ATRÁS DA
CATEDRAL DE RUÃO
Às vezes, até mesmo com pessoas presentes, lhe acontecia aquela sensação “afrosa”, como diriam as meninas, na meia-língua franco-brasileira que se davam agora por divertimento. E as duas garotas pararam a leitura, percebendo a quarentona estremecer. Se entreolharam. Alba perguntou, meia curiosa mas também já meia irônica por causa das manias da professora:
−
Est-ce que vous avez froid par cette chaleur?...
−
Non, ma chère enfant, je...
Hesitava,
iniciando uma daquelas reticências que punham sempre as três tão fogosamente na
proximidade do perigo. Lúcia ajudou, tomando ar maternal:
− Voulez-vous quelque chose?
− Non! non! non!... je... il
faut bien que je vous fasse une confidence, mes petites amies, ah! ah! ah!...
E
ria numa das suas risadas atuais, completamente falsas, corando com volúpia nas
faces pálidas, sem rouge, a que a camada vasta do pó-de-arroz não disfarçava
mais o desgaste. Era o jeito que tinha de não dar nenhuma importância ao que as
três pressentiam ser importantíssimo. Afinal pôde continuar, entre confusa e
misteriosa, dando de ombros:
− Il y a des jours où je sens
à tout moment qu’un... “personnage” me
frôle!
E
acentuava o “personnage”, que repetia sempre num nojo despeitado. Mas Lúcia:
−
Ça vous fait mal!
−
“Mâle”, ma chère enfant, “mâ-le”. N’égratignez pas vos mots comme ça. “Mâ-le”.
Mas
logo um gritinho de surpresa:
−
Oh! je vous demande pardon, Lúcia! Je me suis trompée de lisière! Vous avez
parlé du Bien et du Mal, j’ai pensé que vous parliez du maléfice des hommes,
ah! ah! ah!...
E
ria bem-aventurada.
Dona
Lúcia se acaso soubesse o que estava se passando agora, decerto não retomava
Mademoiselle para professora das filhas. Fora mais longe: na caridade viciosa a
que transportara a sua pobre vida cortada, fizera da solteirona uma espécie de
dama-de-companhia das filhas. Lúcia e Alba estavam quase moças, dezesseis e
quinze anos desenvoltos, que a viagem desbastara demais, jogadas de criada em
criada, de colégio em colégio, de língua em língua, de esporte em esporte.
Seria injusto afirmar que sabiam tudo e mesmo ignoravam coisas primárias,
fáceis de saber, mas que nunca as surpreenderam naquele aprendizado da malícia,
feito ao léu do acaso. Mas isso elas compensavam por um saber em excesso de
coisas imaginosas e irrealizáveis, que ficaríamos bem estomagados de saber,
nós, usadores do mundo.
Além
do inglês e do alemão em que Mademoiselle nem de longe podia agora competir com
elas, voltavam falando um francês bem mais moderno e leal que o da professora,
estagnada no ensino e nas suas metáforas suspeitas. “N’égratignez pas les mots
comme ça!”, Mademoiselle vinha com irritação, ciosa da sua pronúncia. Ou, no
horror incontrolável aos cotovelos, saltava: “Effacez vos coudes, mon enfant!”
E agora mais que nunca ela “se trompait de lisière” – o que tinha uma história.
Não vê que desde a infância Mademoiselle cantava uma canção antiga em que
Lisette, indo em busca da primeira “paquerette” da primavera, topa com um
cavaleiro na lisière du bois. Está claro que o cavaleiro tomava Lisette na
garupa e sucedia ser um príncipe trali-lan-lère, trali-lan-la. Mademoiselle já
tinha trinta anos feitos no Brasil, quando naquela vida mesquinha de lições e
pão incerto, principiou se inquietando com a “paquerette” que ela estava
desleixando de colher na primavera. Preocupação não muito grande, porque ela
ainda se sentia moça na higiene excessiva do corpo e a blusinha professoral,
alvíssima, cheia de rendas crespas. Um dia porém, sem querer, cantarolando a
sua canção, no momento em que alcançou a lisière, Lisette parou sufocada, sem
poder mais cantar. O que houve? o que não houve? Mademoiselle ficara assim,
boca no ar, olhos assombrados, na convulsão duma angústia horrível. Nem podia
respirar. Quando pôde respirou fundo, era mais um suspiro que respiro, e não se
compreendeu. Naquele tempo ainda não podia “se sentir muito freudiana, hoje”,
como as meninas vieram da Europa falando. Mademoiselle apenas não se
compreendeu. Porém nunca mais que se lembrou da canção, nunca mais que a
cantou. Poucos dias depois ela principiava a “se tromper de lisière” a cada
confusão que fazia. E eram muitas as confusões.
