
O RESTO É PERFUME
— Nesta época dolorosa da minha
vida — prosseguiu a minha amiga —, sabe
você aonde vou buscar o mais benéfico consolo, o analgésico mais seguro contra estas crises que me assaltam de
vez em quando, de repente, no meio de
uma frase, de um riso, crises que me fazem lembrar um cobarde assalto, pelas costas, numa praça iluminada e
cheia de gente?
A minha amiga, no terraço da sua
linda casa, uma romântica casa, meio cottage,
meio palacete, que dava para o mar, formulava-me esta estranha pergunta à queima-roupa, naquele ar de
maliciosa seriedade que lhe era habitual
e que lhe dava um tão estranho encanto.
Estávamos sós, naquela quente
tarde de Agosto, face ao mar, abrigados do vento, que naquele pedaço de costa é quase
constante, pelo toldo às riscas vermelhas
e brancas que nos separavam do resto do mundo, comodamente estendidos em cômodas cadeiras de vime; à mão,
em cima de uma elegante mesinha também
de vime, um grande ramo de sécias, desgrenhadas e finas como crisântemos, o Bouddha Vivant de Mor and com a faca de marfim marcando a página interrompida, e a mancha
verde, gritante, de um novelo de lã: o
seu trabalho, o seu inseparável trabalho de crochet.
Bastas vezes me tinha dado que pensar
aquele seu eterno crochet, os velhos
dedos sempre agitados numa lida
incessante. Verão e Inverno, os seus íntimos não se lembravam de a ver um instante imóvel, estendida na sua
cadeira, posição que, à primeira vista, pareceria
calhar como uma luva àquela estranha e dolorosa imaginativa. Quem sabe? Talvez aquela incessante agitação dos
dedos, que ela tinha brancos e delgados,
de miudinhas unhas de bebé, lhe ajudasse a compor melhor as complicadas sinfonias das suas meditações,
onde havia de tudo em afinado desconcerto,
se a frase pode arriscar-se... — gritos de revolta, dulcíssimos gemidos, grotescas gargalhadas de escárnio.
Amodorrado pelo calor, e por esta
indolência, por este desprendimento cheio de beatitude, por esta incapacidade de esforço
intelectual ou físico que nos ataca às
primeiras horas da tarde e depois de uma boa refeição, olhei para ela sem responder.
— Às palavras de um doido —
rematou ela, simplesmente.
Desconcertante e bizarra, com ela
nunca a gente sabia aonde iria parar; as suas premissas chegavam sempre a conclusões
fantásticas; através dos seus argumentos,
os fatos chegavam-nos irreconhecíveis, tomavam as atitudes mais ambíguas, nas contorções do seu espírito
escarnecedor e singular. Nela, parecia
andar um Mark Twain de braço dado com um Edgar Poe.
Todos nós, que aqui estamos,
conhecemos mulheres que em épocas dolorosas da sua vida procuraram um consolo, um
analgésico, como ela dizia, na religião,
esse maravilhoso unguento que faz sarar todas as chagas, no cumprimento do dever, o mais rígido, no amor,
no sacrifício mesmo pelos seus ou pelos
estranhos, na prática da caridade, na arte; mas uma mulher que se agarre, como à única tábua de salvação que
a pode fazer boiar à tona de água, às
palavras de um doido, qual de vocês conhece essa mulher? Pois bem, conheci-a eu, e vou dizer-lhes o que ela me
disse, o que lhe ouvi e que nunca mais
me esqueceu, naquelas primeiras horas de uma quente tarde de Agosto.
Pode ser que a algum de vocês
faça bem... Tudo é possível.
* * *
— Conheci-o numa pequena vila,
nessa linda província alentejana que tão pouca gente conhece, onde toda a paisagem, em
certas horas, toma ares extáticos de
iluminados, onde a alma das coisas parece falar através da imobilidade das formas.
