sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Contrabando"


O CONTRABANDO
A Valentim Magalhães


Capítulo I

Geraldo casou-se muito novo, em 1871, aos vinte anos, e enviuvou aos trinta. Solteiro, foi um menino turbulento; casado, era um moço alegre: viúvo, tornara-se macambúzio.

Foi para o pobre rapaz um golpe terrível e esmagador a morte da esposa querida, excelente senhora, bonita e bem educada, mais nova dois anos que o marido. Ele morreria também, se em 1874 não lhes houvesse nascido uma filhinha.

Órfão e sem parentes, Geraldo vive hoje apenas para essa criança, que vai fazer dezessete anos e é linda como os amores. Não a tem consigo, mas no próprio colégio, em que a mandou educar e de onde não a tirou ainda por não ter a quem confiá-la.

Aos domingos almoça e janta com ela, vai pela manhã buscá-la às Laranjeiras, e trá-la para casa em S. Cristóvão, depois de ouvirem ambos a missa das dez na matriz da Glória. À noite, leva-a para o colégio.

Nesses dias a casa do viúvo - o convento, como lhe chamam os vizinhos - transforma-se; as janelas abrem-se, o piano desperta os ecos adormecidos da sala, e há flores por toda a parte. Depois que a menina sai, a casa readquire o seu aspecto sombrio e monástico.

Nos outros dias Geraldo consola-se da ausência de Margarida — é este o nome dela — esquecendo os olhos na contemplação do seu retrato, uma fotografia recente, emoldurada, que enfeita e alegra a parede da sala, por cima do piano.

Infelizmente o viúvo não possui o retrato da morta, mas a filha parece-se tanto com a mãe, que a imagem de uma é bastante para aproximá-lo mentalmente de ambas, e confundi-las no mesmo carinho e na mesma saudade.

Geraldo é funcionário público. Ergue-se muito cedo, toma seu banho frio, lê os jornais e almoça. Depois do almoço vai para a repartição, de onde sai às três horas. Atravessa vagarosamente a rua do Ouvidor, parando defronte das vitrines, sem falar a ninguém, cumprimentando apenas os raros conhecidos que encontra. Às cinco horas está em casa; janta, acende um charuto - fumar é o seu único vício – e vai passar duas horas sentado numa poltrona, contemplando o retrato da filha. Às oito horas recolhe-se ao gabinete e lê até às onze. Deita-se então, e pega imediatamente no sono. Às vezes, vai buscar Margarida, leva-a ao teatro lírico, e acompanha-a ao colégio depois do espetáculo, - mas isso é raro.

Além dele, há em casa uma cozinheira que dorme fora, e um fâmulo português, o José, homem de confiança, que acumula as funções de criado de quarto, copeiro e jardineiro. Geraldo faz questão do jardim por causa dos domingos: Margarida gosta de flores.


Capítulo II

Estamos numa tarde de março de 1891. Geraldo dá um dos seus passeios habituais pela rua do Ouvidor; para defronte da vitrine do Preço Fixo, e sente alguém pousar-lhe a mão nos ombros. Volta-se, e reconhece o Tavares, que fora seu condiscípulo no colégio Marinho, — um grande estróina que se ensaiou sem resultado em três ou quatro profissões diversas, e tem agora muito dinheiro, ganho na rua da Alfândega em transações da Bolsa.

— Oh, Geraldo, andava morto por encontrar-te! Ia escrever-te amanhã...

— Estou às suas ordens.

— És ainda muito urso?

— Sou e serei. Bem sabes que há dez anos, desde que perdi minha mulher, perdi também toda a alegria, é só me comprazo na solidão e no silêncio. Se me encontras na rua do Ouvidor, é porque, depois de azoinado por este bulício, acho ainda mais deliciosa a paz do meu tugúrio.

— Bem, mas vais sacrificar-me um dia, um dia só, desse isolamento com que comprazes: hás de jantar comigo quinta feira.

— Eu?!

— Tu, sim; nesse dia faço quarenta anos, e quero reunir à mesa alguns
amigos da minha idade.

— Sabes lá o que dizes, desgraçado! Os meus quarenta iriam ensombrar os seus! Pois queres à tua mesa contemplativo, um urso, como tu mesmo me classificas?