Das
melhores fora aquela quando se encontraram todas em Paris, porque Mademoiselle,
cheia de apreensões, emprestara um dinheiro e partira na esperança de dizer o
último adeus à mãe cardíaca. Mademoiselle chegou agitadíssima no palace, foi
sentando esbaforida, “oh, mes enfants!”, esquecida até das alegrias do
encontro. É que estava no hol do seu hotelzinho quando entrou um homem de
cartola, cavanhaque, fraque, óculos escuros, o cavanhaque era pointu, pointu!
Je me suis dit: Ce personnage vient tuer quelq’un. Il monta au salon, pas une
minute ne s’était passée, nous entendimes les cinq coups du pistolet. Dans le
ventre! E se auxiliou desvairada do gesto homicida: “Poum! poum! poum! et
poum!...” Olhou dona Lúcia, olhou as meninas, assustada, indecisa. E numa das
reconsiderações leais, de quando se enganava de lisière: J’ai manqué un poum:
ça fait cinq.
Dona
Lúcia achava graça em Mademoiselle. Quer dizer, talvez nem achasse graça mais,
toda entregue altivamente ao seu drama e à representação discreta da
infelicidade. As crianças ainda tinham ido com pai à Europa, um pai longínquo, surgindo
raro na família e quase sem as enxergar. O dia em que partiram de Paris para os
seis meses na Escócia, dona Lúcia lhes contou que o pai fora viajar também,
noutra direção. Depois acrescentara pensativa que ele tinha muito negócio, a
viagem decerto era comprida... E acabou decidindo que as filhas não deviam
reparar na ausência do pai. Só por isso é que elas repararam. Mas tinham apenas
dez anos de vida reclusa em São Paulo, nem sequer estimavam o pai: acharam meio
esquisito e veio um malestar. Apenas se sentiram mais sozinhas e lhes passou no
espírito uma nuvem interrogativa, um floco. Não decidiram nada, mas cinco anos
de viagens, colégios, camelos, freiras, Dinamarcas e Palestinas, quando
voltaram não supunham mais um pai. Dona Lúcia é que resolvera ficar eternamente
infeliz e ficou.
Mademoiselle
fora das primeiras pessoas que visitaram as recém-chegadas. Tivera um surto
inadequado de lágrimas que até divertira as meninas. Se abraçara muito com
elas, soluçando “mes PAUVRES enfants!”, com que ênfase no “pauvres”! Dona Lúcia
até não conseguiu guardar o gesto de impaciência, e a professora envelhecida
ficara muito reta na cadeira, envergonha-da do arroubo anacrônico, aproveitando
o esforço das outras visitas no reerguer da conversa, pra consertar a
polvadeira lívida do rosto que as lágrimas listravam.
Estava
mais destratadinha agora, isso via-se, as lições cada vez menos numerosas. Dona
Lúcia voltava de alma fatigada, maternidade incorreta que aquele vaivém de
colégios e hotéis transformara quase num dever. Adorava as filhas, mas era o
êxtase inerte das adorações nacionais. Preferia se meter nas obras de caridade
que a emolduravam de beatas de preto, muito deferentes com a ricaça. As meninas
estavam mocinhas, carecendo mesmo de alguém, quase uma preceptora que as
acompanhasse em festas, visitas, lhes tomasse conta da educação. E assim
ajudavam Mademoiselle, coitada.
E
Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas crespas, caíra naquele
mundo mágico de anseios que era o das duas adolescentes, como conversaram! Como
viajaram e viveram experiências desejadas, aqueles primeiros dias! Mademoiselle
soltava petits cris excitadíssima, pedindo mais detalhes, detalhes, ces
norvégiens! e esses catalães, e os árabes, les touaregs!...
−
Mais nous n’avons pas vu les touaregs, Mademoiselle. E ela, ar de mistério,
sacudindo o dedo profético no ar:
−
Heureusement pour vous, mes enfants!
Assim
nascera em poucos dias um entrejogo de reticências e curiosidades malignas que
agora devastavam a professora. Tudo não passava duma ceva divertida de quase
imoralidade para as meninas. Um fraseio sem pontos finais, farto de “vous
comprennez”, de “vous savez”, de “n’est-ce pas?”, em que era sempre
Mademoiselle a imaginar imoralidades horrorosas, esbaforida de sustos.
Na
viagem do Mediterrâneo:
−
… Mme. de Lavellais avait un petit mousse qui venait tous les jours dans sa
cabine
pour frotter son parquet.