«Era um velho muito alto, muito
limpo, sempre muito bem vestido, com uma grande cabeleira branca ondulada, que ele
tinha o costume de alisar de vez em quando,
com a mão, quando falava. Era de boa família, de origem fidalga, dizia-se. O pai tinha aparecido ali, um belo
dia, vindo não sei donde, e ali tinha morrido
anos depois. Eu não cheguei a conhecê-lo, é claro. Lembro-me vagamente de um pormenor curioso acerca da sua
vida: levantava-se ao escurecer e
deitava-se só às primeiras horas do dia; fazia toda a sua vida de noite. Lia quase constantemente os poetas
gregos e latinos; era muitíssimo culto e
não falava com ninguém. O filho, bizarro como ele, caíra com a idade, a pouco e pouco, numa completa loucura; mas,
muito calmo, muito doce, muito bem
educado, não incomodando ninguém, deixaram-no à vontade, e ninguém o incomodava.
«Eu fiz dele o meu único
confidente, a minha grande afeição; ele era ao mesmo tempo o meu cão. o meu livro, a minha
amiga íntima, o inseparável companheiro
dos meus longos passeios solitários pela planície.
«Caminhávamos horas a fio pelas
estradas fora, calados, a olhar avidamente tudo o que nos cercava. A minha família,
principalmente o meu pai, não se conformava
com semelhante esquisitice, e a princípio lutou desesperadamente contra mais aquele disparate, aquela tola
mania de fazer de um doido o meu maior
amigo; mas, como já estava habituado às bizarrias do meu caráter e como eu, segundo eles diziam, não fazia nada
como a outra gente, acabaram por me
deixar em paz a mim e ao meu amigo doido. Nunca tive outro assim... e hoje, as
suas palavras que eu evoco são, como já lhe disse, o meu mais benéfico consolo, o meu analgésico mais seguro
contra as crises que me assaltam de vez
em quando, no meio de uma frase ou de um riso.
«Parece-me, se fechar os olhos,
que foi ontem a última vez que o vi. As nossas conversas eram sempre um longo monólogo: ele
falava, eu ouvia. Nunca li nos livros
frases mais belas, ideias mais tragicamente consoladoras, de uma maior e mais elevada espiritualidade. A
palavra dele era como a água: gotinha a cair
numa raiz abrasada, regato que vai segredando profecias às ervas do chão, torrente impetuosa que tudo arrasta, que tudo
leva à sua frente.
«A planície estendia-se até aos
confins do horizonte, de cambiantes inverossímeis.
A estrada poeirenta, quase reta. Charnecas bravias, de um e doutro lado. Aqui e ali, a rara mancha escura
de uns torrões lavrados que mais tarde
fariam o grande sacrifício de, mortos à sede, darem pão. Sob a serenidade austera da minha terra alentejana,
lateja uma força hercúlea, força que se
revolve num espasmo, que quer criar e não pode. A tragédia daquele que tem gritos lá dentro e se sente asfixiado
dentro de uma cova lôbrega; a amarga
revolta de anjo caído, de quem tem dentro do peito um mundo e se julga digno, como um deus, de o elevar nos
braços, acima da vida, e não poder e não
ter forças para o erguer sequer! Ah, meu amigo! o gênio que, com o grotesco vocabulário humano, pudesse fazer
vibrar a nossa sensibilidade, estorcer
os nossos nervos de encontro à trágica e mentirosa insensibilidade da minha dura terra alentejana! Nem Fialho, nem
nenhum! Que mar alto de desolação e de
força possante a perder de vista... e o Sol a abrasar tudo, incendiário sublime a deitar fogo a tudo! E
quando a chuva cai!... O misto de inefável
êxtase e de sofredora humildade com que a mísera e amarga erva rasteira recebe a água fresca do céu! Moisés
no monte Sinai, recebendo as palavras
divinas...
