DECADÊNCIA
Da vida de duas princesas — uma alemã, outra russa — que caíram em miséria, deram os jornais
o triste romance. A primeira, fugindo na
mesma noite do casamento, preferiu ao
marido, um príncipe, certo boêmio
desabalado que, depois de a haver
empobrecido, abandonou-a com uma filha pequenina
e enferma nos braços. A desgraçada, repelida pela família, cuja coroa ficara indelevelmente mareada, errou, faminta
e tiritante, pelos campos até que a
criança lhe morreu achegadinha ao colo
mirrado e, sem lar e sem pão, com uns sórdidos
andrajos sobre o esqueleto, foi, uma
noite, bater á porta dum hospital pedindo, a chorar, que a recebessem por misericórdia. Receberam-n'a tomando-a por uma pobre mulher, viúva de algum operário e, só na hora extrema,
quando a desvairada se desprendia do
mundo, os enfermeiros souberam quem ela
era.
A outra, menos romântica, perdeu-se em operações
financeiras: atirou-se á jogatina da bolsa sacrificando milhões de rublos, empenhando as jóias, o mobiliário,
a seda, os linhos, até que se achou, uma
manhã, sem um azinhavrado kopeck. Como não era mulher frágil e conservava no coração um resto de esperança,
preferiu continuar a viver, mesmo com sofrimento,
a mergulhar no Neva ou a queimar os
miolos, se os tinha, com um tiro.
Procurou emprego como a Krotkaia de Dostoiévski e, como não lhe foi fácil encontrá-lo em uma
repartição do Estado, aceitou, com
resignação, o lugar de servente de
pedreiro e, como no tempo do fastígio subia, com peliças caras sobre os ombros, as escadarias
de mármore dos palácios moscovitas, pôs-se
a subir as escadas oscilantes que
levavam aos andaimes equilibrando na cabeça,
sobre a rodilha dos cabelos louros, que
haviam, em tempos prósperos, sustentado uma
coroa, o cocho acogulado de barro.
Acabou em negra miséria, envelhecida, calejada naquele rude trabalho, ao sol e á neve.
Entre nós ha de ser difícil aparecer um desses casos lamentáveis, porque não temos príncipes, mas
podemos apontar muitos decaídos que, se
não têm nas veias o sangue azul, tiveram
nos cofres ouro bastante para, com habilidade,
se quisesse, arranjar o colorido ciânico que é um nobre privilegio dos descendentes de
reis. Um desses decaídos acabou, no
Hospício Nacional de alienados. Eu o
conheci já na miséria, mas ainda são, integro
de espírito. Chamava-se Pinheiro, por antonomásia — Chicote.
Fui-lhe
apresentado, uma noite, por um acadêmico, em cuja casa ele costumava pernoitar. Era um
homem simpático, distinto, dotado de uma
voz insinuante, conversando como um
gaulês.
Nessa noite, minutos depois da sua apresentação, falando-se do passado, o sempre bon vieux temps, ele, que
se achava sentado em uma canastra, levantou-se e, sacudindo os cabelos, compridos e soltos como
uma juba, pôs-se a passear pelo quarto
acanhado, em silencio, estalando os
dedos. De repente, detendo-se, cravou em mim os olhos que fulguravam, e disse com um
momo:
— Meu amigo, no Brasil ninguém vive, isto é uma ocara, compreende? uma ocara insípida. Para
quem nunca atravessou os mares o Eio tem
encantos, mas para quem viveu lá fora,
isto não passa de uma aldeia sórdida e triste,
com um lindo céu e algumas arvores.
E, inspirado, entrou a descrever a vida alegre, agitada, em Paris — os boulevards iluminados, o Bois,
á tarde, os lagos no inverno recortados
pelos patinadores que deslizam
graciosamente sobre a neve rutila, os teatros, os cabarés...
Depois Londres com o seu movimento e o seu nevoeiro, as costas azuis do Mediterrâneo,
Nice e toda essa Itália artística e
languida, as ilhas clássicas, a Grécia, Constantinopla,
Jerusalém, os desertos, que sei! Falou-me do mundo descrevendo pitorescamente,
e com saudade, toda a sua longa e lenta
viagem — noites em Govent Garden e noites á beira do Mar Morto, numa tenda, entre beduínos.
Depois o Egito, depois a Espanha com amores e serenatas.
Agitava-se, ia e vinha sacudindo, de instante a instante, a cabeça, com os olhos
muito brilhantes. Eu ouvia pasmado e, como
não conhecia a estranha historia da sua vida, tomava-o por um
louco.