— Faço questão da tua presença!

— Não! não vou! não contes comigo! Há dez anos janto sozinho, ou, quando muito, em companhia de minha filha!

— Há dez anos que não jantas...

— Gosto de ti, sou teu amigo, considero-te muito, mas não terei o menor prazer neste jantar de anos.

— Oh, grande tipo, sê misantropo, mas — que diabo! — não sejas desse modo egoísta! Não se trata do teu prazer mas do meu, entendes tu? Exijo um sacrifício de tua parte, bem sei; mas, como te declaras meu amigo, tens o dever de te submeteres à minha vontade! Vens a contra gosto?... que me importa!... o essencial é que venhas! Quem te mandou ter quarenta anos! Agüenta-te!


Capítulo III

Na quinta feira aprazada Geraldo saiu da repartição às horas do costume e foi direto para casa. Não se calcula o espanto da cozinheira e do José quando o patrão lhes disse: Janto hoje fora.

O macambúzio foi ao seu quarto, mudou de roupa, lançou um olhar saudoso ao retrato da filha e saiu.

Uma hora depois entrava em casa de Tavares, em Botafogo, e caía-lhe a alma aos pés: na sala, sentados aqui e ali, fazendo roda ao dono da casa, estavam quatro sujeitos e cinco mulheres elegantemente vestidas, empoadas, pintadas e cheias de jóias e brilhantes.

Geraldo estacou entre os umbrais da porta e teve um movimento retroativo em presença de tantas cocottes; mas o Tavares desprendeu-se dos braços de uma delas, a mais bonita, e foi buscá-lo com um abraço.

— Bravo! Cá está o homem! Agora não falta mais nenhum! Estão reunidos seis amigos de quarenta anos. Nascemos todos em 1851. — Conhecem-se?

Dos quatro sujeitos, Geraldo apenas conhecia um, o Eduardo Távora, doutor em medicina, que fora também seu condiscípulo no colégio Marinho. O Tavares apresentou-lhe os outros: o visconde do Sabugal, opulento banqueiro que há seis anos ainda era moço de padaria, — o doutor Bandeira, advogado, — e o Mora, um rapaz português, muito ativo mas muito pândego que tinha deitado fora duas fortunas, e desfrutava agora a terceira, que era a maior.

Seguiu-se a apresentação das cocottes. O Tavares principiou pela mais bonita: — Mademoiselle Georgina, madame Tavares até amanhã ali pelas onze horas o mais tardar; uma parisiense que nunca pôs os pés em Paris; nasceu e cresceu em Bordeaux, e de lá veio o ano passado, contratada para as Folie-Bergères do beco do Império. Não fala uma palavra de português e não tem medo da febre amarela.

Geraldo cumprimentou mademoiselle Georgina com muito acanhamento.

— Conchita e Mercedes, ambas  espanholas de Buenos Aires, como a outra é parisiense de Bordeaux, - duas moscas varejeiras, atraídas pelo mel do Encilhamento dos macaquitos. — A sinhá paulista que deu a volta a todas as cabeças em São Paulo e está conquistando todos os corações na Capital Federal. — Angelina — chapeau bas!, — a italiana mais bonita que tem pisado nas terras de Santa Cruz!

E baixinho, ao ouvido de Geraldo:

— É das nossas. Nasceu também antes do golpe de Estado...

O viúvo estava atônito. Ele apertara a mão às cinco mulheres, e cada uma delas lhe impregnara um perfume diverso.

Chamou Tavares ao vão de uma janela, e disse-lhe:

— Armaste-me uma cilada. Vou fazer triste figura entre essas tipas. Não sirvo para isto.

— Ora deixa-te de luxos! Que mal podem elas fazer-te?

— Nenhum.

— Mandei buscá-las para enfeitarem a mesa. Faze de conta que são flores...

— Que flores!...

— Elas são cinco e nós somos seis. Sobra um, que és tu. Uma vez que o gênero não te agrada, fica isolado. Tua alma tua palma.
  
Às sete horas passaram todos à sala de jantar. Os cavalheiros deram os braços às damas. Geraldo ia sozinho, no couce desse batalhão de Cythera.

