D. JOÃO DE MARAÑA
Na lápide de uma
tumba rasa, que serve de limiar á portaria
da igreja da Caridade, em Sevilha, lê-se, em letras gastas pelo contínuo roçar dos pés,
este epitáfio sombrio: « Aqui yace el
peor hombre que fue en el mundo».
Diz Mérimée que tais palavras, ditadas no momento da morte
por aquele que debaixo delas repousa, como se quisesse ficar sob um perpetuo estigma ou sob
um perpetuo anúncio, ou foram sugeridas
por humilde arrependimento ou inspiradas
por desmarcado orgulho. O corpo que ali
jaz foi o de galhardo fidalgo destemido e afrontoso, horror de Sevilha e de Salamanca, herdeiro da fortuna e da nobreza
dos condes de Marana, infame rausor de
virgens, profanador de claustros, grande acutilador e matador de homens.
D. Carlos de Marana, vencedor dos Alpuxarras, era de
antiga e ilustre casa sevilhana, famosa nas crônicas esforçadas do tempo das
grandes guerras. Depois de muito talhar mourisma, destroçando aduares,
escalando muralhas e levando, á frente da sua mesnada afoita, a cavalaria do
Islã batida e confundida, mui cangado de «montear» os cães de Mafamede e não
menos enfastiado de aventuras, resolveu
recolher ao seu palácio, nos arredores da cidade, no silencio sombrio d'um
parque de velhas arvores, com muita terra de semeadura para o fundo, onde
verdejavam olivedos e vinhas.
Os fâmulos, com as contínuas e demoradas sóridas do fidalgo, ficavam a cochilar no imenso
e soturno palácio e, de tempos a tempos, acordados pelo mordomo, lá iam aos
salões. Abriam largamente as janelas ao sol e ao ar, sacudiam a densa poeira
que encobria os quadros, acalavam as armas das panóplias, bruniam os mármores
dos moveis, batiam as tapeçarias, mas o senhor não tornava e, de novo, o
palácio recaía no silencio, fechado á luz como solar abandonado e maldito.
Ás vezes, um cavaleiro, coberto de pó, com as armas sem brilho, refreava, diante da grande
casa armoriada, o ginete esfalfado,
apeava e, com o punho da espada, batia
de rijo na porta principal, chapeada de
ferro, como a de uma fortaleza. O som estrondava
longamente. Acudiam, a correr, os fâmulos
sobressaltados, olhavam pelo postigo gradeado
e, reconhecendo o cavaleiro, com esforço faziam rodar a porta emperrada e pesada, de
cujos gonzos, no lento girar dos quícios,
caía, como a farinha da mó, uma vermelha
poeira de ferrugem.
O cavaleiro penetrava, era acolhido com alegre alvoroço, dava-se-lhe do melhor vinho e da
melhor fruta e, á noite, em volta da
grande mesa, ao chamejar da lenha, secando
canecos, ele narrava á boa gente domestica os feitos maiores do senhor, que lá
ia, ao longo das praias, repelindo para
o mar o ismaelita corrupto, levando-o, á ponta de lança, como o campino, na
lesiria, apua a pampilho o touro. E até
noite alta, quando o fogo morria, os fâmulos,
em silencio, maravilhados e orgulhosos,
escutavam as descrições das proezas do lidador.
Na manhã seguinte o cavaleiro apressado montava
um animal robusto e, com outro á destra e machos resistentes, lá ia levando novas armas
ao campeão que pelejava e vencia a peito
descoberto.
Veio, porém, o fastio da vida errante e incerta e o fidalgo com mais duma ferida no corpo e um
grande talho d'alfange na face
acobreada, entrou no seu palácio e, suspendendo
o montante e o morrião, despindo a couraça abolada, que foi brilhar, como um troféu,
entre as luzentes armas dos Marafia,
mandou abrir, de par em par, todas as
portas e janelas, e, nesse dia, velhos morcegos, que se haviam acolhido, como em ruínas, aos ângulos
daqueles salões, deslumbrados pelo grande sol que entrava fulgurante, puseram-se a esvoaçar
pesadamente, indo de encontro ás telas,
ferindo-se nas ascumas, aos trissos, e
foi para a gente domestica uma divertida e ruidosa caçada.
