
O INVENTOR
Era pequerruchinho, ainda
engatinhava, e já queria ser marinheiro. A sua minúscula bacia de três palmos onde, em três
litros de água, a mãe lhe mergulhava
todos os dias o corpinho rechonchudo e tenro de magnólia carnuda toda aberta, já era para ele o mar, o
mar imenso, a extensão infinita com
todas as suas maravilhas, as suas vagas enormes, os seus embustes, as suas traições. Com as mãos pequeninas de
deditos escancarados como os raios de
uma estrela, audacioso e aventureiro, fazia as ondas maiores, desencadeava tempestades. Com os olhitos arregalados
debruçava-se no abismo, contemplava
extático as misteriosas profundidades, a água a tremer em ziguezagues irisados e o cobre da bacia a
faiscar no fundo, amarelo como ouro. De
vez em quando fazia naufrágio: pernas ao ar num pânico indescritível, berrava como um possesso, todo inundado, a sua
bela valentia por água abaixo,
procurando as saias da mãe para se agarrar como um náufrago a valer à mais pequenina tábua de salvação.
Cresceu, e com ele a sua grande
mania de patinhar. A mãe costumava dizer, meio a rir meio zangada, que tinha raça de
pato. De manhã, depois de almoço, saía
de casa muito lavado, muito limpo, o bibe de quadrados azuis e brancos irrepreensivelmente passado a ferro, o cabelo
numa risca muito direita, as botas de
cordovão muito amarelinhas, para ir falar à avó, a uma avó que nunca conseguia pôr-lhe em cima os olhos cansados,
ainda escuros e úmidos como duas amoras
dos campos. O tanque da horta dos Senhores Ramalhos ficava a dois passos, no caminho da casa da avó. Que
tentação! E se ele fizesse como o Petit
Chaperon Rouge?... E se ele fosse ver a água?... Vê-la só... mais nada! Não queria rasgar o bibe, nem desmanchar a
risca do penteado, nem sujar as botas, é claro! Nem por sombras! Mas por ir ver
a água... só vê-la!, não era caso para
que, num segundo, lhe desabassem em cima todas aquelas catástrofes. Era evidente! Claríssimo... como
a própria água do tanque da horta dos
Senhores Ramalhos... A consciência, esse rabugento desmancha-prazeres, ia
falando cada vez mais baixo, as rugas da testa, cavadas no esforço da concentração, alisavam-se, os doces olhos
garços enchiam-se-lhe já do infinito
prazer, da alegria triunfal e sã de se mirarem num grande espelho movediço e claro. Vencia a tentação; nem as
tentações se fizeram para outra coisa...
O tanque, ao longe, no meio dos salgueiros, parecia de prata; cheirava a fresco. O peito dilatava-se-lhe de
satisfação. Deitava-se ao comprido sobre o rebordo de pedras, reclinava a
cabecita morena sobre o braço estendido; a mão, pendida, num gesto quase
sensual, afagava a água, que se abria tépida e a envolvia de doçura. E se ele
descalçasse as botas e arregaçasse os calções? Poderia meter-se lá dentro; a
água não lhe chegava com certeza aos joelhos... As pestanas batiam frementes
como que para velar o fulgor de duas pupilas cobiçosas, a mão mergulhava mais
fundo na água clara... Ai! Lá molhara a manga! E se ele despisse o bibe e a
blusa?... Era melhor: não correria o sério risco de se tornar a molhar. A tentação pôs
novamente o manto furta-cores da prudência,
e a consciência, enganada, aprovou a sofismática verdade. Num relâmpago, como quem tem medo de refletir ou
de se enganar, ei-lo que despe a blusa e
o bibe. Fica um instante pensativo: o trabalho que tem para arregaçar os calções é o mesmo que para os tirar de vez
e, num ar de grande decisão, resolve-se
pelo remédio mais radical: despe-se todo. As botas são desapertadas num ai. De tentação em tentação, de fraqueza
em fraqueza, os compromissos de
consciência levam um homem honrado à prática de todos os crimes... Ei-lo completamente nu. O corpito moreno e magro de
garoto azougado brilha ao sol, que,
atravessando os ramos verdes dos salgueiros em volta, o vai acariciar de fugida. A água fulge chapeada de claridade.
de um salto, atira-se à água. Os olhos
fecham-se-lhe de voluptuosidade. Flá na curva das fartas pestanas escuras descidas sobre os olhos qualquer coisa
da sensualidade de um corpo que mãos
suaves de mulher acariciassem... A água faz um gluglu indolente e melodioso e vai espraiar-se em pequeninas
vagas no rebordo de pedra. Um melro,
quase azul à força de ser negro, espreita malicioso o camarada, por entre os ramos dos salgueiros, de um verde
mais intenso, mais cru na tarde que sobe
resplandecente. E o pequeno nada, chapinha, mergulha, estira-se, patinha como um deus das águas, ébrio de vida
moça e livre, sob a carícia do sol, que
lhe morde a carne morena coberta de pequeninas gotas irisadas.
