destapada, seguia a conversação de olhos fechados e em uma  espécie de indiferentismo brutal e sonolento.

As moscas zumbiam em cardumes em redor das frutas e do aroma da botija.  Os matutas sentados em terra, com as pernas nuas apostas ao sol e o cigarro no  canto da orelha, fizeram pausa por um momento.

Soava meio-dia.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! — rosnou a tendeira sem mudar  de posição e benzendo-se, depois de bocejar, como o ruído de uma chaminé de  vapor.

— Para sempre! — repetiram os assistentes, descobrindo-se.  

O sol abrasava; os pássaros emudeciam, abrigados do calor nas largas folhas  do arvoredo que nem um hálito de brisa bafejava sequer.

As galinhas mariscavam defronte da venda, espojando-se na poeira ardente  da estrada deserta.

Tomou a palavra o Pedro Cambraia:

— Pois é como se uma coisa feita tivesse-me entrado no Couro! Safa! Que se  não fosse o que eu cá sei, já hoje não dormia no Jordão o filho de minha mãe!

— Vocês são todos uns mofinos! — disse a taverneira abrindo os olhos  vermelhos como uma fornalha.

— Sempre lhe queria ver, sa Maricas — acudiu o Chico valente —, metida  nesses assados para então falar!

— Ora, ora!

— Ora, ora? Pois, minha dona, aqui está o Cambraia que é homem direito e  que viu com os seus próprios olhos que a terra há de comer!

— Mas o que viram vocês? — replicou a Maricas Guandu impaciente. —  Conta outra vez a história, Cambraia!

— Ainda bem não falei, já me estou arrepiando como um frango molhado! —  observou Pedro Cambraia, revirando os olhos a tremer.

A taberneira espreguiçou-se resmungando, e veio munida de um banco  escalavrado tomar a presidência da assembléia.

Pedro Cambraia não se fez rogar.

— De anteontem para ontem — disse ele —, eu tinha de estar nos Apipucos para um negócio grande com o Zé Pinto, a respeito de umas trapalhadas que não  vêm ao caso. Eu cá, só no dia da minha morte, é que hei de andar de carro, se não   for de rede, que é mais infalive. Não preguei olho toda a noite; só pensando, só  pensando, na viage. Bateu em S. Gonçalo meia-noite, e eu disse comigo: Ora, você  não tem sono, so Pedro. A noite está fresquinha como uma garapa, e há tantas  estrelas no céu como lojas de fazendas no Recife.

O Chico valente gostou da comparação e enfiou duas gargalhadas sonoras.

A Maricas Guandu fez um gesto de impaciência e atiçou pelo olhar sombrio a  loquacidade do narrador.

— Enfiei as calças — prosseguiu o Cambraia —, o casaco, peguei no chapéu  e... Pernas para que te quero! Pus-me no andar da rua. Fazia um silêncio de se  ouvir voar uma muriçoca! O diabo de uma coruja berrou mesmo no meu ouvido e foi  voando para a banda do mato como um mau agouro! Tibi! Se eu tivesse, depois  disso, entrado logo para casa e esperado a madrugadinha, não havia de passar pelo  susto que rapei... Mas, enfim, quando Nosso Senhor acha que...

— Pior! Pior! Contas a coisa, ou levas a peraltear aí como um papagaio?

— Lá vai, senhora, lá vai, que Deus é grande! Assim que a danada da coruja  deu o grito, eu fiquei meio cá, meio lá. Mas um home é um home.

— E a mulher é um bicho! Interrompeu um rapazola, o Brás, saudando a idéia  com duas monstruosas risadas.

A taberneira mostrou o punho ao pequeno, da mesma forma por que o cão de  fila apresenta a cabeluda pata.

— Cala a boca, Brás! — ordenou Chico valente.

— Comecei a andar — prosseguiu Pedro Cambraia — apertando o passo  para chegar mais cedo. Assim como assim, eu, já que saí de casa, quis me  presentar so Recife a boa hora, para bater para os Apipucos. Estava escuro tudo  que era mesmo de se quebrar o nariz sem trabalho! Não havia lua, e as estrelas  alumiavam só a casa do Senhor, sem se importar com o que havia cá embaixo.  Quando eu ia chegando ao pé do desvio pegado com a casa do José Paz...  

A fulva pupila da Maricas Guandu faiscou de curiosidade e de cobiça.

— Que é que viste, que é que viste?

— Olhe lá, vosmicê é capaz de dizer que eu ando doido, e então é melhor  parar aqui.

— Conta, Cambraia!

— Conta!

A taverneira impôs com um gesto silêncio, e enchendo até às bordas uma  canequinha de aguardente, passou-a ao narrador.

— Molha primeiro a goela, e conta direito!

Pedro Cambraia saboreou gota a gota o néctar delicioso, e depois de ensaiar  uma orquestra de pigarros em todos os tons:

— Meus olhos no escuro são tal qual como os olhos do gato. Foi por isso que  eu pensei que tudo era uma mentira cá da cachola, quando a alma apareceu.
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— A alma?!

A alma do outro mundo, sim senhor! Estaquei mesmo defronte da casa do  Paz, que estava toda fechada e sem luz. Pudera! Meia-noite passada! Começaram a  me dobrar as pernas; o frio coçou-me as costas e uma porção de candeias fuzilou  na minha vista. Quis dar um passo para trás; qual fortuna! Os pés estavam pregados  no chão que nem verruma em prancha nova!

— Anda sempre! Anda! — disse a Maricas Guandu, aproximando o banco,  ébria de curiosidade.

Os beiços alongavam-se-lhe famintos como se estivessem defronte de um  manjar apetitoso e abundante.

Os matutos bebiam sem perderem uma sílaba — perdão! Uma silabada — as  palavras de Pedro Cambraia

— Eu não podia nem andar para a frente nem andar para trás.

— E a alma vinha sobre ti?

— Qual carapuças! Aí é que está o busílis! A alma corria diante de mim como  paca que foge de chumbo!

— E está!