D. Carlos, porém,
habituado á vida agitada dos acampamentos, sentindo-se muito só naquela imensa
morada, pensou em tomar esposa. Como,
pela vida que adotara, andasse sempre
longe, não conhecia as damas sevilhanas,
despindo, porém, as armas e cobrindo-se de veludos, com um gracioso florete ao flanco,
antes adorno que defesa, fez-se o mais assíduo
galanteador nos salões da nobreza,
procurando, com sagacidade, uma donzela
que fosse, em tudo, digna do seu nome e de
seu amor. Achou o que buscava, não no esplendor da cidade, mas no retiro virtuoso de um paço de
velha nobreza, calmo no seu recato, todo em sombras d'arvores, á beira do Guadalquivir.
D. Ignez, nascida e criada naquele pensativo solar, onde apenas viviam damas, que o pai lá
lhe ficara em guerras, na costa do mar,
junto do filho que o seguira, muito moço
ainda, mas já ardente em batalhas, era
d'uma pálida beleza, mais branca do que
as imagens do seu oratório contíguo ao quarto em que dormia, fechado a ferros como uma cela
de monja ou o ergástulo de galé.
O primeiro homem que os seus olhos calmos contemplaram com a demora de um olhar foi D.
Carlos, o guerreiro acérrimo, junto de quem ela ficava como um lírio fraco e
languido perto de anoso roble. De vê-la
a pedi-la não houve demora e logo se anunciou
pelas casas armoriadas o casamento do
conde batalhador com a delicada filha dos
fidalgos de Beira d'Água.
As bodas, como convinha a duas famílias de tanta prosápia,
foram suntuosas. Três dias duraram as festas e a gente dos campos desceu a admirar
a riqueza e a fulgurância do palácio dos
Maraña.
Anos tristes passaram sem esperança de herdeiro. Uma manhã, porém, D. Ignez, a chorar
e a tremer nervosa, deu ao conde a
noticia grata de que se achava fecunda,
e, meses depois, na hora da tarde, com o
canto dos frades que enchiam a capela, nasceu,
robusto e lindo, o varão que devia, honrar e continuar a gloria das duas casas.
Levado á pia com solenidade — dobravam alegremente os sinos como nos dias grandes da religião — recebeu o infante o nome de João e cresceu entre os círios e as rosas da capela,
onde a mãe; que o tinha por dom divino,
com ele desaparecia a rezar.
O conde, taciturno, medindo os vastos salões a duras e
largas passadas, murmurava contra aquele vergar d'alma, e, quando, longe das vistas da
mulher, achava o filho curvado, a
folhear velhos livros cheios de iluminuras
devotas, lá o arrancava com violência e,
trancando-se com ele na sala de armas, ia-lhe
apontando, um a um, os retratos de avós, citando-lhe os seus feitos, descrevendo
batalhas e, ora brandindo uma espada,
ora embraçando um escudo, ora enristando
uma lança, arremessando-se e recuando,
aos brados estrondosos, dava-lhe ao vivo o exemplo dos combates quando, na confusão da peleja, os ginetes acobertados chocavam-se com
estridor e as lanças voavam em estilhas
de encontro aos aceiros rijos. E, como o
menino, em cujas veias ardia o sangue
bravo dos heróis de duas temíveis linhagens,
se fosse inclinando aquele gosto que renascia
no pai, deu-lhe o fidalgo um destro mestre de armas e, assim, entre esfiar de rosários e botes e arremetidas, devoções no oratório
e retinir de espadas no salão ou no
parque, foi crescendo o mancebo que
devia continuar, com honra e denodo, a tradição
dos Maraña.
Vendo-o o conde desenvolto e robusto, resolveu despachá-lo para Salamanca, onde florescia a Universidade.
D. Ignez, ao despedir-se do filho, encheu-lhe os bolsos de rezas e amaletos, pedindo-lhe que se
lembrasse sempre do quadro que havia na
capela domestica, representando as almas
do Purgatório, sofrendo nas chamas,
espicaçadas por demônios negros, entre monstros
esvoaçantes.
Que a não esquecesse nas suas orações, para que a sua alma não chegasse a penar como penavam as
da tela sinistra. D. Carlos,
cingindo-lhe uma espada de boa tempera, lembrou-lhe a honra dos Marana que elle
ia continuar e engrandecer. E o moço
partiu.
Em Salamanca fê-lo o demônio encontradiço com o estudante mais estróina da Universidade, D.
Garcia, nobre e airoso moço que andava
esfarrapado por gosto e blasfemava por bazófia.
Ligaram-se os dois. De dia dormiam pelos grabatos das baiúcas ou nos alcouces das marafonas,
entre restos de orgias; á noite,
traçando as capas, com a guitarra e a espada,
lá iam pelas ruas e calejas acordando as virgens que acudiam aos seus cantares sedutores.