As horas passam, correm velozes
como gamos perseguidos. A tarde avança, o Sol declina no horizonte; corre uma brisa mais
fresca à superfície da água encrespada;
os salgueiros inclinam-se mais, presos da singular melancolia que as coisas tomam ao sentir os furtivos passos
da noite... O garoto acorda do seu
êxtase. O meu Deus! A primeira impressão é desagradável: é uma impressão de frio, de angústia, de remorso,
que lhe aperta a alma de passarinho.
Depressa: um salto para o rebordo de pedra. Enfia os calções num segundo, veste a blusa ao contrário, os botões
do bibe, mal seguros, saltam-lhe todos
sob os movimentos convulsivos das mãos. As meias, das avessas. Agora as botas... os atacadores: três voltas em
redor da perna e pronto! Não há tempo
para apuros! Meu Deus! É quase noite! Debruça-se na água: o cabelo, encharcado, cai-lhe em melenas sobre a testa.
Parece um ladrão! Que irá dizer a mãe? E
a avó, coitadinha?! Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, sobem-lhe soluços à garganta, mas, como é valente e já
sabe, tão pequeno ainda, tomar corajosamente
a responsabilidade dos seus atos, enxuga à pressa as lágrimas à ponta do bibe molhado, engole os soluços, e,
assobiando uma música de que é laureado
compositor, mãos nos bolsos, cabeleira ao vento, toma galhardamente o caminho de casa.
A mãe recebe mal o pequenino
fauno; depois de um ríspido sermão que ele não entende, despe-o de repelão, dá-lhe de
cear, e mete-o na cama sem o doce beijo
das boas-noites. A alma de passarinho faz-se ainda mais pequenina, a boquita amuada alonga-se num beicinho triste,
volta-se para a parede numa grande
renúncia de todas as coisas boas deste mundo, e fica-se a dormir como um bem-aventurado.
De noite, porém, não tem sossego.
Sonha com o tanque; põe a cama numa desordem
indescritível, toda a roupa num alvoroço; os braços e as pernas são uma dobadoura. A mãe, que se levanta a
cobri-lo uma dúzia de vezes, não pode
deixar de sorrir ao vê-lo nadar, muito aplicado, com uma expressão de grande seriedade, sobre o travesseiro, com a
camisa de noite arregaçada até ao pescoço.
Na escola, mais tarde, é um
tormento para lhe captarem a atenção, toda virada para o exterior, incapaz do menor esforço de
concentração; não está um momento
quieto, todo ele é movimento e vida. Das folhas arrancadas aos cadernos de
contas e aos livros, faz espetaculosos chapéus armados de almirante, constrói frotas poderosíssimas, que
põe a navegar no mar largo de uma grande
barrica, onde a professora guarda a sua provisão de água com que, ao cair da ardente tarde alentejana, mata a
sede às violetas e aos lírios do seu pequeno
jardim de padre-cura.
Adormece, abraçado a um barco de
cortiça e velas de pano-cru, que o pai lhe deu num dia de anos. Os presentes de
Artaxerxes fá-lo-iam sorrir de desdém perante
a dádiva principesca.
Já homenzinho, nas longas noites
de Inverno, acocorado à chaminé onde o madeiro
crepita, lê embevecido, horas a fio, todo o Júlio Verne, histórias de piratas e corsários; o navio-fantasma
enfeitiça-o; os naufrágios heroicos entusiasmam-no;
foi durante anos todos os capitães de navios naufragados, morrendo no seu posto, aos vivas a Portugal!
No liceu sonha com a Escola
Naval: é uma ideia fixa. Põe a um gato abandonado,
repelente, todo pelado, encontrado numa suja travessa das imediações do liceu, o nome de Marujo-, a uma
galinha, a quem endireitara uma perna
quebrada, ficou-lhe chamando Canhoneira; o cão, seu companheiro de folias, chamava-se Almirante.