Alors… il fallait voir ça, Mademoiselle! ce qu’il frrrottait conscieusement!
−
Ah, ah, ah, ela vinha com o seu riso de disfarce: p’tite rabelaisienne,
taisez-vous...
As
meninas inventavam palavras para se conversar diante dos outros. Eram como
onomatopeias pressentidas, sem nenhum sentido nítido, próprias daquele mundo
vago em que viviam.
− Vous savez... Nous avons
entendu aujourd’hui une conversation entre une femme et son mari…
−
Oh, mes enfants, interrompia: vous avez une curiosité très maladive! Je sais
parfaitement quelles sont les conversations entre une femme et son mari,
voyons! C’est quelque chose de honteux.
−
Je voudrais bien savoir ce que c’est “tarlataner”. Ils parlaient tout le temps
de “tarlataner”, de “haut tarlatanage”...
−
Alba!... Ne prononcez jamais ce verbe intransitif! C’est très vulgaire.
Vivia
resfriada na exigência das blusas brancas. Chegava afrosa, nariz vermelho,
pingando. Lúcia lhe propunha logo um chá, mas com bastante rum pour avoir des
rêves.
−
Je ne veux pas de rêves! ela rufava as rendas, gritandinho, je ne veux pas de
rêves! Les chats me suffisent!
E
pressentira uma vergonha que a inundava de remorsos felizes. Pra que contara o
seu olhar na janela enfrestada do quarto, o ouvido, a cara toda enfim na
umidade de setembro, aprendendo o esperanto fácil dos gatos da noite? J’attrape
mes rhumes à cause de ces chats... E se resfriava inda mais, devorando
homeopatias. Nos seus quarenta e três anos de idade, Mademoiselle estava tomada
por um vendaval de mal de sexo. Não se compreendia, nunca tivera aquilo em sua
virgindade tão passiva sempre. Amara sim, duas vezes, mas nunca desejara.
Agora, as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de
experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle. E
Mademoiselle estava... só um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava:
Mademoiselle estava no cio.
O
vendaval. Ela sentia masculinos, “ces personnages” que a frolavam no escuso do
quarto, na fala das meninas, na desvirginação escandalosa das ruas. Agora
Mademoiselle anda de a-pé e procura no jornal onde é o lugar de encontro das
multidões. Mas não vai lá, tem medo. Não é feliz, mas também não pode-se dizer
que ficasse infeliz, Mademoiselle estava gostosa. E nessa paciência
compensadora dos tímidos, ela ia saborear todos os dias nas conversas com as
meninas um naco elástico dos gozos que em pouco elas irão viver. Quase sempre
era assim mesmo: era ela a concluir em malícia as frases inventadas pelas
alunas, que por certo ficariam muito atrapalhadas se a quarentona as deixasse
continuar o que inventavam até um fim inexistente e sequer pressentido.
−
Un après-midi nous avons vu un homme avec une barbe, vous comprennez... derrière
la cathédrale de Rouen... Alors, vous comprennez...
−
Ma chère enfant, j’estime que vous allez trop loin. Je vous défends de
continuer! E decisória, pxx: Ce qui se passait derrière la cathédrale de Rouen,
voyons! se passe derrière toutes les cathédrales!
Mas
não só ela concluía assim as investigações das meninas. Era ela mesma a propor
os assuntos mais salgados. E quando os propunha, chegando o instante da
verdade, sem coragem pra continuar, ela exclamava o “quelle sottise” e
reticenciava mais claro que tudo:
−
Et alors… c’était comme derrière la cathédrale de Rouen.
A
catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que contava a
catedral. Mademoiselle arranjava as rendinhas, agitada. Alba esperando, se
entregara ao cacoete favorito, aquela mania desagradável de dobrar o pulso,
forcejando pra tocar o antebraço com o polegar. Mademoiselle volta à vida, com
a irritação:
−
Alba, pourquoi faites-vous ça...
E
a menina, entre envergonhada e atacante:
− Excusez-moi, Mademoiselle...
c’est de la cochonnerie.
− Cochonnerie!
Aquilo
a espantava enfim. As meninas andavam empregando “cochonnerie” sem o menor
propósito. Alba trocou o olhar preventivo com a mana, mas contendo o riso, se
escondeu numa inocência espantada, afirmando que a professora mesmo é que
dissera serem “cochonneries” as coisas inúteis.
−
Moi, mon enfant!
−
V’oui! le jour que les ouvriers se donnaient la main!
O
caso é que três dias antes elas liam no jardim aproveitando o solzinho raro
daquele setembro chuvoso e passara na rua um casal de operários se dando a mão.
