COUSAS DO TEMPO
Para
entender a linguagem coloquial da nossa gente moça, será em breve preciso
ter-se à mão um vocabulário de folhas volantes que acompanhe as aceleradas
inovações idiomáticas. Quanto a mim, fico em branco ouvindo expressões que
andam correntes e sem dúvida traduzem idéias. Registro algumas que me estão
lembrando: à beça, baita, batuta, pra burro, é um suco; e há muitas outras que
tais.
Constitui
esse vocabulário uma geringonça; mas, ou eu me engano, ou são as geringonças
peculiares a ajuntamentos quotidianos e restritos, como as escolas e quartéis,
ou à gente popular unida em identidade de profissão ou de vício. Creio também
que à linguagem popular não é difícil descobrir-se uma origem na metáfora, na
freqüência dos seus utensílios, ou na corrupção da ignorância. Tem ela ainda um
certo pitoresco, que resulta da própria transparência ou jeito do vocábulo, ou
porventura do uso limitado a um grupo.
Mas ao
idioma novo a que me refiro, desde que é geral aos moços de toda procedência,
não quadra a razão de ser das geringonças. Os salões que eles freqüentam
assiduamente deviam ser um meio neutralizador ou anulador de hábitos e cacoetes
adquiridos onde a graça se contenta de ser chulice e a comunicação de idéias se
satisfaz com esgares de palavra.
A casaca e o
peitilho engomado obrigam ao aprumo do tronco e ao gesto comedido; e até o
corpo que não tenha natural elegância, aparenta-a sem o pensar. Também ali a
voz não ultrapassa o diapasão de surdina; alinha-se a palavra em harmonia com o
timbre e as atitudes; tem compostura, afeiçoa-se à delicadeza da presença
feminina, e enforma espontaneamente em galanteio.
Ora, a
geringonça dos moços de hoje não é só deles entre si, senão deles para elas e
delas para eles. Mais os entendem elas do que eu, que sou velho, ou o homem do
povo, que tenha a rudeza da vida simples. Mas o popular freqüentador da Avenida
e dos teatros e cinemas, esse conhece também e pratica a geringonça das moças.
Apagou-se a
linha divisória do gesto, da linguagem e até dos hábitos de salão, como já não
há diferença entre o salão e o bonde.
O decote era
a concessão convencional que o pudor fazia à elegância seleta do baile ou
consentia à discrição de um camarote em espetáculo de gala; mas exigia a sombra
de um carro e o abrigo de uma pelica; agora desce pedestremente à rua, e toma o
bonde, e senta-se entre gente grosseira e estranha, e deixa-se ver sem
convenção e medida pelos olhos da multidão.
As pernas
também já não se escondem, e esqueceram que a graça e a magia do seu encanto
provinham de andarem ocultas. Bastava à imaginação a possibilidade de
descobri-las, e o principal era adivinhar, ou surpreendê-las a furto, ao acaso
de um movimento, e que não as vissem muitos olhos a um tempo ou não mostrasse a
dona gostar de mostrá-las. No gesto apressado de reescondê-las e no rubor
súbito acendido nas faces da dona estava a delícia da visão misteriosa e breve.
Musset não achara poesia nas pernas da sua andaluza, se elas fossem espetáculo
quotidiano, em vez do imprevisto e da surpresa. Mas a andaluza de Musset usava
espartilho, e ao tempo dele as casacas não usavam em público outro ritmo de
movimento que o giro de adejo.
Agora a música dos bailes não tem o compasso
de ondulação suave: chocalha; não deslizam os pés: sapateiam; não se alinham os
corpos em par que revoa, apenas unidos pelo toque leve dos braços: agarram-se,
aferram-se; nem o movimento é composto pela atitude da beleza: os troncos
dobram-se, chocam-se, sacodem-se e pulam, desconjuntam-se e descambam, ou só
remexem, jungidos, em quebros de melopéia ou batuques de cateretê, durante os
quais não raro, para maior efeito, há uma pausa na música e um grito do batuta:
Maricota, sai da chuva! ou estribilho equivalente. E o saracoteio recomeça mais
vivo, num gingo-gingo estonteado e suado de samba.
Não estará aí
a explicação daquela geringonça que eu não entendo? Baita, batuta, à beça, pra
burro são flores de jardim moderno, em que se alternam ou confundem as couves e
salsas com os cravos e as rosas. Eu não desdenho as hortaliças, antes gosto
muito delas, mas o meu sentido estético não as quer senão em horta ou já
temperadas no prato de refeição. Repugna-me ver em lapela uma folha de alface,
nem suponho que ninguém aceite para um jarro de salão um ramo de violetas
entremeadas de cebolinha. Tal a impressão que recebo dessa geringonça em lábios
de fina gente moça.
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Nota:
Mário de Alencar: "Contos e Impressões" (1920)
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Nota:
Mário de Alencar: "Contos e Impressões" (1920)
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