De vez em quando procurava os olhos do acadêmico que mo apresentara e nada neles descobria que denunciasse incredulidade: o
rapaz ouvia, com respeito, as descrições
fantásticas que ia fazendo aquele homem,
cujo casaco estava no fio, cujas botinas
gastas iam e vinham pelo soalho sem ruído
como se fossem forradas de algodão.
Depois referiu-se á Arte recordando as suas detidas visitas aos mais notáveis museus, com
uma opinião sobre cada época e sobre
cada um dos grandes mestres da pintura e
da escultura. Falava com acerto como se
repetisse as palavras de um guia bem
compilado. Por fim chegou á mulher e sobre todas teve uma frase — desde a robusta campônia,
linda e graciosa no seu vinhal do Douro,
com as cores vivas dos seus trajos, que
recordavam a fantasia alegre dos
sarracenos até á branca e delicada miss,
figura mística, duma doçura divina, como anjos das iluminuras medievais. E a todas
amara e guardava ainda o sabor daqueles
beijos que recebera, uns que sabiam a
mosto, outros que deixavam na boca a
impressão delicada d'um gosto de
violeta.
Mas quando, de volta dessa viagem, ele reentrou a barra do
Rio de Janeiro, a celebrada barra que
não tem rival no mundo, a sua tristeza começou a manifestar-se. O entusiasmo caiu em morna melancolia e ele tornou á canastra, cruzou as pernas
e, depois de haver explorado inutilmente os bolsos, pediu-me um cigarro. Dei-lho e isso
foi pretexto para que discorresse sobre
o fumo, falando de Cuba e das suas ricas
plantações. Não era um homem, era a
própria geografia.
O grande sino de S. Francisco pôs-se a bater vagarosamente as dez horas e o homem
levantou-se.
O acadêmico insistiu com ele para que ficasse.
— Não, estava uma noite linda, ia aproveitá-la.
Tomou o chapéu e a bengala, despediu-se e foi-se, cabeça
alta, bambaleando o corpo. Quando os seus
passos perderam-se na escada eu disse ao meu amigo:
— Esse sujeito é doido, não?
— Não. Esse homem foi um verdadeiro nababo.
Descendente de uma família abastada herdou uma grande fortuna e, logo que entrou na posse dos
seus haveres, resolveu satisfazer a
ambição da sua mocidade: ver o mundo e
saiu a realizar essa viagem admirável da
qual nos deu, ha pouco, as linhas gerais
e, ainda assim, muito apagadas, porque ele
hoje está com a melancolia: ha luar, é sempre assim.
— É, então, um lunático?
— Não sei, diz que o luar reaviva-lhe as recordações. Pensas, talvez, que foi dormir?
não, foi andar e anda até de manhã. Vai
a pé a Botafogo, fica horas e horas a
passear ao longo do cães, falando só, ou
falando ao mar; detém-se diante de certas
casas, olha demoradamente, depois segue cantarolando,
como para disfarçar tristezas. É sempre
assim, quando ha luar.
Chama-se Pinheiro,
Pinheiro Chicote. Dizem, que, de volta da Europa, enamorou-se de uma formosíssima
senhora e desposou-a. A principio, por
vaidade, abriu os seus salões, recebendo
com fausto; levou a mulher aos bailes da
corte, aos espetáculos no Provisório, a garden-parties,
de repente retraiu-se; nunca mais a senhora foi vista em parte alguma, e entraram a dizer que,
numa cena violentíssima de ciúme, o
marido levantara contra ela o chicote
ferindo-a no rosto e no colo. O povo entrou,
desde então, a chamá-lo Pinheiro juntando-lhe
ao apelido, como antonomásia Chicote, estigmatizante,
o nome do instrumento vil, com que ferira
a linda dama.
Nunca se referiu á esposa nas palestras que comigo tem tido, conheço tais fatos por outras
pessoas que o alcançaram ainda no tempo
brilhante.
A senhora morreu, dizem uns; outros afirmam que o abandonou e que ainda vive; não sei. Ele é o
que vês — um misantropo, com essa
erudição de viagens e um pouco de poesia
melancólica no coração. De resto — bom homem,
posto que, algumas vezes, tenha verdadeiras crises de mau humor tornando-se insuportável.
É de um orgulho desmesurado: sofre fome
para não pedir e, se apanha algum
dinheiro, vai, a correr, para a estação das barcas, sentir-se no mar. Tem a nostalgia das águas
que o levaram a todos os pontos do mundo
onde havia alguma coisa que ver, e
admirar; e tem, talvez, um remorso que lhe
tira o somo, que o irrita ou que o prostra em longa e muda melancolia, dias seguidos. Fala seis
línguas, e é um critico de arte admirável.
