Capítulo I
O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade
de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu
legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de
Deus.
A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”,
deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos
olhos negros e rasgados.
Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se
representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote
e a platéia.
Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado
o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo
de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele - um bonde do Bispo, —
sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andréa.
Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não
continuaram a obra encetada no Lucinda — seria faltar à verdade que devo aos
meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca rua
Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu
namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.
Ele ficou sabendo onde ela morava...
Capítulo II
O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão,
e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã
atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!
Mas — que contrariedade! — as janelas de Dona Andréa
estavam fechadas...
O cavaleiro foi até a rua de santa Alexandrina e voltou —
patati, patatá, patati, patatá! — e as janelas não se tinham aberto...
O passeio foi renovado à tarde, — o tenente passou, tornou
a passar, - continuavam fechadas as janelas...
Malditas janelas!
Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé,
de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!
Mas ao quinto dia — oh, ventura! — ele viu sair do
convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu:
chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.
Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréa. Soube mais
que o marido era empregado público e muito ciumento! proibia expressamente a
senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua.
Soube, finalmente, que havia em casa dois Cérberos: uma tia do marido e um
jardineiro muito dedicado ao
patrão.
Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou
de entregar a dona Andréa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta —
digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada — a resposta não se fez
esperar por muito tempo.
“Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo
satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?...
onde?... quando?... Saiba que sou
guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que
lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo
que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os que se amam,
esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me
dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de
repente. O moleque é de confiança.”
Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio
Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andréa: procurou e
achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da
cozinha do objeto amado.
Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado
todas as vezes que desejava enviar uma cartinha.
Capítulo III
Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa
é esperar por ela.
Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses
suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio
Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!
Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se
epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa,
contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o
tormento daquelas duas almas.
Capítulo IV
Os leitores — e principalmente as leitoras — me
desculparão de não por no final deste conto um grão de poesia: tenho de
Concluí-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é
sacrificada.
O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava
ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.
Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi
encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.
— Que tens tu?
— Ainda mo perguntas...
— Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.
— Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava
de uma saúde de ferro... Pois bem, neste
momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...
— Isso é calor: a tua Andréa não tem absolutamente nada
que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali
à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para
aliviar a cabeça.
O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele
depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água.
Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio
Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andréa,
anunciando-lhe uma carta.
Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete
escrito às pressas.
“A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O
jardineiro foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem depressa, mal
recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”
O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos
começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce
chamado de dona Andréa!
Era impossível também confessar-lhe a causa real do não
comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem...
O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não
fazer outra coisa:
“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a
não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi
esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”
Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca
mais a viu.
Capítulo V
Quando, no dia seguinte, ele contou a Barroso a desgraça
de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperar:
— Vê tu que grande remédio é a água de Janos: um só copo
bastou para aliviar três cabeças!
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