No dia em que pela primeira vez
envergou a linda farda da Escola, quando o estreito galão de aspirante lhe atravessou a
manga do dólman azul-escuro, foi como se
S. Pedro abrisse diante dele, de par em par, as bem-aventuradas portas do paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a
outra gente o que é ser marinheiro! Para
ele, ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a vida mais ampla, mais livre, mais sã,
mais alta que nenhuma outra neste mundo!
O seu forte coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcaboiço de marujo, como um pequeno jaguar saltando do
fundo da jaula, estreita e lôbrega,
contra as barras de ferro que o retêm afastado da selva rumorosa.
Ao pôr pela primeira vez o pé num
navio, lembrou-se do tanque da sua infância
e sorriu; o mesmo clarão de dantes, de fascinação e de triunfal alegria, iluminou-lhe os olhos garços; as pálpebras
tiveram o mesmo estremecimento de
voluptuosidade e cobiça. O rio sempre era maior que o tanque de outrora...
Quando viu fugir Lisboa, afogada
nas sombras violetas do crepúsculo, e se lhe deparou todo o mar na sua frente, a sua alma
audaciosa, rubra do sangue a escachoar
dos seus irrequietos vinte anos, tomou posse do mundo num olhar de desafio!
Quando voltou, porém, meses
depois, vinha desiludido, furioso contra o seu sonho, que se tinha ido quebrar, como todos os
sonhos, insulso e embusteiro, de
encontro à banalidade ambiente. Aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima maçada! O mar, todo igual,
monótono embalador de indolências. Não
havia corsários nem piratas; o navio-fantasma era um fantasma dos seus sonhos de outrora. O mar era
muito mais lindo nos livros e nos
quadros. Os poetas e os artistas tinham-no feito maior do que ele era; afinal, era pequenino como o tanque, acabava
ali perto... Não tinha sido preciso
arriscar nem uma só parcela de vida; não havia no seu navio mulheres e crianças a salvar; não havia naufrágios
heroicos; o capitão nem uma só vez teve
ocasião de ir ao fundo, no seu posto, aos vivas a Portugal! E sorria com uma grande ironia nos olhos claros de expressivo
olhar de lutador.
Renegou o seu culto sem pesar nem
remorsos, com a mais completa das indiferenças,
e, de um dia para o outro, o mar que tinha sido a grande quimera da sua ardente imaginação de meridional, que
tinha sido a sua noiva, a sua amante nos
dias felizes da adolescência, foi atirado para o lado, no gesto negligente de um bebê que atira pela janela
fora uma concha vazia.
«Aquilo afinal era uma maçada,
uma tremendíssima maçada», e os olhos claros,
investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram ardentemente outra coisa. Franziu
os sobrolhos no ar recolhido e concentrado
de quem excogita, de quem procura uma solução difícil... Olhou o céu profundo... e achou! Um avião! Era
aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser
marinheiro! É abraçar no mesmo abraço o céu e o mar! Na linguagem dos símbolos, a âncora, definindo a esperança,
nunca poderá valer às asas que são a
libertação. A âncora agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram o céu como um desejo de
homem a carne palpitante de uma virgem que possui. Seria
aviador! E foi.
Quando pela primeira vez voou,
não se esqueceu de sentar na carlinga, ao seu lado, ao lado do seu coração, aquela que dali
em diante seria a companheira de todos
os dias, a companheira indefetível de todos os aviadores: a Morte.
Mas um dia começou a pensar que
aquilo assim não tinha jeito: queria ver o céu coalhado de asas como o mar de velas,
queria ver asas por toda a parte. O homem
podia lá estar à mercê dos espasmos da Natureza, dos seus caprichos, dos vendavais, dos nevoeiros, das manias de um
motor?! Podia lá ser! Revoltado, franze
a testa, encrespa as sobrancelhas, reflete, pesa os prós e os contras, resolve-se... e lá vai ele à
conquista da sua nova quimera, do seu novo velo de ouro!
Havia de inventar um motor
perfeito, sem caprichos nem manias; das suas mãos sairia resolvido o árduo problema. Não
teria sossego nem descanso enquanto não
conseguisse animar com o poder da sua inteligência e da sua vontade a inércia do ferro e do aço, enquanto
não desse forma palpável ao seu novo
sonho, ao seu poderoso sonho de orgulho, do trágico orgulho humano que desencadeia as avalanchas e arremessa
sobre as cabeças erguidas os maus destinos
à espreita.