— Era uma figura branca, com umas mangas caídas até o chão e a caveira  reluzindo que nem fogo de queimada! E ia, ia, que parecia nebrina de manhã de frio,  quando começa a soprar vento, e o sol não tarda no céu. A alma parou e como que  olhava para todos os lados. Imaginou lá sua vida à vontade, cismou bem, pensou,  repensou, e depois desapareceu pelo mato adentro!

— Credo! Cruz! Nossa Senhora!

— Quando ela sumiu-se eu caí mesmo em cheio a fio comprido na estrada.

— E depois?

— Já encomendava-me a Nossa Senhora da Boa Viagem, que o medo era  muito, quando me pareceu ouvir bulha na casa do José Paz, uma bulha assim de  janela aberta. Oh! so José Paz — gritei eu reunindo todas as forças de minhas  veias. Outra bulha de janela e mais nada. Cinco minutos depois...

O atencioso grupo apinhou-se em redor do orador. A Maricas Guandu tremia  toda da cabeça aos tamancos.

— Cinco minutos depois, sai um cavalo e o diabo em cima dele, do mato  adentro, embarafusta pela estrada como vento norte e voava por ali fora que nem a  vista podia o acompanhar! Dismalhei de uma vez! Quando refrescou a manhã  acordei, me levantei e o mais o Chico valente sabe...

— Aí anda coisa de patifaria — observou filosoficamente a tendeira, engolindo  um trago de cana, para desfazer os restos do terror que lhe causara a história.

— Não fale assim, sa Maricas! — acudiu o Brás. — Então vosmicê não  acredita em almas do outro mundo?

— Eu cá, por mim — interveio o Chico valente -, tenho medo de almas como  do diabo. Inda me não saiu da cabeça o caso da Boa-Vista no Recife. Até a polícia  andou atrapalhada.

— Mas aquilo era ou não era namoro?  

— Às vezes é, outras vezes não é, sa Maricas — aventurou Pedro Cambraia.

— O vigário diz que a alma da gente não morre, portanto pode voltar quando quiser  para ver os outros que estão vivos.

— Se é a primeira vez que acontece uma coisa destas no Jordão!  

Uma vez sempre é a primeira, minha senhora. Olhe o Califórnia da  Gameleira, que ficou gira depois que viu a alma do outro?

— O que vocês devem fazer é esperar o bicho e dar-lhe uma boa surra!
— Deus me defenda! Santa Bárbara e São Jerônimo.

— Não se me dava a mim de ir, e sou uma mulher.

— Mas uma mulher de pulso! — observou o Brás, com certa ironia maliciosa.

— Para que não tratam uma súcia boa de gente decidida?

— Para tudo morrer de medo?

— Cala a boca, toleirão! Estou quase a jurar em como a alma do outro mundo  é gente como vocês! Quem sabe, mesmo, algum conhecido!

— Quê, senhora! Aquilo é alguma missa que o defunto está pedindo!

— E se não fosse defunto?

— Sempre eu queria ver!

— Pois falem com o José Paz; mandem chamar o Teto, o Leopoldo, aquele  furioso do Tibúrcio, que não é de graças, e façam uma tocaia!

— Só se for assim!

— Eu também entro no rancho! — exclamou a Maricas Guandu empunhando  um cabo de vassoura.

— Está dito! — continuou Pedro Cambraia resolutamente. Vou limpar a  espingarda!

— Nada de mortes!

— Uma cargazinha de sal basta se a alma é deste mundo. Se for do outro  mesmo, Nossa Senhora tenha compaixão de nós!

— Deus é grande, Pedro Cambraia.

José Paz, uma hora depois, entrou na tasca da Maricas Guandu e engoliu  uma dose de aguardente.

Já não havia ninguém na taverna senão o velho cão que ressonava ao sol, e  a dona da casa grunhindo com a cabeça mergulhada nos braços colossais.

— Eh lá, sa Maricas! Tome os dois vinténs! — exclamou o pai de Rosinha  despertando a mulher.

Mancas Guandu abriu a custo os pesados olhos e, à vista do recém-chegado,  despertou de todo.

— Por que não veio mais cedo so José? Houve aqui o diabo!

— O diabo?

— Sim, contou-se coisas de fazer perder o sono ao tinhoso!

— Ora vamos!

— É o que lhe digo. Ainda não conversou com o Cambraia?

— Ah! É disso que se trata? O Cambraia está gira!

— Não diga tal! Ele jura que é verdade tudo, e que foi perto de sua casa!

José Faz ergueu os ombros com um sinal de visível enfado.

— O Cambraia que vá pentear macacos. Até inventou que eu tinha aberto  uma janela; a que horas! Meia-noite! Quando tudo roncava em casa.

— Não perguntou nada a sua filha?

— Pois eu quero lá meter medo à menina! Ora muito boas tardes, sa Maricas.  Diga ao Pedro que vá trabalhar em vez de dar à língua!

E José Paz saiu da tasca sem reparar em uma careta que franziu a cara da  hedionda taverneira.

Rosinha ficara mais pálida desde a noite da festa. Em compensação, porém,  ria-se, brincava, conversava com o pai e com a velha, que a acompanhava às vezes;  mas o seu sorriso era desses que só voam nos lábios e que não chegam ao  coração!

José Paz pulava de satisfeito com a metamorfose operada na filha. Excelente  e estúpido homem! Mal sabia ele que a menina ia definhando aos poucos e que  aquela alegria não era senão o lampejo mentiroso do horizonte, quando se  acumulam as borrascas e crescem a desolação e a morte iminentes! Na noite do dia  em que se travou o animado diálogo na tasca de Maricas Guandu, Rosinha, só, no  seu quarto, escrevia à luz vacilante de um enfumaçado lampião.

Através das frestas do teto e da janela penetravam até a cama da menina os  tímidos e vaporosos clarões das estrelas. Estava calma a noite, e apenas o som de  uma viola afastada turbava o religioso silêncio da natureza.

Rosinha escrevia à milionária. “... Devo-lhe tudo, minha madrinha”, dizia a  última parte da carta, “tudo; a minha felicidade no passado, as minhas alegrias do  presente e o que Deus na sua infinita misericórdia quiser dar-me no futuro.”