«Outras vezes, íamos para o lado
dos olivais, campos tão tristes, tão tristes, que toda a atmosfera parece impregnada de
tristeza; até a luz é triste. Oliveiras salpicadas
de cinza, sobre terras barrentas que parecem empapadas em sangue. Não se vê um vulto humano... não se ouve uma
voz... Tem-se a impressão de se estar
fora do mundo e em comunicação com ele, dentro da vida e fora dela, no estranho e triunfal inebriamento de agitar
perdidamente as asas no espaço e no
profundo desânimo de as sentir presas ainda! A terra é tão triste, tão triste, que a gente até tinha pena de lhe pôr
os pés em cima; nos nossos passos, ao
pisá-la, arrastávamos o remorso e a dor de quem um dia escarneceu um pobre! As nossas mãos esboçavam sem querer
o gesto de a levantar, de a erguer
devagarinho até à altura dos nossos lábios; sentíamos uma profunda e dolorosa vergonha de a adivinharmos humilde e
boa, pobrezinha a dar misericordiosamente
todo o bem que tem, a despojar-se de todas as suas escassas galas de pobre envergonhado,
inesgotavelmente, nas mãos abertas dos
ricos soberbos.
«Muitas vezes, confundíamos os
arrastados crepúsculos de Verão com as claras
noites de lua cheia. Estávamos longe; vínhamos para casa noite fechada. Na charneca, o luar inundava tudo, os
rosmaninhos e os alecrins, as estevas e as
urzes, todas as moitas sequiosas, que o bebiam como água límpida que um cântaro a transbordar entornasse lá do alto.
Às vezes era tão branco, tão imaterial,
de uma tão pura religiosidade, que a planície alagada fazia lembrar uma grande toalha de altar onde tivessem
espalhado hóstias.
«Nos olivais era ainda mais
lindo. O meu amigo doido sorria apaziguado. O luar entrava sorrateiro, em bicos de pés, não
fosse alguém pô-lo lá fora... E as árvores,
as tristes oliveiras de há pouco?!...
Ao passar pelo meio delas, dava
vontade de lhes perguntar: “E os vossos vestidinhos
de burel cinzento? Que lhes fizeram, princesinhas de lenda?... Onde está o teu vestido e o teu negro capuz,
Peau d’Ane? E o teu, Cendrillon?” Todas
vestidas de prata, toucadas de diamantes, recamadas de opalas, turquesas e safiras, calçadas de
brocado, com os pés num tapete tecido a
fios de ouro semeado de rubis, são princesas, filhas de reis, belles au bois dormant à espera do Príncipe Encantado.
«Quando estávamos cansados, ao
cair da tarde, sentávamo-nos no tronco carcomido
de uma oliveira, nas pedras de um muro esboroado ou em qualquer talude de estrada poeirenta. Ele estendia
o braço para o horizonte longínquo que
se diluía nas sombras do crepúsculo, alisava a sua longa cabeleira branca, e começava a falar. Eu, de
mãos no regaço, imóvel, ouvia.
«Uma tarde, em Abril, tínhamo-nos
sentado no muro de uma propriedadezinha à
beira da estrada, perto da minha casa. Lembro-me tão bem! Parece-me ver desenhar-se na minha
frente, no cimo daquelas ondas, sempre
as mesmas e sempre diferentes, o humilde décor: um muro, um lilás todo florido e, a animar a cena, ele e eu.
«Naquele dia esteve sempre muito
agitado, dir-se-ia que a fada Primavera não se tinha esquecido de trazer também para ele o
seu quinhão de seiva a tumultuar que nos
troncos velhos, como nos novos, quer subir e dar flores. Apesar de há muito estar habituada à sua
esquisita maneira de se expressar, não
entendi completamente o sentido das suas palavras, nessa tarde. Por muito tempo, não consegui adivinhar a razão
porque as trazia gravadas no cérebro
como misteriosos símbolos, palavras de encantamento e de magia a que só depois penetrei o sentido. Primeiro,
foi preciso sofrer e chorar. Tinha
de fazer delas, com o correr dos
tempos, o meu estranho viático para as horas dolorosas; tinha de encerrar dentro delas todo
o meu sentido da vida. O que durante
anos inteiros procurara nas páginas dos livros, conseguira extrair de ideias condutoras no estudo das mais variadas
filosofias, o que adivinhara em mim de
misterioso e de grande, tudo o doido, no seu falar incoerente, conseguiu meter dentro daquele dulcíssimo crepúsculo
de Abril.