Decerto o rapaz estava querendo dizer coisas bem íntimas, porque a moça
procurava se desprender, ambos forcejavam e riam numas gargalhadas que
enfeitaram toda a rua. Mademoiselle saiu da leitura e se perdeu, seguindo os
namorados com os olhos e a vida. As meninas também tiveram a atenção chamada
pelos risos, mas percebendo o que era, apenas dois namorados, quiseram voltar à
leitura geográfica lhes contando coisas mais novidadeiras. Mas o perdimento de
Mademoiselle despertou a vontade de maliciar. Alba disse:
−
Qu’est-ce qu’ils font?
Mademoiselle
corou vivo e trouxe os olhos para as duas. Mas assim pegada em pecado não lhes
aguentou o olhar agudo, já rindo muito. Quis disfarçar, arranjando a rendinha,
e murmurou o mais inocente que pôde fingir, uma resposta que considerou
perfeita:
− Ils se donnent la main. Mas Lúcia no sufragante:
−
Pour quoi faire!
Mademoiselle
fitou indignada a menina. Chegou a estremecer na visão. Pois elas bem não
tinham visto o que se passara atrás da catedral de Ruão! Deu um daqueles
muxoxos, meio nojo, meio desnorteamento, que lhe mereciam todas as cochonerias
dessa vida:
−...
pour quoi faire... pxx!...
Alba
e Lúcia a examinavam deliciadas. Mademoiselle fazia força pra se acalmar, pour
quoi faire... Ela bem sabia que não se deve deixar perguntas de criancinhas sem
resposta. Era melhor fingir desinteresse por aqueles dois “personnages
gluants”, se dando a mão com tanta imoralidade. E voltou ao livro enquanto
ainda sussurrava só consigo, aturdida, “pour quoi faire”...
A
leitura continuou, e as meninas se engolfaram nela, num átimo esquecidas do
incidente que não rendera bastante. Mas Mademoiselle eis que fechava o seu
livro de supetão e o põe com ruído na mesinha. A olharam numa surpresa que logo
se transformou em assombro quando viram a cara da mestra. Naquela calma
veludosa de paz Mademoiselle estava completamente transtornada, olho em
desvario pulando de Lúcia pra Alba, de Alba pra Lúcia, boca entreaberta num
esgar, as rugas fantasistamente se mexendo.
−
Laissez votre livre de coté, mes enfants! Lá, sur le banc!
As
meninas obedeceram maquinais, sem vontade nenhuma de rir, preocupadas. Mademoiselle ordenou:
− Donnez-vous la main! Non!
pas comme ça, pxx! n’éparpillez pas vos doigts! Oui! c’est très bien!
As
meninas não ligaram logo o caso, estavam mas assombradas. Passou um tempo.
Mademoiselle afinal exclamava, cheia da vitória:
−
Et bien!?...
Não
sabiam o que se passava, já meio hirtas agora, garantidas que se se olhassem
não aguentavam, caíam na gargalhada.
−
Et bien! Mademoiselle as incitava no triunfo: Avez-vous bien réfléchi?
−
Je ne sais...
−
Taisez-vous! Dites! Vous voilà la main dans la main, tout à fait comme
(mastigava sílaba por sílaba, no desprezo colérico) comme ces deux personnages
qui se promenaient tout à l’heure, dites! Qu’ est-ce que vous sentez, dites!
−
Mais...
−
Taisez-vous!
Alba,
menos capaz, acabou com aquela bobagem:
−
Moi, je ne sens rien.
−
Et vous, Lúcia! dites! Vous êtes plus agée que votre soeur, vous devez sentir
quelquer chose! triunfante, triunfante.
Mas
Lúcia, um bocado irritada, se desprendeu da irmã, dando de ombros. Irritada
apenas? Lhe seria impossível se compreender naquela desilusão apreensiva, que a
deixava numa vaga esperança de chorar. Mademoiselle estava soberba, muito
esguiazinha, magistral. Revelou, se sentindo absolutamente dominadora:
− Voilà. On ne sent rien, vous
savez! Il y a des gens ignorants qui font ces cochonneries inutiles, mais on ne
sent rien, mes enfants, on ne sent absolument rien. Retournons à notre géographie.
De-noite,
quando se arranjavam pra deitar, entrava o ar pesado, oleaginoso, de rosas.
