TRÊS
CHARUTOS
A Belarmino
Carneiro
Três anos
havia já que eu não visitava o meu amigo Eduardo da Silveira quando, uma noite,
ao entrar no meu quarto, encontrei sobre o criado-mudo um cartão postal desse
velho camarada que dizia o seguinte:
"Por
Júpiter!... Parece que estamos de relações cortadas!... Há um século que não
apareces. Vem amanhã almoçar comigo e traze o teu xadrez de algibeira para
jogarmos uma partida sob a mangueira frondosa do meu jardim. Estou agora à rua
de S. Clemente, N... em um ninho minúsculo, mas confortável e tranqüilo. Cá te
espero sem falta."
Fui, e
quando entrei sem-cerimoniosamente no gabinete de trabalho desse ditoso rapaz,
envelhecido prematuramente nos gozos da vida elegante, encontrou-o de robe de
chambre, sentado em frente à sua secretária e pondo em ordem alguns papéis
dentro de uma gaveta estreita, comprida e funda.
Caímos nos
braços um do outro e depois das exclamações habituais: "Até que afinal!...
Mas... como estás velho!... - Como estás mudado!..." etc., Eduardo fez-me
sentar a seu lado, dizendo-me:
- Deixa-me
concluir o arranjo desta gaveta e estou todo ao teu dispor.
E
tagarelando, tagarelando sempre, com a sua inextinguível verve, o meu velho
amigo ia passando para dentro da gaveta uma montanha de papéis que se
avolumavam sobre a secretária, quando, de repente, os seus dedos pousaram sobre
um envelope largo e bojudo, que parecia conter um objeto duro.
-Ah! Cá
estão, cá estão eles... É uma preciosidade!... - exclamou.
E
passando-me o envelope:
- Sabes o
que é isto?
Tomei o
envelope e apalpei-o:
- Serão
charutos?... inquiri duvidoso.
-
Exatamente, são três charutos que têm uma história triste. Custaram-me três
contos de réis.
Encarei-o,
admirado, sem compreender.
- Espera,
espera um pouco; eu concluo já esta tarefa e depois contar-te-ei esse caso.
E, sorrindo,
abriu o envelope e dele tirou três pequenos charutos, castanhos e esguios,
apertados por uma cinta de papel branco, onde havia estes dizeres:
Herança de
Palmira
Rs.
3:000$000 16 de março de 1891.
- Aqui os
tens; admira-os, enquanto acabo com isto.
E continuou
na sua tarefa de ordenar os papéis dentro da gaveta, enquanto eu examinava
curiosamente os charutos, sem atinar com o motivo de tão elevado custo.
Cinco
minutos depois, Eduardo empurrava a gaveta e voltando-se para mim dizia-me:
- Sou todo
teu agora. Vamos portanto à história dos charutos, que naturalmente te está
intrigando. Lembras-te da minha afilhada Palmira, filha da Marta do Recreio
Dramático?
- Tenho uma
lembrança vaga.
- Pois bem:
essa criança, há três anos, ficou órfã de mãe que, como sabes, morreu tísica; e
a pobre Marta, que eu tanto amei nos tempos em que a sua graciosa figura
fascinava os ociosos da rua do Ouvidor, vendo-se definhar, poucos dias antes de
morrer mandou-se chamar, pediu-me que velasse pela Palmira e entregou-me três
contos de réis, fruto das suas economias e única herança da filha.
"Aceitei
o encargo, e no dia em que conduzi a linda e voluptuosa Marta à sua última
morada trouxe a filha para minha casa. Não saí nessa noite muito de indústria
para distrair e consolar a pobre criança que me fora entregue e que, ferida
cruelmente pela morte da mãe, tinha caído em um desespero bem fácil de ser
compreendido por aqueles que já perderam o único ente querido que lhes restava.
Mas, no dia seguinte, depois do almoço, saí, levando no espírito a preocupação
de colocar a pequena fortuna da pobre órfã em condições de lhe produzir a
máxima renda possível. E, então, cogitando durante o dia inteiro no melhor
emprego para esse capital, lembrei-me de comprar com ele uma pequena
propriedade, bonitinha e bem tratada, que, um mês antes, eu vira no Engenho
Novo e cujo preço não excedia então de quatro contos. Era possível que a
propriedade ainda não tivesse sido vendida e também não era impossível que, em
tal caso, o proprietário fizesse abatimento no preço, cedendo-a pelos três
contos. Não me enganei, porque, indo nesse mesmo dia ao Engenho Novo, lá
combinei a compra pelos três contos, ficando assentado que a escritura seria
lavrada no dia seguinte.
