A SORTE
A bruma viera cedo apressando a noite, a noite maior, e
trazendo o frio, o bom frio do S. João. Não havia uma estrela, certamente Jesus as escondera para
que o essênio bravio, que acabou ás mãos
de Menael, no fundo do cárcere de
Machaerous, perto das cavalhariças de Herodes,
onde brilhavam, como de neve, as trezentas éguas brancas da Arábia que Vitélio arrebanhou, maravilhado, não se
aproveitasse de alguma para, com ela,
incendiar o mundo. Não havia uma estrela, em compensação, de instante a instante, alguém
bradava no terreiro anunciando um balão.
Corriam todos contentes, em chalrada
ruidosa, as crianças empurrando os velhos e, na varanda, ao frio, ficavam a olhar o fogo
errante que lá ia oscilando, aos boléus,
em direção ás montanhas. A fogueira alta
ardia no terreiro espalhando um rubro clarão que chegava
ás arvores tingindo-as de sangue e tornando a folhagem rutilante. Por
vezes, ao abater dum tronco encarvoado,
fagulhava um enxame de faíscas alegres
que estralejavam e morriam. As crianças
levantavam alarido saltando e batendo as palmas: «As abelhas de S. João! As abelhas de S. João!»
Súbito, um foguete arrancava e lá subia serpenteando,
explodia: dois, três estouros ou eram bombas que estrondavam. Feixes de cana,
rimas de batatas e de carás esperavam a
um canto, perto de uma aroeira, a hora
do pagode, como dizia tio Chico. Violas e cavaquinhos preludiavam e, lá dentro,
na casa iluminada, era um ir e vir de
gente apressada em torno da mesa florida, onde já os grandes bolos tostados, os cremes, as gelatinas, os
sequilhos empilhados, os alfenins alvíssimos
e as compoteiras desafiavam a gula da
petizada e mesmo dos taludos que
rondavam aquele altar esquecendo o outro, armado numa saleta, entre folhagens, onde S.
João, cercado de círios e de rosas, com
o cajado e o malote ao ombro, seguido do
cordeirinho, estendia a mão como a
abençoar.
As velhas faziam-lhe a corte: volta e meia lá estava uma
espevitando os círios, afastando um galho
pendido ou contemplando, com enlevo, a imagem.
Outras chegavam e, de mãos enclavinhadas, ficavam um instante a olhar, com um movimento tremulo dos lábios. Só a dona da
casa, muito ocupada com a ceia, não se
detinha ante o santo — quase que nem
olhava, tendo-o por uma «divindade
domestica», um intimo com o qual não fazia
cerimônias. As outras que pedissem á vontade, ela não precisava; tinha-o todo o ano em casa
e, quando quisesse alguma coisa, era só abrir o oratório e rezar um terço.
No peitoril duma janela, ao sereno, um copo de água esfriava — alguém ali o deixara, com um
ovo dentro, para ver a sorte á meia
noite. Tiravam-se os primeiros cantos,
logo interrompidos pelas gargalhadas... recordações alegres de outros anos.
« Quá, genti!» e lá iam os tangedores, dobrados sobre os
instrumentos, ponteando com bravura, qual mais ágil, qual mais faceiro, repenicando os
bordões que ressoavam cheios, pondo um arrepio em todas as raparigas. Mas a noite esfriava deveras; uma aragem gelada vinha de fora. Pipocavam
foguetes, crepitava a fogueira; mas era
inverno bravo, os dedos estavam duros.
«Genti, issu assim não vai.»
Tio Chico entendeu as falas e foi logo, pressuroso, buscar
o restilo para animar o povo. «Sim, que encarangados eles não podiam mesmo tocar coisa
que prestasse e a noite estava dura. Ele
próprio, que não era friorento, estava
ali fazendo de forte, só Deus sabia como.»
E lá foi o codório no mesmo copo de vidro grosso, de mão em mão, e era um pigarrear
satisfeito em todo o bando. «Agora pega,
genti! mas pega olim sustância, nada
d'afrouxá. Oia ca genti não sabe si chega pro ano!» « Cruz! Credo!» rebateram o agouro.