Alba se olhou muito no espelho, sentada. Estava velha, com medo. Suspirou fundo
e de repente se enforcou com ambas as mãos. Veio descendo com elas pelo corpo,
pelos seios nascentes, como naquela página do Médecin malgré lui em que
Mademoiselle escrevera em vermelho “page condamnée” pra que as alunas não
lessem. Lúcia, escutando o suspiro, chegou-se pra irmã. Alba recusou vivo o
contato, mas lhe veio a frase diária, pra se desculpar da grosseria:
−
Me sinto freudiana, hoje... Acho que vou sonhar tarlatanagens.
Lúcia
censurou:
−
Olhe, Alba, você carece acabar com essas histórias... Você anda muito
complexenta demais.
Mas
perdoou logo. Deu um piparote nos cabelos pesados da mana:
−
Cochonneries inutiles.
Caíram
na risada as duas. E tanto as cochonneries como as cochonerias tarlatanaram daí
em diante no arrulho dúbio delas.
Mademoiselle
ficara tonta com a referência de Alba ao casal de operários. Recordou
imediatamente a cena de que se saíra com tanto brilhantismo, imaginava. Pois
Alba compreendera que o que faziam os dois namorados eram “cochonneries
inutiles”! Estava desnorteada porque les cochonneries ne sont pas inutiles,
evidemment! reconhecia no íntimo, imaginando como sair da enrascada. Enxugou
lerdo o nariz. Desistiu. Confessou devagar, pesando as palavras, conciliatória:
−
Ma chère enfant... il ne faut pas dire des choses inutiles que ce sont des
cochonneries, par exemple!... Les cochonneries sont... des cochonneries! E
exaltada de repente, se sacudindo toda: S’embrasser sur la bouche, voilà une
cochonnerie! Une chair vive contre une chair vive, pxxx!
Se
ergueu pra partir. Tinha que ir à farmácia homeopática, tomar dois bondes, e o
Angélica dava uma volta enorme até chegar na praça da Sé, se desculpou. Aquela
evocação bruta de carnes vibrantes se ajuntando a escorraçava aos repelões.
Enxugou o nariz.
Descendo
do bonde na praça, embora a rua da farmácia ficasse ali mesmo, Mademoiselle é
invadida por um vendaval misterioso, sem nexo. Como é que estava andando assim
noutra direção, subindo a praça, enveredando para a catedral! O bom-senso a
obrigou a se difinir, não era possível se tromper tamanhamente de lisière.
Mademoiselle se dirigiu para a farmácia, inquieta muito, batida por desilusões.
Comprou o alho sativo e mais vários tubinhos de pérolas alvas. Chegou à porta,
pôs o embrulho na bolsa, estava escurecendo e agora a inquietação já se
transformava num desvario completo. Ficou ali, olhando a gente muita que
passava apressada. Não sabia. Como que uma voz a chamava, uma voz fortíssima,
atordoando. Não era voz, era o brouhaha dos bondes, dos autos, da gente. Mas o
destino é que mandava os passos dela. Tinha que voltar e em vez o destino, não
era o destino nem a voz não, quelle sottise! em vez estava subindo exagitada,
frolando nos homens. Contrária à sua direção, Mademoiselle sobe, chamada pela
catedral. Apressa o passo, estava quase correndo. O pavor a tomara, era um
vento medonho na praça, sopro de sustos tamanhos que os arranhacéus se
desmoronam com fragor. Chega o fragor. Chega o medo horrível, mil braços que a
enforcassem, mil bocas, une chair vive contre une chair vive, lhe rasgam a
blusinha, no ventre! e ela trapeça sem poder mais. Tem que parar. Se encostou
nas pedras da abside, ia cair. Os homens passando afobados, meio se viraram na
indecisão, sem se decidir a perguntar se aquela velhota quer alguma coisa. Pode
estar doente, pedir auxílio, perdiam tempo. Passavam. Afinal o guarda deu tento
na coitada.
−
A senhora precisa alguma coisa?
Mademoiselle
tirou a mão dos olhos, muito envergonhada, refeita de súbito com a pergunta.
Non, merci, mas se percebendo noutra lisière, consertou: Não, obrigada. E
agora, já sem sustos mais, num desalento vazio, termina de contornar o derrière
da catedral. Já não era mais ela que “bousculava” os outros, como diriam as
meninas, a multidão é que a busculava, a empurrava, a sacode. Mademoiselle não
enxerga mais, não sente. Nem percebe que afinal toma o terceiro ou quarto
Angélica chegado. Nunca que imaginasse o acontecido, o mal de sexo já está
grande por demais, e Mademoiselle precisa duma experiência maior pra alcançar a
verdade.