Venha buscar-me pelo amor de sua mãe, pelas dores de Maria Santíssima.  Alguma coisa me diz que está batendo a hora da minha desgraça... Não sei o que é,  minha madrinha, mas tenho medo, medo!

Quero confessar-lhe o que se passa no meu coração; venha para eu abrir-lhe  minha alma toda e pedir-lhe que me ampare.

O que é a felicidade sem o descanso, meu Deus? E eu não tenho mais  descanso, não tenho: estou perdida.

A minha própria sombra faz-me terror agora. Parece que em redor de mim há  uma porção de fantasmas que me acusam...

Meu pai ri-se feliz vendo-me contente. Contente! Ah! Minha madrinha! Digo-lhe isto e as lágrimas saltam duas a duas de meus olhos!

Venha, venha, minha segunda mãe, venha socorrer a sua infeliz Rosinha.  Não repare na letra: toda eu tremo como se fosse daqui a pouco morrer... Morrer! Às  vezes a morte é melhor do que o desespero!

Vou rezar e vou dormir. São 11 horas e meia da noite. Tenho febre e sinto um  frio de bater os dentes.

Adeus, minha madrinha. Deite a bênção em sua afilhada.

Rosinha.”

Ela terminou a carta ofegante, trêmula, assustada; dobrou-a a custo, pôs-lhe  o sobrescrito e escondeu-a debaixo do travesseiro.

Seus olhos cercados de um círculo sombrio vagaram pelo quarto e foram até  a janela donde recuaram transidos de espanto. Ela dirigiu-se pé ante pé á porta do  quarto e colocou o ouvido à tábua.

Fazia um silêncio profundo no interior da casa.

Em seguida a menina veio de novo à mesa, rasgou com mão convulsa um  pedaço de papel, e traçou estas palavras, mais aterrorizada, mais pálida do que  sempre:

“Vá; fuja, se me tem um pouco de amor. Não tente a vingança de Deus. Pela  memória de seu pai, e por mim, fuja, fuja, não se lembre mais, não pense, não  desgrace quem pela última vez lhe escreve e invoca a sua generosidade! Se não me  atender, mato-me!”

E bruscamente correu à janela, abriu-a, e dobrando o bilhete entre os dedos  úmidos, colocou-o no peitoril, fechando a janela no mesmo instante.

Havia uma tranqüilidade inviolável no espaço.

A viola calara-se, e no campanário afastado vibrou a primeira pancada da  meia-noite.

Rosinha encostou-se à janela, fechada por dentro, e, estendendo os braços  angustiados, apoiou-se à parede para não cair. Estremecia-lhe violentamente o  corpo; seus olhos escureciam-se, e um suor gelado percorria-lhe a testa abrasada.

Pouco adiante da casa de José Paz saíam de um grupo escondido entre as  árvores palavras em surdina e constantes murmúrios. Eram os espiões  capitaneados por Pedro Cambraia, à espera do fantasma que tanto horror causara  entre os sabedores da aventura.

— Vocês vão ver — dizia o Tibúrcio, o valentão — que tudo foram maluquices  da cabeça do Cambraia!

O homem estava com sono e viu almas por toda parte! A Maricas Guandu  estava também na troça, embrulhada em uma saia de sarja, a título de capote.

— Não façam barulho, filhos de Deus! — observou ela. Está batendo meia-noite em S. Gonçalo.  Calaram-se todos e dez olhos curiosos seguiram a mesma direção pela  estrada acima.

Nesse momento fechava Rosinha a janela, depois de deixar o bilhete, e  encostava-se à parede, vacilante. Os latidos de um cão feriram-lhe os ouvidos, e,  como se se arrependesse do que havia feito, tentou por um esforço extremo abrir de  novo a janela.

Os espiões conchegaram-se uns aos outros apontando para um ponto ao longe.

Pedro Cambraia benzeu-se e o Tibúrcio esfregou as mãos para chamar  coragem. A Maricas Guandu sentiu as pernas dançarem-lhe de medo e fechou  espavorida os olhos.

De feito, uma sombra alva, uma grande túnica e dois braços estendidos para

o céu desciam da mata silenciosa, e vinha aquela figura sinistra andando pela  estrada, através da pálida luz das estrelas, devagar e sem ruído.

Os espiões tiritavam como condenados ao pé da forca. O Tibúrcio, que era o  mais corajoso de todos, pedia ao céu que lhe fizesse nascer nas costas e nos pés  dois pares de asas velozes.

Foi justamente nesse instante que Rosinha tentou abrir de novo a janela, e  depois de lutar com a aflição que a sufocava, e com as névoas que lhe obscureciam a  vista, estendeu agonizante os braços hirtos, e caiu sem sentidos no meio do quarto.  


CAPÍTULO IX

Eram quatro horas da madrugada quando tornou a si. As meigas aragens,  precursoras da manhã, entravam pelas frestas, em serenos bafejos. A afilhada da  milionária a custo moveu o corpo alquebrado de fadiga, de comoções e de febre,  arrastando-se à janela e abrindo-a com uma rispidez nervosa e frenética. Na barra  do horizonte as frouxas emanações do dia estendiam-se como um véu diáfano. As  árvores meneavam a copa orvalhada, e os grilos amiudavam o cristalino canto, à  proporção que a luz do céu ia anunciando a presença da alvorada. A atmosfera  estava transparente e calma. Uma ou outra ave noturna, retardada, singrava com a  asa silenciosa a onda etérea do crepúsculo matutino.

Rosinha apoiou os cotovelos nus na janela, e respirou com o desespero do  moribundo os consoladores ares da natureza virgem. Pálida e angustiada, sorriu a  todos os primores que seus olhos viam, exatamente como essas crianças  desamparadas, que pela última vez saboreiam os encantos de um mundo  esperançoso quase perdido para as suas ilusões, para os seus amores e para a sua  existência inconsolável.

Batiam-lhe tumultuosamente as fontes e os seus olhos secos vagavam de um  ponto a outro sem consciência, inquietos, assustados, abrasadores e fatais.