A mesa, uma mesa circular, de doze talheres, resplandecia entre flores e frutos, numa profusão de luzes que se refletiam nos cristais multicores.

O Tavares sentou-se entre a francesa e a italiana; o visconde ficou entre esta e Conchita, e junto da Conchita o Mota, e ao pé do Mota o nosso Geraldo que deixou entre si e a Mercedes uma cadeira vazia; junto da Mercedes ficou o doutor Bandeira, tendo à sua direita a sinhá e entre esta e mademoiselle Georgina tomou o lugar o doutor Távora.

O Mota protestou contra a cadeira vazia:

— Isto não está direito: somos seis homens e cinco senhoras!

— Estamos no Paraguai! exclamou o doutor Távora.

— Uma sensaboria, obtemperou Tavares, madame Bertin ficou de trazer seis raparigas e só trouxe cinco. Eu pu-la imediatamente a andar, e disse-lhe que não voltasse aqui sem a sexta. Conto que a traga. Se vier, há de sentar-se ali entre o Mota e o Geraldo.

Acabada a sopa, discretamente regada por um delicioso Madeira seco, abriu- se uma porta e apareceu na porta a figura encarquilhada da tal madame Bertin, uma francesa que brilhou entre o mulherio galante do Rio de Janeiro de 1855 a 1860, e exerce agora a ignóbil profissão de medianeira de amores fáceis.

A entrada da velha foi ruidosamente acolhida com palmas batidas por vinte mãos, que vinte e duas seriam se Geraldo não se abstivesse dessa manifestação.

— Mas que é isto?... a senhora veio só?!... perguntou o Tavares, arregalando uns olhos furibundos.

— Não; ela está na saleta; é ainda muito acanhada.

O Tavares ergueu-se e foi à saleta. Voltou, conduzindo pela mão uma rapariga morena, muito envergonhada, com os olhos postos no chão, e tão nova, tão nova, que certamente não tinha ainda vinte anos.

— Foi o que pude encontrar, ponderou madame Bertin durante a curta ausência do Tavares.

— Passa para a outra cadeira, disse logo o Mota a Geraldo; a pequena deve ficar sentada entre nós dois. Entretenha-se o amigo com ela, porque eu cá estou muito ocupado com a Conchita.

Geraldo obedeceu enfiado, e o Tavares conduziu a recém chegada até a cadeira vazia.

— Quanto à senhora, disse o Tavares retomando o seu lugar e dirigindo-se a madame Bertin, vá lá para a copa; coma e beba à vontade!

— Sim, aduziu o visconde; aqui não há lugar para mais ninguém... não queremos ser treze à mesa...

— E demais, acrescentou o Mota, não podem tomar parte neste jantar pessoas que tenham mais de quarenta anos.

Todos se riram e madame Mertin desapareceu.

Depois dos dois primeiros pratos, acompanhados  o primeiro por um rico Sauternes e o segundo por um riquíssimo Pommard, notou Geraldo que cada um dos comensais se ocupava muito particularmente de uma das suas vizinhas. O Tavares bebia pelo copo de mademoiselle Georgina. O doutor Távora passara o braço em volta da cintura da sinhá.  O advogado segredava não sei o que ao ouvido da Mercedes, que revirava languidamente os olhos. O Mota cantarolava um trecho de zarzuela, tamborilando nas costas de Conchita. O visconde, que se queixava do calor, entrelaçava os dedos nos de Angelina. Só Geraldo e a última chegada se conservavam sisudos, como se assistissem a um banquete de muita cerimônia.

— Então que é isso, Geraldo? vociferou o Tavares. Não dizes palavra a essa pobre moça?... não lhe fazes a corte? Sê romano em Roma, meu velho! Esquece-te dos teus velhos desgosto! Transforma-te!

Geraldo, efetivamente, começava a sentir a necessidade de transformar-se, para não ser ridículo.

— Como se chama? perguntou à sua vizinha, num tom de voz brando e carinhoso.

— Laura.

— É filha mesmo daqui?

— Sou de Resende.

— Já não tem pai nem mãe?

— Ânimo, Geraldo! vociferou o Tavares.

— Tenho mãe; meu pai morreu quando eu era pequenina.

— Vive em companhia de sua mãe?