Trabalhou dia e noite. Fugiu dos
camaradas, do bulício do mundo e das suas tentações. Como um trapista na sua cela,
encerrou-se no seu grande desejo, e teimou,
teimou, sem um desfalecimento, sem uma quebra de vontade, da sua vontade que ele tinha erguido até ao máximo,
que ele tinha educado até pedir- lhe tudo, até agrilhoá-la de pés e mãos,
chicoteada e vencida, à sua grande ideia,
ideia que era o seu máximo estímulo: difícil, está feito; impossível, far-se-á.
Às vezes caía exausto, com a
cabeça pendida sobre a secretária onde passara a noite a alinhar cifras, a enegrecer de
algarismos folhas e folhas de papel. Passou
um ano, um imenso rosário de horas, brancas e negras: horas de entusiasmo, horas claras que tudo iluminavam
em volta — em que tudo parecia fácil,
luminoso e claro; horas de desilusão, de fadiga, donde saía mais firme na sua resolução, as rugas da testa mais
cavadas, o olhar mais profundo, mais
cheio da ideia fecunda que o trabalhava.
Um dia, julgou ter achado! Oh,
aquele dia! A embriaguez do homem que se igualou a Deus! O coração a bater, a bater, a
sentir-se grande de mais para um peito
tão pequeno, para um tão mesquinho destino! A humidade das lágrimas a embaciar o olhar gigante que se esquecera um
momento de ter nascido pigmeu! O artista,
o poeta, o inventor de novos símbolos, de novas formas, o criador de movimento e de vida, todos os que
desbravam caminhos, os que talham,
abrem, por entre os matagais selvagens e os campos estéreis da ignorância e da banalidade, as belas estradas
largas do pensamento e das ideias, esses
que me compreendam e que o compreendam! As palavras são o muro de pedra e cal a fechar o horizonte
infinito das grandes ideias claras.
Nunca fora tão feliz nem se
sentira tão desgraçado! Os dias que se seguiram foram um tormento delicioso, um inquieto
inebriamento que o trazia como que
pairando acima das realidades terrestres. A montagem das peças, as experiências, todo o gozo paradisíaco dos seus
sonhos realizados, arrastavam-no para além da vida, para além do mundo
sensível, numa esfera de quase loucura,
de múltiplas sensações inverossímeis, de emoções profundíssimas e raras. Manejava as peças uma por uma, em
gestos de uma infinita suavidade, com um
olhar, com um sorriso de ternura, que faria ciúmes a uma amante.
A tarde da definitiva
experiência, experiência que dera a certeza dos mais belos resultados, passou-a ele numa febre de
orgulho, em cálculos de ambição, de
glória e de riqueza, como um monarca doutros tempos contando o ouro e as pedrarias que as caravelas lhe traziam das
misteriosas índias longínquas.
À noite, depois dessa tarde
memorável, depois do motor desmontado, dos preciosos papéis fechados num envelope
lacrado, depois da carta escrita ao diretor
da Aviação, a quem pedia nomeasse uma comissão para avaliar os resultados práticos do novo motor que tinha
inventado, com a cabeça a escaldar, o
pulso como um cavalo a galope, febril, ansioso, resolveu sair, dar um passeio sozinho, procurando como um
calmante a fresca aragem da noite, que descia
sobre a cidade frenética como um monge sereno e plácido, de negro capuz, a murmurar orações confusas.
No seu passeio, procurou
instintivamente as ruas escuras, as ruas solitárias; depois de dezenas de voltas e reviravoltas,
sem saber como, foi dar consigo à beira
do Tejo. Um degrau de pedra formando um esplêndido banco, ali próximo; esta aparição foi providencial à sua
fadiga: sentou-se. Olhou o rio que
faiscava à claridade da pálida Lua de Agosto.
As grandes carcaças dos navios
imóveis manchavam o rio de esguias sombras escuras. Pensativo, apoiou a cabeça nas mãos,
os cotovelos nos joelhos... E uma grande
paz desceu subitamente sobre ele, vinda da noite, da escuridão, talvez do seu humilde destino de homem;
entrou-lhe no coração cansado como uma
branda lufada de ar puro num quarto abafado de doente. Realizara os seus sonhos, todos os seus sonhos! Que
havia mais agora?... Já os homens podiam
sulcar os ares sem medo aos vendavais, às cóleras brutais da Natureza; já o céu se podia coalhar de asas como o mar
de velas. Todo o homem poderia ter, sem
perigo e sem riscos, a cobiçada sensação de comandar nos elementos como um semideus. À ideia de toda a
gente andar lá por cima com a
tranquilidade de quem rola de elétrico, o seu sorriso de gavroche(*) doutros tempos, deu-lhe ao rosto a maliciosa e amarga
expressão de quem ousa tocar num
mistério sagrado e pueril.