«O cenário, como vê, nada tinha
de extraordinário: um muro, um lilás em flor, o horizonte a esbater-se nas cinzas abrasadas
do crepúsculo... Vocês, os romancistas,
precisam de muito mais... Pois bem! daquele muro, daquele lilás, com o horizonte, opala a fundir-se num largo
oceano de sombras, por pano de fundo,
fez o meu doido um grande tratado de Filosofia para uso das almas simples e sofredoras; com aquele pouco, compôs
ele os dogmas da minha futura religião.
«“Vês? ” apontava ele para o
horizonte longínquo. “Não, tu não podes ver!, à tua compreensão só pode chegar a percepção dos
objetos que os teus misérrimos sentidos
te apresentam e tal como eles te os apresentam. Lês isso em qualquer cartapácio de Filosofia.
«O bom do Kant passou a vida a
pregá-lo. O que os teus dedos tateiam são as ilusões dos teus olhos e dos teus ouvidos.
Árvores! Que são árvores?... Pedras?
Poeira? Que é isso? É o mundo!... E tu vês o mundo! Os homens criaram o mundo! De uma árvore fizeram uma
floresta, de uma pedra um templo,
deitaram-lhe por cima um pozinho de estrelas, e pronto... fizeram o mundo! E não há árvores, não há pedras e não
há florestas, nem há templos, e as
estrelas não existem. Não há nada, digo-te eu. Tu não sabes nada. Os mortos é que sabem. Os vivos chamam-lhes
sombras. Os vivos metem as sombras
dentro de um caixão, fecham-no à chave, pregam-no bem pregado, soldam-no, afundam-no na terra, muito fundo, e
a sombra lá vai... fica o resto.
São eles que por aí andam, são
eles que tu sentes. Não há árvores, não há pedras, não há nada: há mortos. Os mortos é
que fazem a vida; dentro dos túmulos não
há nada. Eu queria agora dizer-te o que vejo, o que os mortos veem, mas não posso. As palavras não vão além
do que tu vês e ouves; as palavras são
túmulos: estão vazias. Olha”, e apontava as primeiras estrelas que se acendiam na abóbada do céu, “aquilo são
estrelas, dizem os homens... e porque
não há de ser o pó doirado que tombou de uma grande asa de borboleta? Eu queria dizer-te agora o que é a
vida dentro do mundo. Os mortos sabem.
Eu sei. Os mortos pousaram as pontas das suas miríades de dedos sobre os meus olhos, enterraram-nos para
dentro de mim, e mandaram- me ver... eu vi. Aparecem, de séculos a séculos,
vivos que veem. Os homens chamam-lhes
santos, profetas, artistas, iniciadores. Os homens escrevem em léguas e léguas de traços e borrões as suas
histórias... e explicam-nos, comentam-nos,
decifram-nos! Oh, miséria, deixa-me rir!! Joana d’Arc... Pascal... Savonarola... João Huss... Vinci...
Oh, miséria! Tu vives, mas não sabes a
vida. Estes sabiam-na, mesmo com os olhos fechados, mas dentro da vida. Os outros mortos também a sabem. Olha”,
e, arrancando abruptamente um cacho de
lilás, deu-mo a cheirar, “é perfume! A vida é este cacho de lilás... Mais nada... O resto é perfume...”
* * *
— O resto é perfume... — repetiu
lentamente a minha amiga, olhando o mar
que as primeiras velas sulcavam.
E, mãos no regaço, vi-a pela
primeira vez imóvel, esquecida de mim e de tudo.
---
---
Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)
Nenhum comentário:
Postar um comentário