Quando madame D’Arbois chegou ao Rio de Janeiro,
escriturada numa troupe parisiense que fez as delícias dos freqüentadores do
Cassino Franco Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que
madame D’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta
fidelidade ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando
filosoficamente que
ela voltasse da América endinheirada e feliz.
O jovem comendador Cardoso, que não acreditava em
Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia
insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de
dois meses, vivia maritalmente com madame D’Arbois.
Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem comendador
Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro. Nada
lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de
muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em
Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.
Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram
perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem comendador Cardoso e madame
D’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de
trinta anos, pouco instruído é verdade,
mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação
literária. Ela era uma mulher bonita alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa,
econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam desejar?...
Tudo cansa. Ao cabo de um ano, madame D’Arbois começou a
sentir nostalgia dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresário da
melhor companhia brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um
vantajoso contrato. convidando-a, nada mais nem menos, para substituir a
estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro
fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.
O jovem comendador Cardos pôs os pés à parede. Que não,
que não, que não! A Lolotte — madame D’Arbois chamava-se Charlotte — não
precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!...
— Mas non,
mas non! Il ne s’agite poin d’argent, mon pauvre chéri, obtemperava Lolotte; je sens que je ferais une grosse
maladie si je ne rétourne pau au
theathre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes...
Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem
comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo e interveio com muito empenho.
— Que diabo! consente, Cardosinho, consente! Se não lhe
fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher
contrariada. Depois, vê lá; não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos
bagarotes que a pequena mete no Banco todos os meses! Não vá tu privá-la deste
pecúlio.
Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois,
madame d’Arbois estreava-se no papel de protagonista de uma opereta.
Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico,
e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público
fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente.
Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas cuja letra ninguém
percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um
santo.
Razão tinha o jovem comendador Cardoso em não querer que a
amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma
diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la
no saguão do teatro, penetrava até o camarim.
Uma vez encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o
Lopes, o primeiro ator cômico da companhia. que logo se retirou, dizendo:
— Adeusinho, comendador; vim cá restituir à colega o rouge
que lhe pedira emprestado.
Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de
talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um
homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadosa da sua roupa!
Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de
mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico
encontravam-se quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista
perto do teatro.
Um dia, o jovem comendador Cardoso, depois de se haver
posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista,
saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava
sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em
ceroulas.
O primeiro ator cômico, ao ver o jovem comendador Cardoso,
não perdeu o sangue frio, e começou a fingir que estava a ensaiar:
— É como vos digo, princesa Briolanja; o rei, vosso pai,
não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar
nos seus reinos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e
vos despose!...
Mas o jovem comendador Cardoso não engoliu a pílula, e
disse, dirigindo-se à princesa Briolanja, que continuava a fumar os eu cigarro
turco:
— Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com
o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!
E saiu arrebatadamente.
— E agora? perguntou o cômico.
— Oh! ele voltará! afirmou ela, carregando os erres, entre
uma baforada de fumo.
E foram deitar-se.
O jovem comendador Cardoso não voltou, e madame d’Arbois
ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família - mulher
e filhos - e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desse
amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico,
inteligente, simpático e generoso!
Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo
durante as trinta primeiras representações, já não atraía o público; o teatro
ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados
à companhia...
A primeira representação da peça que estava em ensaios, a
tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em
benefício do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado
via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais
apareciam todos os dias grandes reclames à “festa artística”, anunciada também
pelas esquinas em vistosos cartazes, onde esse nome — LOPES — se destacava em
enormes caracteres vermelhos.
Chegou a noite do espetáculo. As sete horas e meia as
torrinhas, os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora
depois, a sala transbordava, e todo aquela gente abanava-se com leques,
ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas
batiam com os pés e as bengalas. e dirigiam chufas aos da platéia e dos
camarotes, talvez com a idéia de se vingarem de os ver em lugares menos
incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os
instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as
conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho
ensurdecedor e terrível.
De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta, ao mesmo
tempo em que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então
quase escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado
O......o....oh!.... das torrinhas... Eram nove horas.
Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu
vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns
músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a
ouverture.
Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano
subisse, mas não subiu.
Passaram-se alguns minutos.
Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A
pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o
palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu no proscênio e foi
recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram Psiu! psiu! — e
o barulho cessou.
— Respeitável público, disse o primeiro ator cômico - o
espetáculo não pode ter começo, porque a atriz madame d’Arbois, incumbida de um
dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente
que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia
à minha vontade.
Este cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O
Lopes retirou-se, cumprimentado e agradecendo para a esquerda, para a direita,
para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos
começaram num vozerio atroador.
De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá
entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas, — empregados
da contra-regra, costureiras, etc., — mandadas à procura de madame d’Arbois.
Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela
polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando madame d’Arbois
no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para
quando se anunciasse.
Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator
cômico.
A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão
indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e
promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só
às onze horas pode ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.
Onde estava madame d’Arbois?
No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada
na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de princesa
Briolanja que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do
jovem comendador Cardoso.
— Ah! ah! pensou a francesa com um sorriso de triunfo,
voltou ou não voltou?
E abriu a carta:
“Lolotte — Escreveste-me, pedindo que te perdoasse.
Perdôo-te, mas sob uma condição: deixarás de representar hoje no benefício do
homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais
representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te
no carro que aí te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel
Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficarás em
minha companhia. Se não, não. — Cardoso.
A princesa Briolanla leu e releu este bilhete. Era o
perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando
e comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação feia, provocava um escândalo
inaudito, mas isso que lhe importava, se saía do teatro e ia outra vez estar de
casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?
Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto
coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na
ocasião em que o Lopes desesperado, apelava para a paciência do público.
Ao entrar no hotel, madame d’Arbois perguntou a um criado:
— O comendador Cardoso?
— Não está, mas deixou um bilhete para a madame d’Arbois.
É a senhora?
— Sim, sou eu.
E a desgraçada leu o seguinte:
“Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de
ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. —
Cardoso.
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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