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[(*) Gavroche – personagem do
livro de Vítor Hugo “Os Miseráveis”, era uma rapazinho órfão que liderava e tomava conta dos rapazes órfãos e
pobres de Paris.]
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Sem riscos?... Sem perigos?... A
ideia que a princípio o fizera sorrir, trouxe-lhe agora à mente um mundo de coisas em que nunca
pensara. Sem riscos?... Sem perigos?...
Pôs-se em pé de um salto. A frase, assim, nua e crua, revoltava-o. Num relance, abrangeu todo o alcance da sua
obra, do seu esforço titânico, de tudo
quanto tinha realizado. Ah, não! Isso não! Mas era uma cobardia, afinal, o que ele tinha feito, o que ele alcançara
depois de dias e noites de um trabalho
de gigante. O seu grande invento, donde tirara toda a sua soberba, onde filiara todos os seus cálculos de ambição
e de glória, não passava, afinal, de uma
má, de uma feia ação, de uma cobardia! Um aviador, um cavaleiro sans
peur et sans reproche, que toma posse do céu, que abre as asas gloriosas sem riscos, sem perigos, como um simples
burguês que rola de elétrico cá por baixo?!
Um aviador que não brinca, sorrindo, com o seu mau destino; que não vence com um piparote as horas más, as tirânicas
forças da Natureza sempre em luta,
terrível descobridora de desalentos; um aviador que não é senhor do céu, da terra e do mar, à força; que a não
dobra como a cabeça vencida de uma
amante rebelde entre os seus braços de aço; um aviador sem mascote, sem audácia, sem panache — é lá um aviador!...
Não passa de um soldado que deserta às
primeiras balas!... Um aviador sem a sua companheira vestida de negro, toucada de luto ao seu lado, ao lado do
seu peito, na carlinga?! A Morte!...
A esta ideia, um brando sorriso
encheu-lhe novamente o rosto de claridade. Não! ele não a amava... ele não amava a Morte,
não!... mas era-lhe indispensável e doce
como o mal da saudade, era-lhe precisa ali, ao seu lado, a lutar com ele, enrolando sem descanso o fio da
sua vida moça e ébria de audácia entre
os seus dedos sem piedade. Era-lhe indispensável, precisava de lhe sentir o hálito gelado, de a sentir
debruçada sobre o seu ombro, a arrastá-lo para longínquos e ignotos países de
aventura, onde seria bom, talvez, aportar
um dia, nervos cansados, cabeça esvaída, braços pendentes na suprema paz dos supremos abandonos...
Dominado por uma invencível
obsessão, de novo febril, ansioso, atravessou à pressa as ruas escuras, as ruas solitárias,
caminho de casa. Galgou as escadas a quatro
e quatro, empurrou a porta de repelão, entrou no quarto, deu volta ao comutador, e o seu olhar foi cair
imediatamente, instintivamente, sobre o grande
envelope branco lacrado a vermelho vivo.
Abriu a janela de par em par
sobre o bulício da rua, e então, serenamente, distraidamente, num ar de quem pensa noutra
coisa, foi-se entretendo a lançar o
vento, como quem atira pétalas murchas, os pedaços rasgados dos preciosos papéis que horas antes lá encerrara
e que representavam o melhor do seu
esforço, o fruto abençoado das suas febres, o triunfo das noites de vigília, as asas do seu sonho feérico, da sua
doirada quimera perseguida e vencida!
Foi depois às peças do motor,
meteu-as dentro de uma mala. Dar-lhes-ia destino ao outro dia; o fundo do mar,
talvez...
Feito isto, como um justiceiro em
paz com a sua consciência, deitou-se, e dormiu
descansado como havia muitas noites não dormia.
No dia seguinte de manhã, quando
o avião sulcou de novo os ares como uma grande
gaivota pairando sobre o rio, o aviador olhou para o lado, ao lado do seu peito, na carlinga, e sorriu à companheira
invisível que não quisera expulsar.
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Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)
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