As
ruas agora já estavam mais visíveis na entressombra, mais largas, seguindo por
avenidas ricas. Mademoiselle enfim reconheceu com franqueza que já vinham
descendo pela avenida Angélica. Voltava pouco a pouco à vida. Mas se estivesse
no seu natural iria até a rua das Palmeiras e tomava outro bonde que a levasse
à Sebastião Pereira, onde ficava o segundo andar da sua pensão. Sem elevador.
Mademoiselle gosta pouco de caminhar. Mas eis que dá um puxão brusco na
campainha, o bonde para espirrando. Mademoiselle desce e se lembra de enxugar o
nariz, pra que desceu!
Cortando
pelas ladeiras oblíquas se dirige à pensão, anda. Acontece que assim, no
crepúsculo caseiro, numa última esperança de antemão desenganada, Mademoiselle
passa pelo derrière da igreja de Santa Cecília. Assim mesmo uns sustinhos a
tomaram, o respiro cresceu, foi agradável.
Mademoiselle
chega sem muita desolação ao seu segundo andar. Havia um rol da engomadeira,
difícil de ajustar, blusas e blusas. Mademoiselle examina as rendas com
aplicação. De vez em quando para, trata de enxugar o nariz, ah! o remédio. Se
esquecera dos remédios mas agora é tarde. Vamos deixar o remédio para depois do
jantar. Mademoiselle ergueu súbito a cabeça, voltou-a pro lado, esperando,
olhos baixos. Ficou assim por algum tempo, ansiosa, no malestar quase suave, e
como nada sucedesse, como sempre, retornou ao cuidado de encrespar com mais
minúcia a rendinha engomada da blusa. Agora vivia assim, na virulência nova da
sua solidão, eis que estremecia. Lhe vinha a sensação até brutal de ter alguém
junto de si. Sobrestava, tinha que sobrestar por força a ocupação qualquer em
que estivesse, meio que se voltava e ficava esperando, olhos baixos. Nunca que
ela olhasse com franqueza o lado, o canto, a porta donde lhe vinha a presença
do homem. Ela desoladamente sabia não haver ninguém ali.
Mas
daquela aventura horrível lhe fica um fraco pelo derrière das igrejas. Não vê
igreja solta que não lhe brote a fatalidade de passar por detrás. A desilusão
não a desilude nunca. Mademoiselle passa numa brisa agradável de apreensões,
apesar do pleno dia, que ela nunca sai de-noite mais, tem um medo! Sabe de-cor
os sacristães cuidadosos que não deixam nas reentrâncias das absides a prova
dos homens gluants da noite. Não vem mais no seu bonde, da casa de dona Lúcia
até a pensão. Para uma esquina antes do largo de Santa Cecília. Até imagina que
está precisando andar mais a-pé. Vem. Está muito corretazinha e retazinha. Vem,
faz a volta da igreja, lhe bate a brisa de sustos, é agradável. Mademoiselle
estuga o passo e chega ofegante à porta da sua pensão.
Nesse
dia as meninas a atenazaram por demais. A cidade vinha se arrepiando de
pretensões políticas porque afinal tinham lançado mesmo o já muito proposto
partido da oposição, o Democrático. Dona Lúcia embarcara na onda que lhe trazia
um gasto novo de volúpias. Tinha parente importante no PD e nessa tarde, pela
primeira vez depois de sete anos, os salões dela se abriam para o cocktail aos
chefes do Partido. Dona Lúcia decidiu que as filhas haviam de aparecer nem que
fosse um momento. Fazia questão de se apresentar ornada de resultados, bem
matrona, imponente em seus traços de infeliz. Mademoiselle devia comparecer,
como preceptora.
As
meninas ficaram de lado, era natural. A reunião era quase só de homens, poucas
senhoras e vários sonhos políticos de subir. O velho conselheiro comparecera,
na sua figura raçadíssima, avec une barbe, vous savez. E assim, olhando de
longe tantos homens que a gesticulação política ainda tornava mais ferozes,
Alba e Lúcia tinham caído em cima da professora.
Era
no fim daquela primavera, et alors, vous comprennez, Mademoiselle chegara mais
resfriada que nunca, o nariz até inchara um pouquinho, e com o embrulho
esquisito, um cilindro comprido, pajeado cuidadosamente junto ao seio. As
perguntas das meninas foram tão insistentes, as suposições tão maliciosas que
Mademoiselle precisou confessar. A homeopatia não lhe dava jeito mais ao
resfriado, “bronchite” ela insistia, no eufemismo contraído de moça, pra evitar
de qualquer forma que esses brasileiros falassem em “constipação” pxx! Pois então
se lembrara de comprar aquela garrafa de rum, confessou envergonhadíssima, “un
tout petit peu!” que ela quase gritava ameaçadora, diante do riso das meninas.