"Dei,
nessa mesma tarde, a notícia a Palmira, e no dia imediato, depois do almoço,
meti na minha carteira os três contos e parti em direção ao cartório onde a
escritura devia ser assinada. Mas, ao sair de casa, encontrei, junto ao portão
do jardim, a Palmira de fisionomia abatida e de olhos vermelhos. Chorava
evidentemente e no seu olhar havia ainda uma tristeza infinda. Comoveu-me o
pesar dessa infeliz órfã e, procurando consolá-la, atraí-a ao meu peito e
beijei-a. Notei então que a cabeça e as mãos da criança estavam quentes e
perguntei-lhe se sentia algum incômodo. Respondeu-me que nada sentia, mas
pediu-me que não saísse, que ficasse com ela, que estava com medo de ficar só.
E recomeçou a chorar. Tranqüilizei-a, e desculpando-me com a necessidade de
estar na cidade, nesse dia, à hora marcada para assinar a escritura, parti,
prometendo que voltaria cedo e que a levaria ao teatro.
"A
Palmira ficara junto ao portão do jardim e do carro, em que entrei, ainda a vi
durante algum tempo, seguindo-me com os seus olhos vermelhos e tristes. Quando
o carro começou a ocultar-se ao dobrar a primeira esquina, eu vi o braço dessa
criança erguer-se para agitar um lenço na direção que eu levava.
"Confesso-te
que, nesse momento, tive ímpetos de retroceder, mas lembrei-me do meu
compromisso relativo à escritura e deixei-me conduzir à cidade, prometendo a
mim mesmo regressar o mais cedo possível.
"Na
cidade, encontrei um bilhete do dono da propriedade cuja compra eu ajustara,
desculpando-se de faltar ao rendez-vous que me havia marcado e pedindo-me que
voltasse ao Engenho Novo para entender-me com ele sobre assunto de interesse
comum.
"Fui, e
depois de resolvida com o proprietário uma pequena dificuldade relativa a uma
hipoteca que pesava sobre o imóvel, assentamos de novo que a escritura seria
passada no dia imediato, sem falta. Na volta, muito satisfeito com a solução
desse negócio, fui jantar ao Clube, resolvido a partir imediatamente depois
para casa, a fim de conduzir a Palmira ao teatro. Mas, no Clube jogava-se, e da
sala do jantar eu ouvia o ruído das fichas e a vozeria dos pontos em torno da
mesa da roleta, em uma sala próxima. De estômago cheio, bem disposto e
satisfeito, depois do jantar, quis arriscar uma centena de mil-réis e dirigi-me
à sala do jogo. Quando entrei, um dos pontos, o Boaventura, aquele Boaventura
das suíças vermelhas e do dedo torto, disse-me: Em quarenta e quatro bolas,
dadas até agora, já saíram todos os números, menos o 9. Essa revelação deu-me um
palpite: jogar no 9 obstinada e exclusivamente. E comecei a jogar nesse número,
onde, para principiar, apostei três fichas de 1$. Não veio o 9, e na segunda
parada eu arriscava seis fichas, depois nove, depois doze, continuando assim
até 100$, que era o máximo permitido. Durante uma meia hora mantive-me nesse
jogo, mas depois, já dominado pela febre, querendo readquirir o perdido e ter
lucro, comecei a fazer jogo largo, e em cada parada arriscava o máximo. Na
minha frente, um rapaz de dezoito anos, ainda imberbe, louro, de olhar
brilhante, amontoava uns sobre outros cartões do valor de 50$ e tinha um grande
lucro, calculado pelos pontos em cerca de doze contos, adquirido com uma
entrada de 20$ apenas. Pela originalidade do seu jogo, que consistia em apostar
exclusivamente nos zeros e nas cores, esse ponto feliz era o alvo das atenções
de toda a sala, principalmente do banqueiro, que não perdia de vista a montanha
de cartões de 50$, que ele acumulava na sua frente e sobre a qual pousava a sua
mão alva e trêmula. Na sala, completamente cheia, fazia um calor abrasador e a
atmosfera, carregada do fumo do tabaco e das emanações da carne, abafava e
entorpecia os sentidos. De vez em quando, um criado do Clube percorria a sala
oferecendo refresco e charutos aos pontos. Ouvia-se um vozear contínuo,
exclamações de prazer ou de decepção dos jogadores, à mistura com o ruído das
fichas e com a voz do banqueiro anunciando os números e fazendo os pagamentos.