Havemos de chegar, porque não? O santo não tá ahi? qui mais! Deixa di fala
ansim. Que a morte tem de vir, todo o mundo
sabe, mas o melhor ó não fala nela. Que venha quando Deus quisé». «E que seja bem tarde!»
disse um dos violeiros e Casimiro, que
era folião, acrescentou com a sua voz
cheia: «Permitia Deus que ela, quando tive di vi pra mim, dê uma topada no
caminho e fique concertando o pé uns bons
par de anos ...» Houve riso e um «Pois sim!» atirado num muxoxo.
Mas uma das violas rompeu e as outras, em concerto, com os trêmulos dos cavaquinhos e os graves
dos violões, deram o sinal da dança.
Uma a uma, graciosamente, foram as moças cedendo aos convites dos rapazes e, em pouco, os pares
revoluteavam e era um sorriso só em
todos os rostos, um só brilho em todos
os olhos e que aroma na sala, de canela
e de lírios, lírios das águas, dos que nascem no meio das lagoas, nos remansos dos rios, tão
brancos, que até dizem que são restos da lua cheia que
ficam nas águas e que vêm á tona, de
noite, pedindo á lua que os recolha. As
velhas, sentadas pelos cantos, enlevavam-se nas graças das filhas e, quem sabe lá se aqueles
sorrisos, que lhes franziam mais os
rostos encarquilhados, não se referiam
ás suas reminiscencias, ao bom tempo d'antanho, quando, novas e lindas como aquelas que ali
dançavam, cingidas, por braços de rapagões, ai! deles, ouvindo-lhes as palavras iam, quase sem sentir o chão,
fazendo voltas airosas e leves como se
os mancebos fortes as levassem ao colo,
carinhosamente, por um sonho fora. Ai! tempo. E as violas zangarreavam alegremente e lá
fora, com a grita das crianças, ia
morrendo a fogueira. E a bruma crescia como o fumo de uma fogueira maior que
ardesse longe, no céu, talvez, para
recreio dos anjos.
— Mas, gente, quê
dê Luzia?!
A esta exclamação lançada, de improviso, no meio da sala que refervia, detiveram-se todos
entreolhando-se pasmados. Os violeiros,
que afinavam os instrumentos, levantaram as cabeças fitando a dona da casa que,
de braços cruzados, olhava ora para um, ora para outro como á espera de uma
resposta. A mocinha ali não estava, não estava lá dentro: dançara uma polca, a
primeira, com o Firmiano, isso dançara, mas não a viram mais.
— Quem sabe se ela foi-se deita? Já olharam no quarto?
— Não está! afirmou a dona da casa com a voz oprimida.
Já as senhoras se haviam espalhado pela casa, invadindo os aposentos, chamando a mocinha.
Tio Chico chegou á varanda e pôs-se a
bradar para o terreiro, onde a fogueira
morria esquecida:
— Luzia! Luzia!
Nada! Um balão fugia pelo ar escuro levado pelo vento; longe o risco de fogo de um foguete
coriscou no negrume; as arvores buliam devagarzinho
e, no silencio, ouvia-se bem a queda da
água no moinho, perto.
— Luzia! Onde se terá metido essa rapariga?
Chegaram outras pessoas á varanda, olhando, chamando.
As moças cochichavam reunidas e já pesavam suspeitas sobre a mocinha quando, de novo, a
voz de Tio Chico se fez ouvir:
— Que ó aquilo ali em baixo? Vocês não estão vendo um
vulto ali para os lados dos bambus?
— Sim. Parece. E o velho bradou de novo: «Luzia!» Um cão pôs-se
a ladrar na sombra. «É gente! é. .V E é gente conhecida. O Tigre que
calou a boca é porque é gente de casa». As senhoras romperam pela varanda aflitas
quando um dos violeiros disse: « Vem gente ali, e é mulher.» « Luzia!»
— Eh! responderam.
— Que é que você anda fazendo lá fora com essa noite,
menina?
Era ela. Vinha devagarzinho com um punhado de lírios na mão
e coroada de lírios. Entrou calada, sorrindo timidamente, a brincar com as
flores.Cercaram-na e a dona da casa avançou sem poder conter a fúria:
— Que é que você foi fazer lá fora, pequena? Onde estava você? Fala.