Onde mora ninguém sabe, dorme, ás vezes,
aqui, outras vezes em casa do Rodrigues, e nas noites de luar caminha. É tudo quanto sei.
— E que faz?
— Nada. Já lhe quiseram dar um emprego, rejeitou com desprezo. Quer a sua independência
absoluta, não sabe obedecer.
Anos depois, uma tarde, achava-me eu no largo da Carioca, á espera do bonde, quando ouvi uma
gritaria e gargalhadas estrondosas que
vinham da rua de Santo Antônio.
Voltei-me e vi aparecer, á frente de uma grande malta de garotos, roto, brandindo
furiosamente um velho guarda-chuva, o
Pinheiro Chicote.
Estava envelhecido e magro, o casaco era um trapo, as calças pretas, polidas na barra, reluziam.
Caminhava apressado, gesticulando; de
repente, sentindo perto os pequenos que
diziam chufas, que lhe atiravam imundícies,
que o puxavam pelas mangas, pelas abas do casaco, voltou-se e foi um chorrilho de
obscenidades. Um policia interveio
defendendo-o e ele lá foi, atirando os braços,
com acenos ameaçadores, e desapareceu na rua Gonçalves Dias, perdido na multidão que subia
apressada. Recolhido ao Hospício foi, enfim, libertado pela morte.
Esse grande desgraçado que, para uns, sofria as torturas de um remorso, e para outros, era
apenas um nostálgico da fortuna, vivia
do passado: na maior miséria sustentava-o
a recordação dos dias felizes que, no dizer do Dante, constitui a provação maior. Para ele
era a felicidade.
Olhar as águas verdes e irrequietas do mar era para o infeliz um consolo. Por elas seguira
outrora, moço e rico, e elas o viram
feliz em tantos portos diversos,
gastando a mãos largas; por elas tornara para agasalhar-se na pátria tendo por
companheira uma senhora de esmerada
educação e de fascinadora beleza. Fora
injusto e cruel com ela, as erynias vingaram-na
e o mísero Pentêu pôs-se a errar pela cidade,
pobre e solitário, ao luar e ao sol, revendo os sítios em que fora feliz: aqui certo balcão
d'um antigo prédio, que fora seu,
talvez, de onde ao lado dela, olhara
tanta vez aquelas mesmas estrelas do céu;
adiante, um jardim onde deixara uma lembrança
do sou carinho numa arvore que vira pequenina
e que, então, abria uma copa frondosa; os montes, os campos, o mar, o mar sobretudo.
Essa insistência da visão das coisas antigas devia ir abalando o pobre espírito. Não foi a miséria
que levou ao desespero a alma orgulhosa,
altiva e sofredora do miserando, foi a
saudade, foi a lembrança da ventura que,
a principio, o sustentava como a hera
sustenta as ruínas, mas que, insinuando- se por todas as frinchas e taliscas,
acabou por estalar aquelas fracas
resistências dando com a pobre alma na
loucura. E que fazia o louco? não vociferava, não investia, não ameaçava — só, monologando, ia e
vinha pelos compridos corredores
apontando coisas imaginárias, sorrindo,
admirando. Ás vezes corria — não julgassem que ia praticar alguma
maldade, não; ia tomar o comboio para
Jerusalém ou o trenó para atravessar a estepe e, sorrindo, acenava adeuses fugindo na loucura para aquele passado, na
visão suave do que fora, dentro do
eterno sonho.
Nas noites de luar acendiam-se-lhe os olhos, tremia e, pálido, sem poder conciliar o sono,
não se aquietava em quanto não lhe permitiam
ficar junto a uma janela olhando,
através das grades, a lua branca, no
céu.
Que lhe recordaria o astro meigo? talvez um amor no
deserto ou, quem sabe? a sua brutalidade de ciumento. Que descobriria na lua triste?
seria ele um dos predestinados de que
fala Raimundo Correia no seu Plenilúnio? talvez. A lua...
Ha tantos olhos nela
arroubados,
No magnetismo do seu fulgor?
Lua dos tristes e
enamorados,
Golpão de cismas
fascinador!
Astro dos loucos,
sol da demência
Vaga, noctâmbula aparição!
Quantos, bebendo-te
a refulgência,
Quantos por isso,
sol da demência
Lua dos loucos,
loucos estão!!
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Nota:
Coelho Neto: “A Pico de Pena” (1904), da Colecção Revivendo, N.° 4, publicado pela Lello & Irmão Editores, edição de 1925.
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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo termos específicos atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com
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