Às onze horas da noite, consultei a carteira: dos três contos de Palmira só
possuía quatrocentos mil réis!... O 9 tinha engolido o resto e até esse momento
a bola havia girado setenta e seis vezes sem cair nele!...
"O que
me restava em dinheiro dava apenas para quatro paradas, se eu persistisse em
jogar o máximo.
"Ora,
evidentemente, as probabilidades a favor do 9 aumentavam, e por isso arrisquei
ainda e continuei a apontar nesse número.
"Na
última parada, quando nada mais tinha do que cem mil-réis que eu, com mão
convulsa, depositei no centro do quadrado em que estava o 9, o banqueiro
anunciou o 2. Levantei-me então. O rapaz que jogava na minha frente e que já
estava na deveine disse-me: Uma vez que o senhor abandona o 9, vou agora jogar
nele. E fez a mesma parada que eu fizera até esse momento. Conservei-me ainda
na sala para assistir a essa jogada e, por uma ironia da sorte, a bola caiu no
9. Saí desalentado, e para castigar o corpo fui para casa a pé, pensando na
pobre órfã confiada aos meus cuidados, cuja herança eu acabara de dissipar
estupidamente. Que dia e que noite tristes deveria ter passado essa criança,
isolada, reclusa no meio de uma casa silenciosa, sem distrações, inteiramente
entregue à sua dor!... Este pensamento afligiu-me. Quando entrei em casa, o
criado comunicou-me que a Palmira estava doente. Cheio de remorsos, fui vê-la.
Estava deitada na sua pequena cama de mogno e ardia em febre. Um médico, que
mandei chamar a toda a pressa, diagnosticou a varíola. Torturado pelo remorso e
atormentado por pressentimentos maus, passei o resto da noite ao lado dessa infeliz,
que delirava chamando repetidas vezes pela mãe. No dia seguinte, o diagnóstico
confirmava-se: a varíola aparecia. Durante uma semana conservei-me à cabeceira
da doente, servindo-lhe de enfermeiro e disputando-a à morte. Mas, de nada
serviram a minha dedicação e os cuidados do médico, porque, ao cabo desses sete
dias, a desventurada Palmira exalava o último suspiro, horrivelmente
desfigurada e chamando sempre, até o último momento, pela mãe, que ela via nos
seus delírios e que certamente também chamava por ela lá do humilde jazigo,
onde dormia o eterno sono. Nessa mesma tarde cumpri a piedosa missão de
depositar a filha ao lado da mãe no cemitério de S. João Batista da Lagoa e,
quatro meses depois, sobre a terra que guarda os ossos dessas duas infelizes,
fiz erguer um mausoléu modesto, mas elegante em três contos de réis.
E como o
Silveira cessasse de falar e ficasse com os lábios um pouco trêmulos e os olhos
mais brilhantes do que o costume, parecendo ter dado fim à narração, disse-lhe:
- É na
realidade comovente a história que acabas de contar-me; mas o que tem tudo isso
com estes charutos?
- Ah! sim,
tens razão. É que na manhã seguinte à noite em que perdi a herança da Palmira,
encontrei no mesmo bolso em que guardara o dinheiro, em vez dos três contos de
réis, esses três charutos que me foram oferecidos pelo criado do Clube durante
o jogo e que eu maquinalmente aceitei e guardei. E, como os charutos estavam
ali substituindo a quantia perdida, rotulei-os com esse dístico que aí vês e no
dia em que levei a pobre criança ao cemitério, sobre a sua sepultura jurei que
nunca mais tornaria a jogar. Nunca mais joguei, de fato, a não ser o xadrez
como exercício mental e, para recordar-me sempre do triste episódio que te
acabo de narrar, conservei esses três charutos, que efetivamente me custaram um
conto de réis cada um. São um tanto caros, não achas?
- Pelo
contrário, acho-os baratíssimos. Quantos contos de réis terias tu perdido na
roleta, de então para cá, se estes três charutos te não tivessem custado a
herança da Palmira?...
O Silveira
fez um sinal de assentimento e, tomando silenciosamente os charutos, beijou-os
e meteu-os na gaveta da sua secretaria, que só então fechou à chave.
Meia hora
depois, à sombra convidativa da frondosa mangueira do seu jardim minúsculo, e
em frente a um tabuleiro de xadrez, meditávamos no xeque-mate que devíamos dar
um no outro, enquanto as cigarras chiavam alegremente abençoando essa alma boa
de solteirão solitário.
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Nota:
Garcia Redondo: "A Choupana de Rosas" (1897)
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Nota:
Garcia Redondo: "A Choupana de Rosas" (1897)
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