A moça estranhou a pergunta, e volveu para o seu interlocutor uns olhos muito espantados. Depois caiu em si, refletiu que a curiosidade do outro era uma coisa muito natural, e respondeu:

— Não, senhor.

— Com quem vive então?

— Vivo sozinha. Eu era casada, mas deixei meu marido.

— Por que?

— Porque não gostava dele. Mamãe obrigou-me a casar contra a vontade. Eu gostava de um moço que me tirou do meu marido, me trouxe para o Rio de Janeiro  
me abandonou no hotel. Não conheço ninguém nesta terra e se não fosse madame
Bertin...

A conversação continuou por algum tempo, nesse terreno simples e inocente; continuaria ainda se o punch à la romaine que no menu, delicadamente impresso em ventarolas de seda, figurava como o coup du milieu, não se combinasse com o Madeira, o Sauternes e o Pammard para a transformação de Geraldo. Porque,  digamo-lo, o nosso viúvo, como todos os homens melancólicos, gostava de fazer honra aos bons vinhos.

Às nove horas, quando estourou a champanha, todos os convivas, inclusive a bisonha Laura, fumavam magníficos cigarros egípcios, - “dos que fuma o quediva”, observava o Tavares, que não perdia ensejo de encarecer os eu regabofe. A sala enchia-se de fumo. O doutor Bandeira e a Mercedes beijavam-se descaradamente.

A sinhá, para ficar mais à vontade, pedia ao doutor Távora que lhe desabotoasse o corpinho. O Tavares ia buscar com os lábios as uvas que mademoiselle Georgina prendia entre os dentes, e dizia-lhe umas coisas num francês capaz de fazer tremer de indignação a sombra de Bossuet. O Mota, embriagado, recostava-se no colo da Conchita, que o penteava com os dedos. O visconde, que se pusera em mangas de camisa, abraçava, voluptuosamente a italiana, e gaguejava um brinde “ao nosso Anfitrião”, brinde a que ninguém prestava ouvidos. Geraldo e Laura, de mãos dadas, faziam protestos de não se separarem naquela noite.


Capítulo IV

Às onze horas, quando os convivas se levantaram da mesa, Geraldo, ébrio de vinho  e de volúpia, apoiou-se à cadeira para não cair. Foi para a saleta, e Laura acompanhou-o até um divã, onde se sentaram, ambos, de mãos dadas, ele saboreando um havana, ela fumando, por obrigação, desajeitadamente, outro cigarro dos que fuma o quediva.

O visconde e os doutores desapareceram com as vizinhas respectivas. Só ficaram Geraldo e o Mota, — tão bêbado este, que o Tavares mandou preparar-lhe o quarto de hóspedes. Conchita afetuosa e solícita, ofereceu-se para fazer-lhe companhia durante a noite.

O Tavares aproximou-se de Geraldo, a rir-se: 

— Deitaste as manguinhas de fora, hein, meu santarrão?

Geraldo limitou-se a sorrir, lançando uma baforada de fumo.

— Olha, eu quis ser gentil para contigo, continuou o Tavares; mandei aparelhar a vitória, para acompanhares a pequena à casa dela... ou à tua...

— À minha, redargüiu Geraldo; ela já me disse que ainda não tem casa...


Capítulo V

Quando a vitória de Tavares se pôs em movimento, conduzindo Laura e Geraldo, este bafejado pelo ar fresco da noite, foi pouco a pouco recuperando a consciência nítida dos seus atos, e medindo toda a extensão dos excessos a que se entregara.

Sinceramente arrependido de ter aceitado o convite do Tavares, comparecendo a um jantar que degenerara em orgia, achava agora um incômodo trambolho a infeliz rapariga que ali ia atirada no fundo daquele carro, com as pálpebras cerradas, ignobilmente vendida à concupiscência.

Perdera de súbito aquele desejo que à mesa lhe despertara os sentidos; achava-se paternal junto dessa mulher, e velho demais para ela, que era quase uma criança.

E lembrava das histórias que Laura lhe contara durante o jantar: o seu casamento, a sua fuga, a sua desgraça; e o coração enchia-se de piedade e azedume. Tudo aquilo devia ser verdade; ela não tinha ainda o feitio da cocotte, era ainda noviça na profissão: não devia saber mentir.