Bara era a noite em que D. João, recolhendo, não referia ao companheiro um novo crime — ou de desonra, descrevendo, com lascívia cínica, a beleza
profanada, ou de morte, comentando o golpe com que prostrara o desconhecido na treva
deserta de uma esquina.
Tantos e tão seguidos foram os seus crimes que, a conselho de D. Garcia, que temia um levante
dos burgueses e a rispidez do
corregedor, abandonou Salamanca,
passando-se a Flandres a oferecer a sua espada
e sua lealdade ao férreo duque d'Alba.
Tornando, porém, a Sevilha, onde o palácio, por morte dos fidalgos, reentrara no antigo
silencio, uma noite, num fim de orgia,
gabou-se D. João de haver ultrajado no
amor toda a casta de homens. Eolára com mulheres
no estrame do pastor serrano e em damascos de leitos reais; tivera mesmo nos braços, mia e
ardente, aquela que, em Boma, todos
inculcavam como amante do Santo Padre. Só lhe faltava, na lista dos traídos, um
nome — o de Deus. Foi, então, que alguém
se lembrou de o excitar ao derradeiro e
mais hediondo ultraje e, para enraivecê-lo,
sorrindo com incredulidade, desafiou-o a rematar a lista infame com o nome que faltava.
Pálido, oscilando, ergueu D. João o cântaro espumante e emprazou os companheiros para um
festim que seria presidido por uma
freira. Beberam todos e o sol, entrando
pelas janelas enramadas de trepadeiras, dispersou-os.
Na manhã do dia seguinte estava D. João no leito quando
ouviu tanger de sinos e lembrou-se que
ali perto, na vizinhança, a curtos passos
da sua residência, erguia-se um convento de freiras, casa de muita pureza, de onde jamais
saíra para o mundo o eco mais leve do mais leve escândalo. Ali quis ele ensaiar
a sedução e, vestindo-se ás pressas, com
austeridade, encaminhou-se ligeiramente para o seu posto.
Entrou e, seguindo, com ar contrito, por entre bancos e genuflexórios,
foi ajoelhar-se junto ás grades que separavam
as freiras e as noviças da multidão dos devotos do ofício da manhã. Logo,
lançando o olhar arguto ao gineceu sagrado, pude ver entre as monjas uma ainda moça e de perturbadora beleza. Tanto, porém,
que deu com ela, bateu-lhe o coração e a
si mesmo, baixinho, lançou esta pergunta:
«Onde vi eu este rosto? » e a freira, por seu lado, tremia e baixava os
olhos corando, com o que mais se lhe
avivava a formosura.
Atentando na face da religiosa lembrou-se de certa donzela de Alcalá, herdeira de um nome puro
que ele, em delírio sensual, enxovalhara. O nome subiu-lhe aos lábios: «Tereza»; com ele, porém, na mesma lembrança, veio toda a tragédia que rematou
tristemente aquele caso de amor: o velho
pai, que os surpreendera, ferido de
morte no vão duma escada, um lacaio a escabujar
em sangue e ela fria e pálida, cabida como morta e semi-nua sobre os linhos do leito profanado.
Thereza tremia, mas o amor, que não lhe
deixara o coração, subiu como um fogo
abafado que um sopro de brisa ateia e
logo rebrilha e chameja.
Houve entre ambos o entendimento dos olhos, corresponderam-se
com as centelhas das pupilas e, mais tarde,
pondo D. João o jardineiro do seu lado, fácil lhe foi falar á monja e logo a rendeu, combinando-se,
entre os dois, a fuga para a noite próxima.
Uma liteira bem fechada e guardada por homens
bravos viria esperá-la a par do muro, numa viela deserta; o jardineiro guiá-la-ia ao caminho e,
para que não sucedesse, no caso de ser
ele interrogado, dizer o que sabia, um
dos lacaios devia emudecê-lo para sempre.
Com tal recado dera-lhe o conde um dos punhais mais finos da panóplia venerável, arma que os
de Marana só haviam utilizado, com
lealdade e bravura, defendendo a Fé,
defendendo a Pátria ou defendendo a honra.
D, João não viveu as horas que o afastavam do momento
alegre e de vaidoso triunfo em que devia aparecer entre os companheiros, conduzindo
pelo braço a esposa do Senhor. Chegada
que foi a noite, lá se foi ele postar no sitio mais escuro, á espera que soasse
a hora determinada.
Era pelo começo do outono; um vento frio picava e as corujas passavam no ar brumoso com chirrio lúgubre.
Impaciente ia e vinha o fidalgo, quando
ouviu um coro de vozes tristes que
pareciam entoar um canto religioso.