O
jogo principiara logo muito esquentado. Estavam as três mais que freudianas,
daquele recanto da saleta espiando tantos homens que deviam ser importantes,
fazendo tudo o que desejavam. Os cocktails passavam, cocktails fortes bem pra
homem, dona Lúcia se recusava a beber. Mas as meninas principiaram tarlatanando
cada vez mais audaciosas. Mademoiselle não continha mais ninguém.
−...
vous savez pourquoi ils se sont installés au dessus du théatre Santa Helena,
n’est-ce pas?...
−
Mais non! Racontez-moi ça.
E
Lúcia sem saber onde vai parar:
−
Après les spéctacles ils montent au Parti et font de choses affreuses, vous
comprennez, n’est-ce pas!
−
Ma chère enfant, taisez-vous. Voyons... mais qu’est ce qu’ils peuvent bien faire
alors?
− Vous comprennez, n’est-ce
pas! Ils ont fait un trou, Mademoiselle, un énorme trou! Monsieur le Premier
Sécrétaire s’est mis tout nu sur un énorme plat, et on l’a descendu dans le
théatre, vous comprennez ce qui se passait…
−
Lúcia, je vous défends de continuer! peremptória, à bout.
− Mais, Mademoiselle, c’est
qu’ils commencent tous a roucouler!
−
Tais-toi! tais-toi! ela espirrava na sua binaridade autoritária atual, imagem
derradeira da autoridade que ela não conseguia mais ter sobre aquelas pequenas
rabelaisianas da primavera. Tais-toi! tais-toi! pulandinho de gozo entre as
duas garotas, no desvão da saleta, emborcando a taça de cocktail. Dona Lúcia
acabara suspeitando alguma coisa de anormal na alegria daquelas três, ordenara
às meninas que subissem. E se foram as três para cima, logo calmas na apreensão
de algum malfeito grave.
Só
agora percebiam que a noite caíra. O relógio antigo do estúdio marcava oito
horas. Um susto gélido de brisa entrou pela janela e invadiu Mademoiselle.
Atchim, ela espirrou estremecendo. Foi se encurtando muito, ficou pequeninha,
quase um nada vivaz de chair vive, resumida a uma girândola de espirros em
surdina. Teve medo, era muito tarde. Ainda imaginou esperar que a festa
acabasse, estava no fim, e pedir a dona Lúcia que a fizesse acompanhar por
qualquer um dos criados de ocasião. Mas ficou logo horrorizada com as audácias
dele, decerto quis kidnapá-la, mas os outros passageiros do bonde intervieram,
e ele (preferia o que a servira) lhe deu o braço pra descer e a carregou
possante, encostando a mão no peito dela, bem no peito. Criou juízo e decidiu
ir só.
O
bonde felizmente vinha cheio até demais, tinha uns seis passageiros derramados
pelos bancos e Mademoiselle, acalentada, se sonha defendida por eles. Se o
criado viesse, eles derramavam sangue na luta, bastante sangue. E que coragem
deles, que luta feroz! Os defensores bufavam de cólera, os socos caíam, o auto
não respeitava o silêncio da noitinha e num momento, o que foi! os bondes
de-noite correm tão desabalados pelos bairros, era aquele mesmo tumulto da
praça da Sé que a tomava. Seria uma voz? seria o destino? Mademoiselle já mal
respira e toca brusco a campainha. O bonde para com um grito horrível, é um
assassinato, aliás, ela corrigiu, “assassínio” em português. Mademoiselle nem
desce, salta, pula, foge, se livrando, faz o quarteirão sem pensar, não há
multidão que a buscule, as árvores, as árvores é que a machucam, saem sombras
kidnapantes delas, os lampiões fazem trous, trous, doloridíssimos no ar
desmaiado.
Mademoiselle
percebe nítido, mas com uma nitidez inimaginável de tão fatal, que chegou no
largo de Santa Cecília. Seguirá reto? É só atravessar o largo pela frente da
igreja e, uns cem passos mais, a porta salvadora da pensão... Mademoiselle sabe
disso, decide isso, quer decidir isso, mas agora é tarde, os passos a
contrariam e a conduzem atrás da catedral de Ruão. É um silêncio de crime, o
bairro dorme em paz burguesa. Mas tinha que suceder. Duma das ruas que
desembocam na curva da abside, saltam dois homens, avec une barbe? não viu bem,
mas très louches, que se atiram a persegui-la.