E Geraldo perguntava aos seus botões:

— Que vou eu agora fazer desta pequena?... 

Depois, lembrou-se da última vez em que andara de carro. Havia já alguns meses. Foi uma noite em que levara a filha aos Huguenotes e teve que restituí-la ao colégio depois do espetáculo. Como ameaçava chover, tomaram um carro no largo da Carioca. Margarida ia assim, como Laura, atirada para o fundo do carro, com as
pálpebras cerradas...

— Valha-me Deus! que vou eu agora fazer desta pequena?...


Capítulo VI

À uma hora, Geraldo apeava-se do carro e batia à porta de casa.Veio abrir-lhe o José, que esperava a pé firme, e notou, surpreso, que o patrão viera acompanhado por uma mulher. A princípio supôs fosse a menina, que tivesse ido com o pai ao teatro e uma circunstância qualquer impedisse de voltar para o colégio, — mas qual não foi o seu espanto ao ver que se tratava de um contrabando, o primeiro que entrava naquela casa!

— Pode recolher-se, disse Geraldo.

O criado sumiu-se, e o patrão abriu a porta da sala, convidando Laura a entrar.

Entraram, e ele imediatamente acendeu o gás.

A rapariga olhou com curiosidade em volta de si e o retrato de Margarida chamou-lhe logo a atenção.

— Que moça tão bonita e simpática! exclamou. Parece uma santa! — Quem é?

— Minha filha.

— Sua filha? Que idade tem?

— Dezessete anos.

— Tem a minha idade.

Geraldo estremeceu.

— Tem também dezessete anos?

— Nasci em 1874.

— Sim... e em que mês?

— Em abril... no dia 27 de abril.

O viúvo empalideceu e ficou a olhar para a rapariga com uma expressão singular. Depois sorriu, pareceu refletir, foi ao seu quarto, abriu um guarda roupa, e tirou do gavetão uma camisa de mulher que ali estava religiosamente guardada havia dez anos. com outras roupas que eram o espólio sagrado da morta.

— Aqui tem uma camisa de dormir. Dispa-se e deite-se.

Laura ficou sozinha no quarto. Ele esperou que ela se despisse e se deitasse, trouxe para a sala as suas roupas úmidas e estendeu-as nas cadeiras para secarem, apanhando o ar que entrava timidamente pelas venezianas.

Tornou à alcova. Laura estava deitada. Tinha vestido a camisa. Bocejava. Parecia morta de sono. Geraldo cobriu-a com um lençol, e perguntou-lhe:

— Gosta de dormir com luz?

— Gosto.

Ele acendeu uma lamparina e apagou o gás. Depois, aproximou-se da cama, abaixou-se, beijou a sua hóspede na fronte, e disse-lhe:

— Boa noite, Laura; durma bem.

— Oh!... então o senhor não se deita comigo?...

— Não.

— Por que?

— Porque você nasceu no mesmo dia em que nasceu minha filha.

Ela compreendeu, ficou muito triste e murmurou:

— Boa noite.

Geraldo foi para a sala, despiu-se e deitou-se no canapé. Refletiu que Laura iria talvez fazer mau juízo de sua virilidade, e espalhar por aí que ele não era um homem. Um instante quis erguer-se para justificar-se positivamente... Mas não; separava-os aquela data: 27 de abril de 1874; seria quase um incesto! Adormeceu e passou toda a noite no canapé.

Levantou-se pela manhã, foi à alcova, e encontrou Laura acordada. Indicou-lhe a toilette num quarto adjacente, e levou-lhe as roupas que ficaram na sala a secar. Depois, serviu-lhe uma xícara de café com leite e biscoitos.

Às oito horas e meia, Laura estava vestida. Geraldo chamou o José e deu-lhe ordem para acompanhá-la até a sua casa. Quando ela ia sair, ele meteu-lhe nas mãos um envelope contendo uma nota de cem mil réis, beijou-a na fronte, e disse-lhe:

— Adeus, minha filha.

E pôs-se à janela, e acompanhou-a com a vista até vê-la dobrar a esquina, com muita pena de não poder tirá-la para sempre daquela vida.

Depois, foi contemplar o retrato de Margarida.


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Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901

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