Devia ser no convento, pensou — alguma prece noturna. Mas não, era um canto merencório, de
morte, e ele, que olhava, viu aparecer
ao longe uma procissão sinistra.
Duas longas filas de penitentes negros, com círios, encapuchados em cochilas, precediam lentamente
um esquife forrado de veludo e trazido
aos ombros de monges de longas barbas
brancas e armados como guerreiros.
Apesar do vento as chamas dos. círios conservavam-se
direitas e as estamenhas dos homens mantinham-se
imóveis, duras como as roupagens de pedra
das estatuas e, sendo eles numerosos, não
se ouvia, entretanto, o mais surdo rumor de passos.
A procissão encaminhava-se para uma velha igreja arruinada e desprezada. Como o primeiro
penitente passasse junto do fidalgo,
cuja curiosidade ia crescendo sempre, ele
dirigiu-lhe a palavra perguntando: «Quem era o que levavam a enterrar? »
O farricoco levantou a cabeça e o nobre moço viu dois
olhos que pareciam arder e um rosto agudo, macilento e marmóreo como o de um morto e o
estranho andejo disse sinistramente:
— Senhor, é o conde D. João de Marana.
Ell sorriu afetando indiferença, certo de que o informante, que o reconhecera, quisera zombar
do seu animo e foi com a procissão como
atraído.
O cortejo seguia no mesmo andar pausado e surdo, e achava-se ainda a alguns passos da igreja
quando, entre os velhos muros, reboou
tristonha e fúnebre, a voz grave do órgão
e logo, no limiar, apareceu um grupo de padres entoando cavernosamente o De
profundis.
Deposto o esquife no cenotáfio, formaram alas os penitentes para a vigília funérea. Então, já
aterrado com todo aquele cerimonial, o
conde adiantou-se e dirigiu-se a outro
penitente, perguntando-lhe:
— Quem ali jazia? e o homem, em voz cava, respondeu como o primeiro:
— Senhor, é o conde D. João de Marana. Alucinado, o moço fidalgo arremeteu e,
querendo empurrar os penitentes, a sua
mão impetuosa passou através dos corpos
como por um fumo negro. Subiu, em desvario,
os degraus do cenotáfio, chegou ao esquife.
E esse momento na torre do mosteiro soava vagarosamente a
hora do sinistro ajuste. Thereza, ansiosa e medrosa, devia vir pelo jardim silente supondo-o
escondido na sombra quieta das arvores.
Violentamente descobriu o rosto do cadáver, inclinou-se e viu: Era ele que ali estava
estendido, as,mãos duramente
enclavinhadas no peito, lívido, hirto e frio;
era ele próprio, bem lhe haviam dito os penitentes: era D. João de Marana, filho do conde Carlos,
rausor de virgens, roubador e matador
perverso. Em torno, sombriamente
calados, imóveis, velavam os penitentes negros.
Curvavam-se-lhe as pernas, um suor frio escorria-lhe da fronte, faltava-lhe o ar. De repente
levantou-se na igreja uma grita
estrondosa e medonha: «A nós, o infame!
A nós, o dilapidador! A nós, o devasso!» E, de toda a parte: das ruínas dos nichos, dos vãos
dos velhos altares, dos escombros do
coro, quebrando, com estrepito, as lajes
sepulcrais que assoalhavam a nave, surgiam sombras pálidas e nelas ia o conde
reconhecendo as suas vitimas amorosas e
as que haviam caído a golpes de espada e
punhal — lindas moças conspurcadas, velhos cujas barbas brancas esvoaçavam, mancebos duma
graça inda infantil e todas mostravam as
feridas sangrentas ou vociferavam contra
o enganador que as manchara e esquecera.
A velha igreja enchia-se, atroavam os clamores e, nas cimalhas, nos florões dos capitéis, nas
cornijas, demônios rubros, de cornos em
brasa, riam com esgares, balançando-se
suspensos das caudas, brandindo garfos que
chamejavam.
Na manhã seguinte alguém passando, por acaso, pelas ruínas da igreja viu, caído entre os
destroços dum muro, o moço nobre — a seu
lado jazia a espada nua e úmida do
orvalho. Não lhe acharam no corpo
ferimento algum.
Recolhido ao palácio ali esteve, entre a vida e a morte, longas e tristes semanas, a cuidado de
um velho dominicano e, melhorando,
viram-no os fâmulos sair, envelhecido e
curvado, seguindo com o religioso para
desconhecido sitio.
Tempos depois todos os bens dos Marafia eram convertidos em esmolas e mais um frade rezava
no coro dos dominicanos.
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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