Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do
canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu
amigo Salema.
— Entra. Estava ansioso.
— Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim?
— Um grande serviço!
— Oh, diabo! trata-se de algum duelo?
— Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.
Sentaram-se ambos.
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da
mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre
os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos.
Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.
— Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui
podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus
sobrinhos. Ter-me-ía guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de
uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.
— Estou às tuas ordens.
— Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva
bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?
— Sim, lembro-me... um namoro...
— Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou
em paixão!
— Que? Tu estás apaixonado?!...
— Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto!
— De que modo?
— Casando-me; e tu que hás de pedi-la!
— Eu?!...
— Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me
atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la,
quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular
três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me
nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo
consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: — Vá descansado,
hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: — Vossa Excelência, se me nomear, não
chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas!
— Mas tu a conheces?
— Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e
respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte,
no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de
minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem
sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com
a tua eloqüência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.
— Mas que diabo! observou Salema, - isto não é sangria
desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!
— Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã
para a fazenda da irmã, perto de
Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.
— Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?
— Ah! como todos os namorados, tenho a minha polícia...
Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um
irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a
dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala,
nem estorvará a
conversa.
E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo
sempre: — Vai! Vai! não te demores!
Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva
Perkins.
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada
que o amigo lhe
confiara.
— Que diabo! refletiu ele; não sei quem é esta senhora;
vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino
procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... eles
namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva
Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e
outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um
homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes.
Provavelmente o americano defunto.
Salema esperou uns dez minutos.
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um
móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma
exclamação de surpresa.
Era ela! ela!.. a misteriosa mulher que encontrara, havia
muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o
impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento
indizível, que nunca soubera classificar direito.
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela
mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos
bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas.
Debalde!...
— Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito
naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor?
— Conhece-me? balbuciou Salema.
— Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a
quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu
o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei porque... por
simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem....
lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo?
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se
mais tímido que Minervino, — mas cobrou ânimo, e respondeu:
— Não foi porque não a procurasse por toda a parte...
— Não sabia onde eu morava?
— Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele
sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a
vê-la.
— Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se
abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas
sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo de sua
visita.
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.
— O motivo da minha visita é muito delicado; eu...
— Fale! diga sem rebuço o que deseja! seja franco! imite-me!...
Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...
E apontou para o retrato.
— Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não
há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...
— Minha senhora, eu sou...
Ela interrompeu...
— É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado
público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.
— É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta,
senhora das suas ações e quase rica. Não
tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira,
igualmente viúva. Não percamos tempo!
Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar.
— Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo,
à americana, para lhe ser apresentado.
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da
viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.
— Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo.
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro
cunhado, e disse:
— All right!...
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre
apressado.
— Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito
confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte...
— Ah! aquele moço?... Coitado! não posso deixar de sorrir
quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...
— Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em
casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...
— Deveras?! exclamou a viúva Perkins.
E ei-la acometida de um ataque de riso:
— Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah!
E deixou-se cair no divã.
— Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah!
Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas,
beijou-as, e perguntou:
— Que hei de dizer ao meu amigo?
Ela ficou muito séria, e respondeu:
— Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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