Tio Chico quis intervir, já disposto a perdoar a escapada,
mas a mulher, de pé diante da mocinha, com
as mãos nas cadeiras, olhava-a a resmungar ameaças. Luzia, de olhos baixos,
esmagava os lírios alvos sem dizer
palavra, com um sorriso triste no rosto
moreno e lindo.
Foi uma velha quem descobriu o segredo:
— Que horas são? perguntou.
— Vai para uma, disseram.
— Então está aí, Luzia foi á fonte. Pois vocês não estão vendo que ela está cheia de açucenas?
A rapariga levantou vivamente a cabeça e
fitou a indiscreta:
— Pois fui mesmo, disse altiva; fui e que mal ha nisso! Cada qual sabe de si e Deus de
todos. Fui!
E, nervosa, desatou a chorar.
Foi bom assim porque a gente que a cercava sentiu um grande alívio, foram-se as suspeitas
e as companheiras, que a julgaram mal,
como se as picasse o remorso, cercaram-na
carinhosamente consolando-a: «Que não
chorasse! D. Anna não estava zangada.
Tinham dado falta, não a viam, não a
achavam em casa... Aquilo era um mato perigoso,
podia ter acontecido alguma coisa, ficaram aflitos. Era natural. Ninguém estava zangado.
Abafando os soluços ela foi seguindo entre as companheiras
para o interior da casa. Os violeiros, querendo acabar com aquelas tristezas, deram o
sinal para uma quadrilha e Tio Chico foi logo dizendo que era a ultima, antes
da ceia, e como D. Anna, muito ansiada, ainda falasse do grande susto que lhe
pregara a filha ele, que estava alegre, fez-lhe uma festa brejeira no rosto
gordo:
— Está bom, não falemos mais nisso; a pequena foi á fonte ver a sorte, já está aí, com a
graça de Deus. Vai ver a ceia, anda; sem
isso não teremos comida senão lá para a
madrugada.
— Com uma noite fria assim! até pode apanhar uma coisa no
peito.
— Qual, história! em noite de S. João não há moléstias. Vai, anda. Olha, a gente está fraqueando
que até faz pena.
Dançava-se com entusiasmo a terceira parte da quadrilha,
marcada, aos berros, pelo Gustavo da Boca
nova quando um tiro estrondou no
terreiro.
Os cães ladraram com fúria, mas quase ao mesmo tempo, uma das moças, que olhava para a varanda,
exclamou corando:
— Mundico, gente!
Um rapaz desempenado estava parado á porta, de botas, chapéu á banda, o chicotinho enfiado no
punho, sorrindo. Foi um alvoroço na
sala, desfez-se a quadrilha; correram
todos para o recém-vindo e quando Tio Chico viu o rapaz, alegre como estava, abriu
largamente os braços e caminhou para ele:
— Quê, homem! Você por aqui! Quando chegou?
— Ontem e aqui estou que ó o mesmo que dizer que ainda não preguei olho. E tia Anna? E Luzia?
As duas apareceram e foi um espanto ruidoso:
— Meu Deus, Mundico! Quando chegou? Você fez exame? Foi
feliz? Como está gordo!
E a velha mirava-o, sorrindo. Luzia, mais retraída, sorria
também, mas de olhos baixos.
— Toma alguma coisa, rapaz; um pouco de vinho, um pouco de cana, café?
— Nada! Nada. Não estavam dançando?
— Sim.
— Uma quadrilha?
— Estávamos na terceira parte.
— Pois vamos continuar. Não ha por aí uma dama? E voltava-se lançando o olhar em torno. Tens
par, Luziazinha!
— Eu, não.
— Então, anda cá.
—Mas falta um vis-à-vis,
disseram.
— Arranja-se. Tio Chico, titia... Venham.
— O que?
— É para completar aqui o negocio, tenham paciência.
Os dois velhos, quase empurrados pelo rapaz, foram tomar
lugar e os violeiros romperam. O Gustavo gritou logo, já rouco: En avant! E Mundico,
inclinando-se disfarçadamente para a
prima, perguntou baixinho:
— Então!
— Então?! Então é que eles desconfiaram. Eu bem dizia a
você que estava demorando muito.
— Ghâine de circunstância
só para as madamas! esgoelou o Gustavo.
E as violas repenicavam
com fúria.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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