Depois, como se duvidasse do que se passara durante a noite, correu os  dedos frios pelo peitoril da janela; o bilhete havia desaparecido. Cravou a vista no  chão, supondo que o vento arrebatara o papel; na terra gretada e nua amontoavam-se apenas algumas folhas amarelas, que o sol e as brisas desprendiam das árvores.

A menina apertou ao peito agitado as mãos febricitantes e desatou a chorar.  De longe em longe os galos correspondiam-se, saudando os róseos vapores da  manhã, que esgarçavam-se no oriente.

Pobre criança. Para ela tudo estava já perdido, e nenhuma das santas  harmonias da natureza achava eco em seu coração dilacerado! No meio das  angústias, das lágrimas e do terror que a perseguiam, ela reportava-se ao passado e  arrependia-se, embora tarde! De ter abandonado, atraída por um destino insensato,

o verde ramo das palmeiras natais, onde estremecia vazio o seu ninho ainda  perfumado e quente!

As adoradas visões da infância enchiam-lhe a alma desvairada e um fresco  aroma de boninas e madressilvas, que desceu na asa do vento, despertou-lhe a  lembrança de um mundo cheio de folguedos e castas aspirações, submergido no  naufrágio de todas as suas esperanças!

As velhas árvores que a conheciam, e a cuja sombra em criança ela tantas  vezes adormecera, pareciam apiedar-se das suas dores e diziam-lhe, murmurando  com os bafejos da manhã:

“— Foi tua a culpa, Rosinha. Vivias tão bem aqui ao pé de nós, à nossa  sombra, ouvindo o doce rumor que a aragem acorda entre as nossas folhas  orvalhadas e verdes! Que foste fazer nesse outro mundo, pérfido e traiçoeiro, onde  tudo é perigoso, o riso da criança, o olhar da inocência e as lágrimas incompletas?  Abre de novo, abre o teu coração às místicas exalações da natureza que te viu  nascer!”

Chora, Rosinha! Chora! E consola-te também! Nunca é tarde para o  arrependimento, e os remorsos são as escadas de espinhos por onde a alma sobe  até os pés misericordiosos da Virgem!”

Do cálice das flores e do regaço das plantas começaram a sair, em  caprichosos bandos, as borboletas, doidas pelo primeiro raio do dia!

A alada caravana roçava os cabelos desatados da menina, exclamando talvez  na sua linguagem caprichosa e pura:

“— Também nós corremos sempre à procura do melhor mel e do melhor perfume, Rosinha! Mas sabemos distinguir a corola em que brilha a gota de  ambrosia e o cálice onde dorme o veneno amaldiçoado! E tu, borboleta, borboleta!

Por que tão depressa rasgaste as tuas asas e bebeste a longos tragos a loucura e a  morte? Vem conosco, se queres, oh! chorosa irmã! Mostrar-te-emos os campos de  esmeralda onde cantam os passarinhos felizes, e as encantadas grutas em que o  vento suspira com mais doçura do que o orvalho quando escorre do leque dos  coqueiros!”

O sino afastado chamava os fiéis à missa da madrugada. Despertavam os  ninhos, e uma larga harmonia povoava a atmosfera transparente.

Rosinha levantou a cabeça e afastou do rosto, em um gesto arrebatado, os  cabelos negros que se lhe colavam à pele enregelada.

Aquela noite valera um ano de sofrimentos para sua alma; estava lívida como  um defunto, e em seus olhos já não brilhava a réstia aveludada, mas sim um clarão  negro e sinistro.

Voltou tremendo ao interior do quarto e ajoelhou-se; caiu ajoelhada à cabeceira da cama.

Entrelaçou as mãos, embebida na avidez dolorosa de uma oração intima, a oração do náufrago, quando vê partindo pelas ondas o destroçado lenho a que se  agarra nos paroxismos da morte!

José Paz veio deitar-lhe a bênção, pronto para sair. Ia a negócio e só voltava  tarde.

A menina escondeu a cabeça desorientada no seio do pai, e todo o seu corpo  estremecia como ao contato das pilhas elétricas.

O matuto esbugalhou os olhos.

— Que é isto?

— Nada, não é nada, meu paizinho! — acudiu ela de pronto, tentando sorrir  no meio de sua palidez mortal.

José Paz abanou melancolicamente a cabeça.

— Pois não saio mais — disse ele.

Mas Rosinha com um ímpeto nervoso tomou entre as suas as mãos calosas  do velho:

— Saia! Vá, vá aos seus negócios, meu paizinho! Tinha que ver! Por minha causa, perder alguma coisa! O dia está bom, está fresco; repare. Há muito tempo  que não faz um dia como o de hoje!

— Tu tens alguma, Rosinha, que não me queres contar!

Uma nuvem de rubor roçou as faces da menina.

— Eu? Nada sinto: já lhe disse. E o que foi, passou!

— O que é que passou?

— Um sonho mau — continuou ela com o olhar sombrio -, um sonho mau de  fazer arrepiar as carnes!

— Ora, conta-me o sonho mau.

— Não, não! Para quê? Só em lembrar-me dele, cuido morrer!

— Ah! Rosinha! Rosinha! Parece que Nossa Senhora não tem mais pena da  gente!

Cresceu uma lágrima nas pálpebras do velho que ele enrugou com a palma  rugosa da mão.

Por um esforço heróico, a menina compôs o semblante e derramou em torno  de si a alegria e a felicidade, pela luz dos seus sorrisos.

— Vá ao seu negócio, vá. Já me sinto inteiramente sossegada! E depois os  sonhos mentem, meu paizinho. Se acontecesse tudo quanto se sonha!...

Quando ecoaram na estrada os passos lentos e pesados do matuto, Rosinha  levou freneticamente à boca um bentinho que se lhe enroscava no seio, articulando  com a voz sufocada em soluços:

— Minha Nossa Senhora das Dores! Protegei esta desgraçada!  E repetia cobrindo de beijos o adorado talismã:

— Pelo bendito sangue de vosso filho! Pelo bendito sangue de Jesus!  A velha dindinha Paula entrou no quarto já de rosário empunhado e os  grossos beiços em ebulição beatífica.