Atchim!
que ela explodiu, exagerando o grito de socorro com volúpia. C’est pour les
advertir que je suis enrhumée, ela se pensa, heroicamente, na presciência de
que as “constipações” protegem contra os assaltos à virgindade. E atchim! ela
repetiu mais uma vez, sem vontade nenhuma de espirrar, ameaçadora, se escutando
vitoriosa no deserto da praça. Poum... poum... poum... Os dois perseguidores
vinham apressados, passo igual. E o som dos sapatões possantes, eram possantes,
devorava o atchim espavorido da pucela. E as passadas reboam mais vitoriosas
ainda no silêncio infeliz do largo, ninguém para a salvar, só as árvores
inúteis como cochonneries, enquanto os dois homens a vão alcançar. Não pode
mais. Cairia nos braços deles, e eles a violariam sem piedade, exatamente como
sucedera atrás da catedral de Ruão.
Mademoiselle
apressa o passo ainda mais. Mas talvez o temor a imobilizasse como ao
passarinho no olho da cobra: dá uns três passos corridinhos e logo quase para
de andar, esperançosa, sussurrando uns passos lerdos, curtos. Poum... poum...
poum... Ela avistava, era um fragor de catedrais desmoronando, ela enxergava
muito bem os coruchéus despencando em linha reta sobre ela, arcobotantes
agitados se enrijando, a flecha zuninte da abside, o crime seria hediondo
porque ela havia de se debater com quanta força tinha, só a encontravam no dia
seguinte desmaiada, as vestes rotas, sangrentas, o que diriam as meninas! muito
sangue, poum... poum... já lhe punham, se lhe pusessem as mãos gluantes nos
ombros, ela havia de berrar.
Afinal
um dos homens agarra-a pelo pescoço. Mas segurara mal. Mademoiselle deu um
galeio pra frente com o pescocinho, mais uma corridinha e conseguiu se
distanciar do monstro. Mas o outro monstro agora alargava muito o passo e ela
percebeu, a intenção dele era estirar a perna de repente, trançar na dela bem
trançado e com a rasteira ela caía de costas pronta e ele tombava sobre ela na
ação imensa. Porém ela fez um esforço ainda, um derradeiro esforço, deu um
pulinho, passou por cima da perna e aqui ela chorava. Quis correr, não podia,
porque o outro monstro veio feito uma fúria, ergueu os braços políticos e
espedaçou-lhe os seios que sangravam. Mademoiselle deu um último gritinho e
virou a esquina.
Mademoiselle
virou a esquina da sua rua. Mademoiselle virou a esquina. Sua rua. Enxergou,
era tão oferecidamente próxima a porta da pensão, e ela não teve mais esperança
nenhuma. Nunca mais que havia de passar por trás das igrejas, e no dia seguinte
as meninas desnorteadas topavam com aquela professorinha de dantes, longínqua,
pura, branda. Mademoiselle estava salva, salva! E por sinal que a porta da
pensão também estava alvissareiramente iluminada ainda, pois eram apenas vinte
e uma horas. O copeiro na porta, homem de seu dever que a defendia se preciso,
conversava com as criadas do portão vizinho. Um cheiro leve de acácias.
Mas
isto Mademoiselle não podia sentir, nariz que era um tomate raçado de
cooperativa. Sentiu mas foi que estava irremediavelmente salva pra toda a vida
e então pôde correr. Correu, já num passinho lúcido, sem sofismas, e o pelo do
renard falso lhe fez uma brisa tão irônica no nariz que, quando parada na
porta, primeiro ela teve que atender ao tiroteio dos espirros. E foram atchim,
atchim, atchim e atchim. J’ai manqué un atchim, n’est-ce pas?
Foram
cinco. Pois assim mesmo os perseguidores lá vinham chegando atrás dela. Só que
agora Mademoiselle estava mesmo salva pra todo o sempre e pôde reagir. Os
homens vinham chegando em suas conversas distraídas. Se plantou no meio da
calçada, fungou um sexto espirro inteiramente fora de propósito, tirou mais que
depressa dois níqueis da bolsa. Os homens tiveram que parar, espantados, ante
aquela velhota luzente de espirro e lágrima, que lhes impedia a passagem, ar de
desafio. E Mademoiselle soluçava as sílabas, na coragem raivosa de todas as
ilusões ecruladas:
−
Mer-ci pour votre bo-nne com-pa-gnie!
E
lhes enfiou na mão um níquel pra cada um, pagou! Pagou a bonne compagnie. Subiu
as escadas correndo, foi chorar.
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Fonte:
Fonte:
Mário de Andrade: Contos Novos. Projeto Livro Livre. São Paulo, 2016.
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