— Muito bom dia, santinha!

— Bom dia, dindinha Paula! Bom dia!

— Que cara é essa, menina? Passou mal a noite?

— Muito, muito!

— Hein? O que foi?

— O que foi o quê?

— Que é que teve de noite?

— Nada. Dormi de um sono só até romper o dia!

Nem ela sabia o que dizer! A velha acocorou-se em um canto, apalpando a  conta de um novo padre-nosso com uma nova ave-maria.

O sol apontava no horizonte e as aves selvagens em longos esquadrões  voavam, pairando sobre as árvore cerradas da mata. Os curiós desafiavam nos  sapotizeiros, e a rola gemia entre os troncos a sua eterna melopéia do amor e da  saudade.

Os da banda de Pedro Cambraia relembravam na tasca da Maricas Guandu  os pavorosos sucessos da véspera.

— Então? Agora é certa a coisa ou não é? — perguntou triunfalmente Pedro  Cambraia.

— Tão certo — interrompeu a tendeira — como estar eu aqui olhando para  vocês! Aquilo é desgraça que está para acontecer.

O valentão Tibúrcio entrou na tasca.

— Olá, Tibúrcio? Aposto em como não pregaste olho o resto da noite?!

— Já fui à Boa-Viagem e já vim — disse o recém-chegado.

— Fazer o quê?

— Convidar o Mariano para entrar com a gente logo de noite no rolo!

— Que rolo é esse? — perguntou a Maricas Guandu, contemplando em  êxtase os seus enormes pulsos.

— A coisa há de se fazer de combinação — prosseguiu o Tibúrcio, abaixando  a voz. — Vamos eu, Mariano, Pedro Cambraia, Teto, Basílio, que também vem logo,  e...

— E eu! — exclamou a tendeira.

— Mau! Mulher sempre entorna o caldo!

— Ai, ai, que graça, meu sinhô moço! Se você quisesse fazer uma aposta!

— Vá lá!

— Eu fecho na palma da mão um vintenzínho xenxém, e se alguém for capaz  de abrir...

— Ganha o vintém? Ora faça-me favor!

— Ganha cinco mil-réis! — bradou a tendeira, empregando na mesa um  murro prodigioso.

— Safa! Estamos satisfeitos com a amostra! — observou o Brás arredando-se  para a porta.

— Vou ou não vou? — perguntou a Maricas Guandu, cravando os olhos de  jacaré na freguesia assustada.

— Vai sim, mulher, vão todos, vai o mundo inteiro que é melhor! Ora! Já não  se viram!

— Você pensou em tudo como deve ser, Tibúrcio?

— Que dúvida! Eu, o Chico valente e qualquer outro, leva espingarda  carregada de sal. Não há de ser preciso fazer fogo com toda a certeza, porque o  patusco arreia de susto, assim que nós gritarmos.

— E se não se importar com os gritos, faz-se fogo?

— Pudera! Uma feridinha de sal é coisa que tem chupado muito menino  bonito.

— E o inspetor?

— Conta-se tudo ao inspetor. Há testemunhas! Nós estamos no nosso direito!

— Lá isso é verdade! — disse Pedro Cambraia sentenciosamente.

— Dá licença para uma palavra? — indagou o valentão Tibúrcio.

— Tem toda.

— Eu acho melhor o seguinte: sa Maricas e um ou dois dos nossos ficam aqui  na venda...

— Não, senhor; não, senhor!

— Ouçam, minha gente! Faz lua hoje, mas afinal de contas a noite é escura,  quase sempre como fundo de cacimba. Arranja-se archotes com casca de cana e  azeite, para, quando filar-se o meco, virem com luz e ver-se direito a cara dele.

— Assim como assim — observou a tendeira —, não é mal pensado, não.  Pois está dito! Eu fico: eu, o Brás e o José Paz! Nada! O José Paz não serve!

— José Paz é home corajoso! — acudiu o Tibúrcio, com o orgulho do general  que louva os atos de bravura de um subalterno.

— Esse há de vir com a gente tocaiar o bicho.

— Ele não acredita! Ainda onte, disse aqui que o Cambraia andava girando!

— Logo eu lhe amostro o que é gira, deixa estar! Ele é que parece não ter a  cachola no seu lugar!

— Se o Paz souber da verdade, não põe dúvida em entrar na festa!

— Há de entrar com a ajuda de Deus!
— Sempre se vai ver quem é o diabo da alma!

— Credo! Não fala assim, Chico! Eu até achava melhor ir primeiro ao vigário  antes de fazer nada. Pode ser o espírito de um pecador que faz penitência!

— Pois que vá fazê-la no inferno! — exclamou o valentão Tibúrcio esvaziando  uma excelente quantidade de cana.

Brás, encolhido na soleira, seguia automaticamente os movimentos dos outros.

— E tu, Brás? Vens também de noite?

— Vote! Mais me valia cair de cabeça para baixo na estrada quando  passasse o carro de ferro!

O Brás fica comigo para levarmos os archotes.

— Lá isso, bem. No fim da trapalhada toda, estou pronto!

— Mofino!

— É meu proveito se sou mofino! O Rodrigo ficou mal-assombrado e foi para  o hospício de Olinda! Cá por mim inda quero comer muita farinha!

A capela dos Prazeres estava aberta na hora em que José Paz passava pela  freguesia. O matuto entrou, ajoelhou-se e, com os olhos molhados fixos no altar da  Santa, murmurou o nome da filha. O vigário vinha saindo da sacristia quando José  Paz levantava-se e dirigia-se à porta da igreja.

— Oh! Sr. José!

— Muito boa tarde, sr. vigário! — respondeu o matuto curvando-se até o chão.

— Não quis ir-me embora sem pedir A Senhora Mãe de Deus pela minha Rosinha.

— Como vai ela? — perguntou o padre carinhosamente.

E ambos saíram para o adro da capela, cheio de fresco e de sombra. O sol  derramava ondas de fogo, e a carroça de um engenho, atopetada de canas e  mangas, rangia atravessando a estrada.

 José Paz ergueu os olhos para o céu e suspirou duas vezes.

— Não vai bem, não, sr. vigário!

— Conta-me isso, homem!

— Alguns dias depois que queimei-lhe os livros e os vestidos, ela ria-se  alegre, cosia cantando e não falava na madrinha.

— Bom, bom. Foste um pouco exagerado, meu velho, mas não faz mal!

— Depois começou a ficar outra vez aborrecida e triste como dantes! Ali anda  mau-olhado!

— Ah! A propósito de mau-olhado, que história é essa de almas do outro  mundo, não me dirás?

— São bestidades do Pedro Cambraia. Parece que o dinheiro da loteria tem  lhe dado muito de beber, e o pobre home já não sabe nem o que vê, nem o que  conta! Vosmicê acredita em almas do outro mundo?

O vigário sorriu paternalmente, e batendo no ombro do matuto:

— As almas não morrem, sr. José, mas também não voltam. Deus reserva-lhes na vida futura uma outra existência completamente diversa da que tiveram, quando arrastavam o corpo entre as misérias da vida.

— É o que eu digo; não voltam.

— Se algum mau espírito humano, José, usa desses meios fantásticos para  amedrontar os ingênuos e praticar atos menos cristãos, merece um castigo tremendo!  

— Então o sr. vigário cuida que...

— Não cuido nada, que nada vi. Homo sum. Ouvi estarem por aí a falar de  uma figura branca que aparece no Jordão todas as noites, e que tem espalhado o  pânico entre os pacíficos habitantes do lugar! Isso é um crime monstruoso e que não  deve ficar impune.

— Pois cá no meu juízo, sr. vigário, tudo não passa de doidices do Pedro  Cambraia!

— Vamos ao que serve. Por que não mudas de terra? A menina estimaria  bastante talvez, e aquelas tristezas fugiriam com o sol de outros climas.

— No Jordão nasci eu; no Jordão nasceu ela, sr. vigário. Só para o cemitério  é que a gente se mudará um dia!

— Deus os proteja então. Olha cá: traze-a domingo à missa aos Prazeres. É  missa cantada que a baronesa manda dizer por promessa, e vem muita gente do  Recife. Rosinha se distrairá um pouco.

— Até domingo, sr. vigário.

— Vens?

— Que dúvida! É preciso que Nossa Senhora veja aquela pobrezinha de  quem se está esquecendo!

— Não blasfemes, José!

— Ah! Sr. vigário! — exclamou o matuto com a expressão de um amor  profundo. — Se vosmicê fosse pai!...

E engoliu um soluço que partiu-se-lhe na garganta agitada.

O padre estendeu-lhe a mão:

— Até a vista. Tenho uma caminhada agora e não posso demorar-me que se  faz tarde. Adeus, e esperança na Mãe de Deus, bálsamo para todas as aflições.

— Olhe, sr. vigário — volveu José Paz com um sentimento de convicção  inabalável -, alguma grande desgraça vai-me acontecer!

— Estás louco, homem!

— Enfim, a Deus me entrego. Se for assim, ele que tenha misericórdia de  minha alma no outro mundo!

José Paz encontrou à entrada do Jordão três dos perseguidores do fantasma:  Tibúrcio, Pedro Cambraia e Chico valente.

— Já lhe fomos procurar em casa, so Paz, mas a menina disse que você  tinha ido não sei aonde.

— É nova festa, Pedro? Tiraste mais dinheiro na loteria? — perguntou José
Paz gracejando.

— A coisa é mais séria do que um samba, so Paz — acudiu o valentão  Tibúrcio. — Esta noite ...

— Ah! Ah! Temos histórias de almas?

Os quatro foram andando devagar, enquanto o Chico valente tomava a palavra:

— Não caçoe, so José. Agora não é só o Cambraia quem fala. Eu vi, viu o  Tibúrcio, viu a Maricas Guandu.

— Mas o quê? O quê? Que é que vocês viram?

José Paz estacou de repente, e aguardou a resposta dos outros.

Vimos pela volta da meia-noite uma sombra muito grande sair da mata e  caminhar com os braços estendidos para a frente.

— Ora!

— Andou um pedaço, parou, olhou em redor assim a modo de quem vê se há  gente no caminho, e...

José Paz desprendeu uma gostosa gargalhada.

— Acaba o resto! — disse ele ao Tibúrcio. — Quero me rir à vontade dessas  asneiras! Pelo que vejo, tudo anda maluco por cá!

— A alma caminhou, caminhou e enfiou os passos para sua casa, so José!  José Paz deu um salto violento, como se pisasse as brasas de uma fogueira.

— Que é lá isso? — exclamou ele rubro e pálido, ao mesmo tempo com as  pernas trêmulas e os punhos cerrados. — Olhe, so Tibúrcio, pela alma de minha  mãe, que, se você não disse a verdade, meto-lhe no couro duas libras de chumbo  grosso!

— Está dito, so José. Venha em nossa companhia hoje de noite, que vamos  desencovar o bicho.

— Vou — respondeu José Paz, com a voz surda e vacilante; — leva-se  alguma arma?

— Espingardas com carga de sal. Matar é crime grande, e, depois, se a alma  é mesmo de defunto...

— As almas não voltam — interrompeu José Paz, lembrando as palavras do  vigário. E murmurou entre os dentes contraídos:

— Eu levo a minha faca.

Rosinha tremeu reparando na fisionomia do pai quando ele entrou em casa.

— Estás melhor? Perguntou-lhe o velho com uma duvidosa expressão de  ternura e de cólera.

— Estou.

O matuto não buliu no jantar, e, ao sair da mesa, saiu também de casa. A  menina correu ao seu quarto e deixou-se cair na cama, com os olhos desvairados e  as mãos crispadas no travesseiro.

— Meu Deus! — gemeu ela — hoje é o último dia de minha vida!

Correu à janela, examinou de novo o peitoril, o chão do lado de fora, estendeu  a vista mais além. Nada vendo do que procurava, respirou sofregamente e limpou o  suor gelado que lhe escorria entre os cabelos soltos.

Não havia notícias da milionária, nem o criado viera, já há três dias, ao  Jordão, de forma que aquela angustiosa carta, escrita na véspera, ainda não tinha  seguido a seu destino.

Eram cinco horas da tarde. A porta da tasca dialogavam vivamente José Paz,  Tibúrcio, Pedro Cambraia, a tendeira, e mais dois ou três sujeitos.

Um deles, um rapaz de 18 anos, robusto e cândido como um novilho,  encostava-se negligentemente ao cano meio enferrujado de uma clavina. Chamava-se Mariano, e era o tal caçador da Boa-Viagem de quem falara pela manhã o  valentão Tibúrcio.

— Às 11 horas — dizia José Paz —, estamos todos reunidos aqui para irmos tocaiar perto de minha casa.

— Quer a minha espingarda, so José? — perguntou o Brás.

Dois relâmpagos sanguinolentos cruzaram-se nos olhos de José Paz.

— Obrigado, rapaz. Eu tenho faca. E bateu no quadril.

— Cuidado com os tiros, se houver tiros, meu povo — observou a Maricas  Guandu. — é bom a gente não ir parar na cadeia por uma coisa à-toa!

— Não há novidade — exclamou Pedro Cambraia. Tudo corre pelo melhor, sa Maricas. E você o que diz Mariano?

O rapaz da clavina, descansando a coronha da arma no chão:

— Eu vim só para ver — respondeu ele. — Se trouxe a Chica — era o nome  da clavina —, é porque nunca ando sem ela. Mas para hoje não serve!

— Está carregada?

— E com chumbo de veado. Já tem mês e meio a carga, foi para a caçada do  tal doutor, que gorou. Mas não faz mal; se for preciso trabalhar com o coice da arma,  cá está o degas!

José Paz contemplava sua casa, através das árvores que a envolviam, com o  olhar profundo e agoureiro.

Rosinha recebeu a bênção do pai à hora de se recolher; a mão do matuto  estava gelada como uma lousa de mármore.

A menina não se despiu; começou a passear pelo quarto, ora rápida, ora  vagarosa e trôpega, amparando-se às paredes e encostando o ouvido aterrorizado à  tábua gretada da janela.

Estava quase a bater meia-noite. A lua, em toda a sua esplêndida doçura e  majestade, contemplava, cercada de estrelas, a terra silenciosa. Um surdo ruído  produzido de encontro à janela fez vacilar Rosinha; fora a asa de um morcego,  animal sinistro que sempre anuncia desgraças, e que vinha talvez despertá-la para  algum perigo iminente.

A infeliz teve ímpetos de abrir a janela, mas recuou defronte dessa ruim idéia.  Novo ruído dentro do quarto chamou-lhe a atenção, e ela viu uma grande borboleta  negra pairando sobre a sua cama.

Com os braços, as mãos e os cabelos inundados de suor, as pernas trôpegas  e a boca enregelada, a afilhada da milionária seguia tudo o que a cercava, muda e  sombria como as figuras que ornam os túmulos adorados.

Estavam de emboscada José Paz, Tibúrcio, Pedro Cambraia, Mariano, Chico  valente e mais outro espião.

Tibúrcio, de joelhos na frente do grupo, com a espingarda entre os joelhos, alongava a vista pelos confins da estrada.

Soou a fatídica meia-noite, lentamente, na asa lúgubre do vento, que murmurava entre as árvores obscuras.

— Não façam bulha — murmurou Tibúrcio. — Ela não tarda.

José Paz tinha a boca entreaberta e a testa úmida, que reluzia ao clarão  misterioso da lua. Chico valente, apesar do seu título de bravura, rezava consigo  uma oração própria para conjurar duendes e fantasmas.

A um sinal rápido de Tibúrcio, todos prestaram mais atenção, arregalando os  olhos enevoados pelo supersticioso terror que os acometia. Vinha descendo da mata  a longa figura branca, de braços estirados e o porte sinistro como o de um espectro  evocado entre os horrores dos túmulos.

José Paz apertou com a mão oscilante o cabo da faca, e seus olhos  faiscaram tempestuosamente.

A sombra caminhava solene, silenciosa, assustadora, no meio da estrada.  Tibúrcio examinou o gatilho da espingarda que estremecia entre os seus joelhos  bambos.

— Vamos dar um grito para assustá-la, so Paz — questionou o Chico valente,  doido por safar-se da meada.

José Paz fitou-o com um furor indescritível.

— Se alguém gritar aqui — disse ele surdamente —, cravo-lhe a faca na goela!  

O fantasma pouco distava da casa de José Paz.

Tibúrcio voltou-se para o pai de Rosinha, e amedrontou mais do que a alma  do outro mundo a cara hedionda do matuto, ruivo de cólera e de horror.

O peito arfava-lhe sibilando; as narinas zuniam-lhe vivamente e, de sua boca  pálida, saia a respiração como o silvo das cascavéis no meio do fogo.

O fantasma aproximava-se cada vez mais, e José Paz abafou um grito na  garganta abrasada.

— Não era possível duvidar! A sombra, depois de uma pequena pausa em  que ficou parada como a examinar o que havia em redor, adiantou-se para a janela  do quarto de Rosinha.

Tibúrcio levantou os braços e tentou gritar; a voz ficou-lhe estrangulada entre  os dentes.

José Paz, alucinado, louco, terrível, deu um arranco de fera para trás,  desembainhou a faca, lançou-a ao chão, e antes que se lhe pudesse impedir o  movimento, arrebatou das mãos de Mariano a clavina, engatilhou-a e fez rogo,  uivando como uma onça ferida.

A sombra moveu os braços longos e caiu estendida por baixo da janela.

Quase ao mesmo tempo um grito de dor imensa atravessou o espaço, e uma outra  sombra atirou-se da janela de Rosinha, caindo ao pé do ferido.

A Maricas Guandu e o Brás acudiram ao rumor do tiro com archotes que  espalhavam uma luz penetrante e clara. Correram todos ao lugar do sinistro, e um  brado geral desprendeu-se de todas as bocas. Rosinha de joelhos procurava  estancar o sangue com as mãos agonizantes, o sangue que jorrava do peito do  ferido, inundando a vasta mortalha em que estrebuchava o corpo.

Era Adriano. O chumbo penetra-lhe no lado esquerdo por baixo do ombro,  fazendo uma ferida larga e mortal. As sombras finais coroavam a pálida cabeça do  moribundo como de uma auréola sagrada. Seus olhos enublados fitavam o  semblante da menina, e um sorriso doloroso e meigo voava nos seus lábios  extáticos como a última irradiação da mocidade.

José Paz cambaleava e não tinha uma palavra a pronunciar naquela  desolação horrenda.

A Maricas Guandu benzia-se, o Brás desatou a chorar, e o Mariano ajoelhou-se junto ao corpo do ferido:

— Perdoe-me, perdoe-me, meu senhor! — articulava o pobre rapaz, torcendo  as mãos desesperado. — A clavina é minha, foi só Paz quem ma arrancou das  mãos, mas se eu soubesse disto, antes queria rachar a cabeça de encontro a uma  pedra!

Adriano voltou os olhos para o rapaz que soluçava contraindo-se em cãibras dolorosas.

— Não foste tu, meu amigo — disse ele a custo e com uma voz suave e triste  —, foi a mão de Deus quem carregou a tua clavina. Pobre criança! — continuou  contemplando Rosinha que, de joelhos, o observava sem proferir uma palavra e sem  derramar uma lágrima — Pobre criança! O céu não quis que eu recebesse de tuas  mãos a felicidade na Terra. Fica o teu véu de noivado, Rosinha, enodoado  eternamente de sangue!

Ela não pestanejou sequer; parecia petrificada pela dor.

— Sr. José Paz — prosseguiu Adriano, procurando com os olhos quase  apagados o vulto do assassino —, eu lhe perdôo e o lamento; não foi a mim que o  senhor matou, meu velho, foi a alma de sua filha!
José Paz cambaleou de novo e segurou-se a uma árvore afastando-se do grupo.

— Não haverá um padre por aqui? — perguntou o ferido.

— Há nos Prazeres, e eu vou o buscar voando! — exclamou Mariano.  O ferido sorriu.

— Quando voltasses já eu estaria morto. Não vás, não; e ouçam-me vocês  todos, meus amigos.

Aproximaram-se trêmulos, descobrindo-se um por um.

— Esta menina — acrescentou o moribundo — é pura como a hóstia do altar,  e como as flores de Deus. O culpado fui eu que quis por força ir de encontro ao meu  destino. E tu me havias prevenido, Rosinha! Mas estava escrito que este louco havia  de morrer a teus pés!

A luz clara e brilhante, que por momentos se escondera entre nuvens,  fulgurou no céu, de novo límpido e sereno. Um sabiá trinou no meio do mato,  cuidando que era dia.

Adriano prosseguiu, abaixando a voz pouco a pouco, e à semelhança de uma  luz que bruxuleia e apaga-se na lanterna seca de óleo.

— Adeus, Rosinha, pensa algumas vezes em mim...

Respirou com força como a despedir-se para sempre das aragens da terra, e:

— Guarda o meu nome no teu coração, oh! Meu doce e desgraçado amor!...

Reza para que o céu tenha piedade de minha alma lá em cima!

Rosinha, sempre muda, cruzou as mãos molhadas de sangue no seio que  estalava ofegante.

Adriano Carvalhal foi, pouco a pouco, deixando cair a cabeça, estirou os pés  gelados sob a mortalha roçagante, e tentou por um esforço sobrenatural apertar na  sua a mão da virgem.

Mas as forças abandonaram-no, e a mão pesada caiu sobre o corpo  ensangüentado.

Seus olhos, sem irradiações e sem chamas, embeberam-se no céu.

— Quantas estrelas. — suspiraram os lábios extáticos e deslumbrados.

E, entreabrindo a boca, o moribundo exalou o derradeiro sopro, a derradeira  exalação o derradeiro vestígio de sua mocidade. Para o céu festivo ascendeu aquela  pobre alma enamorada, ferida no melhor banquete de suas esperanças e de suas  ilusões de amor.

Rosinha desprendeu um grito rouco e cavo, entre o som produzido pela voz  humana e o bramido da fera baleada. Ergueu-se de ímpeto, atirou para trás os  cabelos negros, curvou-se junto ao cadáver, sacudiu-lhe a cabeça inanimada e,  desferindo um círculo com os pés velozes, saltou sobre o corpo de Adriano e partiu  a correr pela estrada deserta.

A Maricas Guandu e o Brás voaram-lhe no encalço e a prenderam nos braços  quase à beira do rio. Ela olhou-os com uma feição de idiota, escondendo os dedos  vermelhos de sangue, e desatou a soluçar, a chorar e a rir vibrantemente,  ameaçando o céu com as mãos fechadas e convulsas.

José Paz foi entregue à justiça como assassino de Adriano Carvalhal.

A milionária envelheceu em uma semana, e metade de suas alegrias foi  dentro do esquife do sobrinho. Pouco safa; apenas de dois em dois dias ia a Olinda,  e visitava alguém no hospital dos alienados.

Esse alguém era a Rosinha do Jordão.

Contava a irmã de caridade que a loucura da menina era das mais dóceis —   de que há notícias entre os desgraçados, órfãos de razão e de luz.

A menina gastava o dia inteiro em trançar coroas com flores, com papel e  com tudo que lhe caia às mãos, para no dia seguinte desmanchar a obra e começá-la de novo.

Não pronunciava uma palavra, e olhava para a madrinha de vez em quando,  como se nunca a tivesse visto neste mundo.

A meia-noite erguia-se da cama, e pé ante pé, com o dedo na boca, a  reclamar silêncio, metia-se no vão da janela, ouvindo em santo recolhimento as 12  pancadas do sino confundidas com o sussurro eterno do mar.


Era essa a hora em que ela costumava esperar o pobre do Adriano.


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Nota:
Guimarães Júnior: "Contos sem Pretensão"   (1872)

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